À medida em que a pandemia registra ascensão no País, cresce o número de ações para contenção da Covid-19, como o isolamento social ou toque de recolher, implementados em estados e municípios. Essa relação de causa e consequência têm sido seguida de ataques e ameaças contra gestores públicos.
Bolsonaristas reproduzem em cada canto do País a falsa retórica que atribui a esses chefes de Executivo a pecha de tirânicos ou ditadores. De Brasília, o presidente Jair Bolsonaro faz sequentes afirmações de que as restrições ao comércio e à circulação de pessoas seriam inconstitucionais.
Contraditoriamente, cartazes que estampam "DitaDoria", "Ditadura do Camilo" e dizeres parecidos disputam espaços com outros, estes pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso ou "intervenção militar com Bolsonaro no poder". Ações como o lockdown têm efeitos políticos, repercussões na economia e na rotina pessoal. Algumas reações são naturais, mas os últimos episódios demonstram escalada de violência.
O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), recebeu ameaças de morte. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, se mudou para o Palácio dos Bandeirantes. Bolsonaristas insuflaram motim policial na Bahia após morte de um cabo da PM do estado. Em aparente surto, Wesley Goes disparou contra profissionais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e foi morto.
Pesquisadores ouvidos pelo O POVO descrevem de diferentes modos as características de um ambiente político caótico, dentro do qual não há margem para formação de consensos mínimos, como a importância de se usar máscara. A conduta incendiária do presidente é apontada como o fator central para o cenário adverso.
Professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Gabriela Lotta analisa que as ameaças são inaceitáveis em qualquer democracia. Para ela, é ainda mais grave imaginar que as agressões venham em resposta à tentativa de governantes de conter a Covid-19. "Essa narrativa de que as medidas de isolamento seriam supostamente ditatoriais é consequência da narrativa disseminada pelo presidente de que haveria uma escolha entre enfrentar a pandemia ou salvar a economia", adiciona Lotta, também doutora em Ciência Política.
A docente atesta que as experiências pelo mundo mostram que os países com menos impactos na economia foram aqueles que "enfrentaram de maneira mais assertiva a pandemia". A criação de conflitos com governadores e prefeitos, elabora ainda a professora, pode ser entendida por meio do conceito formulado pelo filósofo Marcos Nobre para interpretar Bolsonaro: o do "caos como método".
"Isso ai é um reflexo do que está acontecendo na política nacional. A gente está num ambiente super conturbado, cheio de ruídos, mudanças drásticas e uma liderança que parece estar o tempo todo desafiando os poderes republicanos", descreve Carolina Botelho, doutora em Ciência Política.
Pesquisadora pelos laboratórios SCNLab (Mackenzie) e Doxa (Iesp-Uerj), Botelho analisa que o argumento sobre cerceamento de liberdade de locomoção como forma de autoritarismo é falacioso, pois, nas entrelinhas, reside o intuito de se esquivar da culpa pelos quadros sanitário e econômico negativos.
"Sempre que se vê acuado", ela prossegue, "ele reage assim, fora da institucionalidade. E essas semi-lideranças reagem dessa forma também."
Segundo Ricardo Ceneviva, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), as redes sociais e a possibilidade do anonimato dos ataques acentuam a tendência ao radicalismo vista nos núcleos mais fiéis de apoio ao presidente, o chamado bolsonarismo.
O cientista político lembra, por outro lado, que mobilizar as bases mais exaltadas é parte da estratégia de comunicação do presidente. Mas pondera que os inquéritos policiais para apuração de ameaças são um demonstrativo de que as práticas delituosas têm de ser levadas a sério.