Pesquisadora da ultra-direita e autora de “Tempestade ideológica”, sobre o bolsonarismo e a alt-right nos EUA, Michele Prado assegura que as teorias da conspiração são a espinha-dorsal do movimento que gravita o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Essas teorias que fazem parte do imaginário da direita radical e extremista internacional formam a medula da militância bolsonarista”, afirma Prado.
Segundo ela, é precisamente esse elemento que consegue garantir a coesão desses 30% do eleitorado “de apoio ao presidente, sempre mobilizada para aprofundar a divisão da sociedade, atacar outras instituições, respaldar a retórica populista de Bolsonaro e aniquilar os freios e contrapesos de nossa recém-conquistada democracia liberal”.
Ainda de acordo com ela, o bolsonarismo, como fenômeno do ambiente online que se transportou para as ruas e ganhou expressão e representação eleitoral, “é o resultado de anos de radicalização na bolha da direita”.
Daí em diante, iniciou-se “um processo de mitificação do então deputado, e este fenômeno populista baseou-se em diversas teorias conspiratórias que povoam o imaginário da alt-right e da far-right mundial”.
“Todo o conteúdo que essa bolha recebe é oriundo da far-right”, continua a pesquisadora, que exemplifica com o movimento antivacina nos Estados Unidos.
“Importante pontuar que o movimento antivaxx não é novo e não tem espectro ideológico definido”, explica. Conforme Prado, “neste momento, com a pandemia, a indústria antivaxx enxergou na extrema-direita o aliado perfeito, pois a mentalidade conspiracionista e os conceitos repletos de visões apocalípticas impulsionam seus negócios”.
Em entrevista ao O POVO, Prado afirma as principais vozes da direita brasileira “se inspiraram nas ideias do ‘paleoconservadorismo’: um conservadorismo radical que saiu da margem do debate público, resultando na completa mimetização tanto dos formadores de opinião norte-americanos da alt-right/alt-lite quanto do governo Trump pelo presidente Jair Bolsonaro”.
O POVO – Como nascem as teorias da conspiração e que relação têm com a direita ou extrema direita?
Michele Prado – O hábito de contar histórias faz parte da natureza humana, assim como a busca por padrões e conexões. A teoria conspiratória surge, geralmente, quando há o desejo de respostas simples para problemas complexos ou para que se possa capitalizar ganhos políticos e/ou financeiros com o compartilhamento viral dessas teorias. Como afirmo em meu livro, teorias da conspiração têm desempenhado um papel significativo na história da humanidade. Nem todas são falsas, como, por exemplo, os casos Watergate e Irã-contras. Porém, há outras totalmente falsas e maléficas que já datam de mais de um século e que ainda permanecem, como as teorias conspiratórias antissemitas - que em geral estão no cerne da maior parte das teorias da conspiração que povoam o imaginário dos espectros ideológicos extremos – seja à esquerda ou à direita. Após a Segunda Guerra Mundial e o subsequente novo arranjo geopolítico com a Guerra Fria, a mentalidade paranoide intensificou-se especialmente nas fileiras da direita radical e da extrema-direita americana. E, a partir dos anos 1990, com a chegada da internet, as teorias conspiratórias tornaram-se parte fixa das crenças e dos discursos da far-right. São dezenas de teorias conspiratórias e muitas sobreposições, pois, quando os indivíduos acreditam numa teoria da conspiração, eles ficam mais propensos a endossar outras. Na última década, com essa quarta onda de extrema-direita que o mundo enfrenta, as teorias da conspiração estão atuando como vetores diretos na radicalização e no extremismo. Grande parte dos atentados de terrorismo doméstico executados por terroristas de extrema-direita, por exemplo, foram motivados por teorias da conspiração como a da Eurábia e do marxismo cultural (atentado de Breivik, Noruega) e a teoria “The Great Replacement” – A grande Substituição – (atentado de Tarrant, Nova Zelândia).
Houve também um aumento exponencial em crimes de antissemitismo segundo relatórios da ADL (Liga Antidifamação). Com a pandemia, mais teorias conspiratórias surgiram e colocaram em risco também a saúde pública.
OP – Há relação entre esse conspiracionismo e o bolsonarismo?
Prado – Totalmente. E comprovo isso no meu livro. O bolsonarismo surgiu essencialmente online, forjado na bolha virtual da direita brasileira desde o final de 2014 (quando se iniciou um processo de mitificação do então deputado), e este fenômeno populista baseou-se em diversas teorias conspiratórias que povoam o imaginário da alt-right e da far-right mundial. As principais vozes da direita brasileira (influenciadores digitais) se inspiraram nas ideias do “paleoconservadorismo” (um conservadorismo radical que saiu da margem do debate público), resultando na completa mimetização tanto dos formadores de opinião norte-americanos da alt-right/alt-lite quanto do governo Trump pelo presidente Jair Bolsonaro. De teorias conspiratórias contra George Soros, a nova ordem mundial, marxismo cultural, o antiglobalismo, “The Great Replacement”, até a teoria do QAnon, todo o universo mental do bolsonarismo foi diretamente influenciado por tais conceitos compartilhados, durante anos, pelos influenciadores digitais (especialmente aqueles ligados ao filósofo Olavo de Carvalho). Essas teorias que fazem parte do imaginário da direita radical e extremista internacional formam a medula da militância bolsonarista e, desta forma, conseguem manter uma base coesa (em torno de 30% do eleitorado) de apoio ao presidente, sempre mobilizada para aprofundar a divisão da sociedade, atacar outras instituições, respaldar a retórica populista de Jair Bolsonaro e aniquilar os freios e contrapesos de nossa recém-conquistada democracia liberal.
