O governo Bolsonaro abriu uma guerra contra o "todes", o "amigues" e o "alunes", três palavras cujas desinências que demarcam gênero são substituídas por uma vogal neutra, num esforço mais amplo de incluir grupos que não se veem representados no binarismo - masculino e feminino -, como pessoas trans e outros públicos.
Mas por que essa modalidade linguística tem incomodado conservadores e aliados do presidente? E como professores e pesquisadores da língua discutem o assunto num momento em que a Secretaria Especial de Cultura vetou, por meio de portaria, a linguagem neutra em textos de projetos que concorram a financiamento pela Lei Rouanet?
Professor de português, mestrando em literatura pela UFC e homem trans, João Luiz explica que a neutralização do gênero na língua cumpre propósito de inclusão. "Quando a gente fala de linguagem neutra, as pessoas acreditam que é uma linguagem destrutiva, mas não é isso, é uma linguagem de inclusão", reflete.
Esse movimento de mudança tenta contemplar "pessoas que não se sentem confortáveis sendo designadas estaticamente pelo gênero feminino ou masculino", ou seja, que "estão muitas vezes num entre-lugar do gênero".
"A importância da linguagem neutra é basicamente uma questão de identidade", considera Claudete Lima, professora do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFC.
"Do mesmo modo que eu, cis e binária, não gostaria de que se referissem a mim pelo pronome masculino, porque não me sentiria respeitada e identificada, naturalmente uma pessoa que não se identifique com um ou/e outro gênero vai se sentir do mesmo modo", afirma a pesquisadora.
Titular da Secretaria de Cultura da gestão presidencial, Mario Frias fez da linguagem neutra um novo alvo prioritário dos bolsonaristas.
Antes da publicação da portaria do órgão na semana passada, Frias se manifestou pelas redes sociais: "Não há cultura sem comunicação. O que se convencionou chamar de linguagem neutra, na verdade, não é linguagem, é mera destruição ideológica da nossa língua".
Em todo o país, ao menos 14 estados já aprovaram leis de diferentes alcances mas cujo objetivo é o mesmo: proibir a linguagem neutra no âmbito da oficialidade, seja na escola ou noutros espaços.
Questionada sobre essa reação à linguagem neutra e as razões por trás da investida dos bolsonaristas, Claudete afirma que "essa mudança é, em primeiro lugar, uma mudança, e isso já fere o conservadorismo".
"Os extremistas rejeitam qualquer tipo de mudança", diz a professora, acrescentando: "Na verdade eles querem é retroceder o máximo possível, ao tempo em que se discutia se a Terra era redonda ou não, se as vacinas funcionam ou não. Não é de se estranhar que isso tenha atraído atenção dessa turma".
Preocupada com as modificações no discurso e na língua, a professora de Literatura e estudiosa Danielle Motta vem tentando neutralizar palavras no dia a dia. Para ela, "a língua pode ser libertadora, mas pode ser também opressora".
"Por muito tempo a gente usa o masculino como neutro, e isso é reflexo de uma sociedade patriarcal, machista. Estou tentando neutralizar o que escrevo, por exemplo, ao usar palavras como 'pessoas' em vez de alunos", responde.
Sobre a resistência a essas mudanças, Danielle propõe: "A neutralidade é uma forma de democratizar a língua, que é viva, pulsante. A língua se renova a cada época, não está presa nas gramáticas, que precisam ter reedições exatamente por causa da vivacidade da língua".
PONTO DE VISTA
“Sobre linguagem neutra ou linguagem afirmativa/inclusiva e ensino”
Acredito que a primeira coisa a se levar em conta é que gramática normativa não é A língua e norma padrão não é A verdade. É uma parte importante e necessária para determinados contextos - formais, principalmente -, mas não dão conta das pluralidades de realidades que se constituem pela língua e pela linguagem. É uma discussão que parece estar batida, mas a gramática é o primeiro argumento levantado por determinados grupos quando se entra nesse debate, ignorando os demais aspectos que fazem parte e constituem o sistema linguístico.
Um segundo ponto é pensar para que ensinamos língua materna. Nossa função é (ou deveria ser) oferecer subsídios teóricos e práticos a estudantes de forma que consigam adequar sua linguagem aos vários contextos comunicacionais, sejam eles formais ou informais, de prestígio ou marginalizados. E é neste grupo que pessoas não-binárias se encontram, visto que fogem do padrão cis-heteronormativo preponderante. Se partimos da ideia de que língua e linguagem são fatores essenciais para a identificação e constituição do sujeito, não é de se estranhar que indivíduos invisibilizados socialmente criem recursos para afirmar sua existência no mundo.
E puxando gancho para o comentário de que se trata de uma tentativa de incutir uma suposta “ideologia de gênero”, bom, nada mais ideológico do que afirmar “menino veste azul e menina veste rosa”, né? A heterossexualidade compulsória é que se impõe como “correto” e não arbitrariamente corresponde aos ideais políticos dos grupos dominantes.
Abordar linguagem neutra/inclusiva não é abrir mão da gramática, mas apontar outras possibilidades de comunicação além desta.
“Ah, mas é uma invenção, não é natural.” Inúmeros acréscimos à língua foram socialmente motivados, isso não é novidade. O engraçado é que, quando vem de uma classe dominante, são prontamente aceitos -- a gramática normativa se consolidou assim. O sistema linguístico não é imune ao falante. A gente já não comenta sobre gírias, regionalismos, mesmo o pajubá? Por que não pôr em discussão esse outro dialeto? Trazer essas discussões para a sala de aula, para o ensino de língua, a meu ver, só enriquece o processo de aprendizado e aprimora as habilidades de quem estuda.
“Ah, mas o português já tem formas de neutralizar.” Ótimo, façamos uso desses mecanismos e estejamos abertos para torná-los cada vez mais inclusivos.
“Ah, mas o português já é difícil, vai só complicar mais.” Exemplos como “todes” e “menines” utilizam perfeitamente a estrutura morfológica da língua, apenas adicionando uma desinência que não é (ainda, mas pode vir a ser) prescrita nos manuais.
“Ah, mas gênero gramatical é diferente de gênero social.” De fato, mas não em todas as palavras, sobretudo quando se referem a seres animados, não é completamente arbitrário. Há pesquisas que comprovam isso. Novamente, o sistema linguístico não é imune à comunidade falante e as mudanças na conjuntura social influenciam diretamente na língua.
O que precisamos é de uma seriedade maior ao tratar sobre linguagem neutra/inclusiva/afirmativa, principalmente por profissionais da área - professores e pesquisadores de Letras e Linguística. Infelizmente, percebo grande resistência vindo dessas esferas, que ainda demonstram um purismo muito grande no tocante ao tema. Percebo a mesma resistência, talvez até pior, vindo da própria comunidade LGBTQIAP+, visto os constantes ataques e chacotas feitas em relação à tentativa de uso de linguagem neutra - nas redes sociais isso é bem escrachado.
De qualquer forma, é um fenômeno que está acontecendo e está gerando discussões. Isso quer dizer que vai ser efetivamente incorporado? Só o tempo dirá, uma vez que processos de mudanças na língua demoram décadas. Contudo, é uma pauta que não deveria ser descartada prontamente. Pelo sim, pelo não, não custa nada respeitar as formas pelas quais as pessoas gostam de ser tratadas.
Rodrigo Gabriel da Costa, 27 anos, mestrando em Letras - Literatura Comparada (UFC)