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Especialistas analisam impactos das interferências políticas no Enem 2021
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Especialistas analisam impactos das interferências políticas no Enem 2021

Especialistas ouvidos pelo O POVO e O POVO CBN analisam as últimas declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre intervenções no Exame Nacional do Ensino Médio
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CERCA de 3 milhões de pessoas vão participar da prova a partir de amanhã (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil CERCA de 3 milhões de pessoas vão participar da prova a partir de amanhã

Nos próximos dois domingos, 21 e 28 de novembro, milhões de estudantes se mobilizam no país para participar do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), prova utilizada para entrar em cursos superiores de universidades públicas de todo o país. Nos últimos anos, principalmente durante o governo Bolsonaro, a prova tem sido alvo de atenção especial e é acusada de ter orientação ideológica e partidária nas questões.

Nesta semana, o chefe do Executivo foi a público dizer que agora a avaliação tem “a cara do governo”, logo após ter sido acusado de interferir na elaboração do exame. Especialistas ouvidos pelo O POVO e O POVO CBN analisam que as supostas intervenções colocam em xeque a credibilidade da avaliação, mas que, por hora, as falas do presidente não devem preocupar os estudantes que vão realizar o exame.

Para Ruy de Deus e Mello Neto, professor de Política Educacional na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), uma interferência no Enem ou a perda de credibilidade do sistema de seleção prejudicam todo um processo de mudança do Ensino Superior.

“Diretamente pelo Enem, passam as cotas, passa o Prouni, passa tudo o que entendemos por diversificação ou por transformação mais recente no Ensino Superior”, explica.

Sobre o Inep, Ruy afirma que uma interferência no órgão afeta muito mais que as provas do Enem, pois o Instituto também é responsável, por exemplo, pelos censos da Educação Básica e da Educação Superior.

“Muito do que entendemos e conseguimos fazer em relação aos dados públicos no Brasil, em relação ao acesso à informação e ao mapeamento da educação em âmbito nacional, devemos ao Inep. Então, qualquer interferência no Inep, um órgão consolidado e com respaldo científico, é muito prejudicial ao Brasil”, destaca.

Para o professor João Figueiredo, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Cariri (UFCA), ao dizer que a prova teria "a cara do governo", Bolsonaro cometeu um erro e um ato falho. Isso porque o Enem não é uma política atribuída a um único governo para se parecer com este e, ao sugerir uma possível intervenção, ele teria assumido um crime.

“A intenção seria assumir sua ideia de que o governo tem direito a interferir em estratégias do Estado. Isso é um erro. Na verdade, o Enem é um projeto que está além de um governante, que está nesse cargo por quatro anos. Uma avaliação dessas precisa se pautar em princípios histórico-científicos conceitualmente referendados. Portanto, o que ocorreu foi um ato falho, pois o presidente assumiu um equívoco jurídico, porém, realmente esse governo interferiu indevidamente nesse processo. Isso é um crime", disse.

O professor de História André Rosa lembra que a prova já vinha sofrendo modificações nos últimos anos, tornando-se cada vez mais parecida com o vestibular tradicional. Na concepção original, o exame se valeria predominantemente questões de interpretação e interdisciplinares.

Rosa argumenta que a redação, por exemplo, tem perdido o tom de polêmica, mas continua pautando temas da atualidade. Além disso, as provas são elaboradas com antecedência e por uma equipe técnica responsável e preparada, adianta o professor. Dessa forma, pelo menos por agora, o professor explica que o estudante bem preparado para a prova pode ficar mais tranquilo com as declarações do presidente.

“Eu vou dizer uma coisa que parece absurda, mas não é. O aluno que se preocupa com uma declaração dessas não está plenamente preparado. Fica pensando que a prova tem um viés, por exemplo, ideológico pela fala do presidente, mas existem pessoas comprometidas dentro do instituto (Inep) para também deixar a prova com informações que foram passadas durante o Ensino Médio”, disse Rosa em entrevista à Rádio O POVO/CBN, na última terça-feira, 16.

“Os temas da redação são escolhidos em agosto, a prova não pode ser feita em cima da hora. A prova é feita em maio. Então, se o presidente se pronunciou agora e se o Inep perdeu contingente agora, possivelmente, a prova não teve nenhum tipo de mudança por conta dessa programação antecipada que ela tem”, salientou o professor.