OP – A CPI virou palco de disseminadores dessas teorias. Por quê?
Prado – A condução da pandemia pelo governo Bolsonaro, condução esta que já causou a morte de quase meio milhão de cidadãos brasileiros, é o resultado direto das crenças nos conceitos e ideias da extrema-direita das quais tanto Bolsonaro quanto os eleitores que ainda o apoiam são crédulos. A crença na teoria conspiratória do globalismo, por exemplo, faz com que o presidente da República e membros do governo desprezem as sugestões de agências supranacionais, como a OMS (Organização Mundial da Saúde). O anticomunismo paranoico leva-os a atacar a China e a reverberar mais teorias conspiratórias, como a do “The Great Reset” (que na verdade foi só mais uma dentre inúmeras propostas do Fórum Econômico Mundial para tornar o capitalismo com mais foco no social). A partir de março de 2020, passaram a reverberar a teoria QAnon para mobilizar as pessoas contra a quarentena e contra as medidas preventivas executadas pelos prefeitos e governadores. A teoria QAnon vem se firmando durante a pandemia e angariando muitos adeptos, impulsionados principalmente pela agenda iliberal e negacionista do presidente Bolsonaro e a polarização que ele executa contra outros poderes institucionais, prefeitos, governadores, imprensa e a oposição. Essas teorias são bem diluídas aqui no Brasil e, portanto, o número de seguidores não é tão pequeno quanto aparenta. Uma observação importante é que muitas pessoas simplesmente não fazem ideia de que estão compartilhando conceitos falsos, radicais e teorias da conspiração, agem movidas mais por um sentimento de pertencimento ao grupo e uma minoria o faz pela monetização que os compartilhamentos podem trazer. Canais no Youtube de bolsonaristas chegam a atingir a marca de quinhentas mil visualizações em poucos dias, por exemplo. A respeito das medidas preventivas de combate à pandemia, no Brasil a teoria QAnon é repetida integralmente quando compartilham posts sinalizando que a China produziu o vírus propositalmente num grande plano de dominação global; a vacina provocará mutações genéticas; as máscaras são ineficazes; e as medidas restritivas têm o objetivo oculto de tiranizar os povos. Ressalto que essas teorias não ficam restritas à massa de apoiadores, são também replicadas pelo presidente, seus filhos e parlamentares da sua base governista, produzindo um grande estrago e o esvaziamento da confiança da população nas instituições e no consenso científico. Bolsonaro sugeriu a transformação da pessoa em “jacaré” caso tomasse a vacina, e a deputada federal Bia Kicis (PSL) também compartilhou em suas redes sociais a teoria conspiratória QAnon sobre modificações no DNA resultantes da vacina. As teorias conspiratórias que regem o universo mental bolsonarista são vetores relevantes desta crise sanitária sem precedentes na história do país. E o presidente da República é um dos principais agentes de desinformação.
OP – O que há em comum entre essas teorias da conspiração no Brasil e nos EUA?
Michele Prado – Há absolutamente tudo em comum. O bolsonarismo é o resultado de anos de radicalização na bolha da direita e todo o conteúdo que essa bolha recebe é oriundo da far-right internacional. Importante pontuar que o movimento “antivaxx” não é novo e não tem espectro ideológico definido. Neste momento, com a pandemia, a indústria antivaxx enxergou na extrema-direita o aliado perfeito, pois a mentalidade conspiracionista e os conceitos repletos de visões apocalípticas impulsionam seus negócios. O movimento antivaxx é uma indústria bilionária. Um relatório recente publicado pelo Center for Countering Digital Hate informou que pouco mais de 10 perfis dos antivaxxers mais atuantes, e que produzem a maior parte dos conteúdos com desinformação, valem mais de um bilhão de dólares para as big techs e movimentam em torno de 62 milhões de dólares. Sugiro, portanto, aos senadores da CPI da Covid que “sigam o dinheiro” dos personagens que, desde o início da pandemia, fazem lobby para o uso da hidroxicloroquina e pelo tratamento precoce (apesar da ineficácia comprovada). A população (incluindo a bolsonarista) recebe as consequências das teorias conspiratórias e da insistência no negacionismo, meio milhão de mortes e o descontrole da pandemia. Mas tem muita gente ganhando muito dinheiro com isso.