Enem com “cara do governo”

No último domingo, 14, sob condição de anonimato, servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) deram entrevista ao Fantástico na qual acusaram o Poder Executivo de interferir na elaboração do Enem. Os funcionários falam em intimidação e censura na preparação da prova.

No início do mês, mais de 30 servidores do Inep pediram demissão dos cargos. Em carta enviada aos diretores, o grupo que pediu exoneração dos cargos citou a "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima do Inep".

No dia seguinte, Bolsonaro negou as acusações e disse que a prova vai ocorrer “na mais absoluta tranquilidade”. Ao mesmo tempo, acrescentou que o exame “agora passa a ter a cara do governo” e que “ninguém precisa ficar preocupado com as questões absurdas do passado”.

Todavia, questionado pela imprensa, o mandatário afirmou não ter tido acesso ao conteúdo da avaliação. Por regra, as provas só podem ser acessadas pelo comitê que as elabora.

A polêmica continuou na quarta-feira, 17, e o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, reiterou que não houve intervenção e disse que à Comissão de Educação da Câmara que o Enem “tem a cara do governo sim, [mas] no sentido de competência, honestidade e seriedade”.

O presidente do Inep, Danilo Dupas, foi ao Senado no mesmo dia e afirmou que ele e o ministro tiveram acesso às provas e que estas não sofrem qualquer risco. Em decisão tomada na quarta-feira, 17, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu procedimento para investigar se houve interferência no Inep

O futuro do Enem

O professor André Rosa explica que diversas especulações são feitas sobre o futuro do exame. Tanto no sentido de deixar a prova cada vez mais parecida com o modelo tradicional de vestibular, utilizado em anos passados pelas universidades, como até em acabar com a aplicação do modelo de seleção em nível nacional.

“O Enem é caro. O Governo Federal tem conseguido, infelizmente, retirar muito dinheiro da Educação, e o processo seletivo do Enem é caríssimo, principalmente por conta da correção da redação. Então se fala muito em voltar atrás, ao modelo tradicional”, aponta.

O que há de concreto é o anúncio feito pelo Ministério da Educação em janeiro, de que terá início ainda em 2021 o Enem Seriado. Trata-se de uma prova realizada em cada último ano do Ensino Médio, com nota final calculada a partir da média dos três exames.

Assim, a partir de 2023, os estudantes poderão utilizar essa nota para concorrer a vagas nos cursos de nível superior, tentar o exame tradicional ou ainda participar das seleções promovidas pelas universidades. A mudança faz parte do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb 2021), atualizado pelo governo Bolsonaro.

Na edição deste ano, 3,1 milhões de estudantes estão inscritos para o Enem, o menor número dos últimos 14 anos. A prova já chegou a ter até 8,7 milhões de inscritos.

A queda no número de participantes é atribuída em parte à decisão do governo Bolsonaro de retirar a isenção da taxa dos que faltaram na edição do Enem 2020. Dessa forma, menos pessoas pobres participarão do Enem 2021.

A quantidade de inscritos com isenção da taxa por declaração de carência caiu 77% em relação à prova realizada no ano passado, quando eram 63% do total. Em 2021, estudantes vindos de famílias de baixa renda serão apenas 26,5%.

Segundo o portal Notícia Preta, neste ano, a edição do exame contará com o menor número de inscritos pretos, pardos e indígenas da última década. A informação é baseada em dados do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp).

"Trágico" é o termo escolhido pelo professor João Figueiredo ao considerar esse cenário do Enem 2021.

"É um grave retrocesso em um processo de avanços e realizações ocorridas nos últimos anos. Lembremos que há políticas afirmativas pautadas pelas cotas, pelo acolhimento de candidatos caracterizados nessa faixa excluída ou penalizada. Entretanto, nesse contexto atual, principalmente na conjuntura decorrente da má gestão da pandemia, essas populações sequer possuíam condições mínimas de acesso às tecnologias e conhecimentos socialmente legitimados", concluiu. (colaborou Vanessa Alves/especial para O POVO)

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