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Ivo Herzog: A esperança que sobrevive ao horror do nazismo e à ditadura brasileira
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Ivo Herzog: A esperança que sobrevive ao horror do nazismo e à ditadura brasileira

O filho de Vladimir Herzog acredita que, para superar o atual momento institucional, um ponto de inflexão é a revisão da Lei de Anistia pelo Supremo
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Ivo Herzog é filho do jornalista Vladimir Herzorg e de Clarice Herzog (Foto: Bárbara Moira)
Foto: Bárbara Moira Ivo Herzog é filho do jornalista Vladimir Herzorg e de Clarice Herzog

Vlado Herzog despediu-se da esposa, Clarice, em 25 de outubro de 1975 dizendo que ela o esperasse para jantar. Apresentou-se voluntariamente ao DOI-Codi, convocado a prestar esclarecimentos sobre supostas relações com os comunistas. Na noite daquele dia, a família foi informada de que ele estava morto. A versão oficial era suicídio. A pretensa prova era um dos maiores atestados de desmoralização da ditadura militar brasileira: a foto dele, anexada ao laudo, enforcado pelo cinturão, com os pés tocando o chão e os joelhos dobrados. A família nunca teve dúvidas de que ele foi assassinado pelo Estado brasileiro. Começou então a luta não para saber o que aconteceu. Eles sabiam. Mas, queriam que o Estado reconhecesse. E ainda querem que peça desculpas, conforme determinou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao condenar o Brasil. Essa luta persiste até hoje.

Ivo Herzog era uma criança de nove anos quando o pai foi assassinado pela ditadura. Na época, ele não fazia ideia do quanto o totalitarismo atravessava a história da família. Vlado, de origem judaica, nasceu na antiga Iugoslávia, logo antes da Segunda Guerra Mundial. Antes de o país ser ocupado pelos nazistas, a família fugiu para a Itália. Após o fim da guerra, migraram para o Brasil. O novo país era uma espécie de paraíso para os Herzog, distante dos anos de privações, morte, frio e fome. Um país quente e de fartura. Então, eles se reencontram com o arbítrio.

Ivo enxerga a morte do pai como uma ferida não cicatrizada para ele e para o Brasil. Assim como tantas outras da ditadura. Uma página da história que precisa ser escrita para ser virada. O passo crucial para isso — um marco para o Brasil de hoje, inclusive — seria a revisão da interpretação da Lei da Anistia pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso é possível no Brasil de hoje, com o atual STF? Apesar de tudo, da história da família que fugiu do nazismo e padeceu na ditadura brasileira, Ivo Herzog é otimista. Ele tem e prega a esperança.

O POVO - O senhor tinha nove anos quando seu pai morreu. Minha geração entendeu a história de Vladimir Herzog, já recebeu a história completa. Os fatos reconstituídos. Mas, para família e para o senhor, uma criança naquela época, como foi descobrir o que tinha acontecido? Desde o primeiro momento já estava claro, ou foi uma história que vocês foram montando as peças?

Ivo Herzog - Para a família sempre esteve claro, desde o primeiro momento. No dia 25 (de outubro de 1975) à noite, quando diretores da TV Cultura chegam à nossa casa para falar com a minha mãe sobre o que tinha acontecido, antes de eles falarem alguma coisa, minha mãe já falou: "Mataram Vlado". E só depois que a gente veio a conhecer a farsa que tentaram montar do suicídio. E aí realmente entra uma luta não para convencer a gente do que tinha acontecido. A gente sabia o que tinha acontecido. Mas era importante que o Estado declarasse o que tinha acontecido. Tem de derrubar a farsa ao nível institucional do Estado brasileiro.

OP - Então, antes vocês souberam da morte e depois veio a versão do suicídio?

Ivo - Quando tem um pronunciamento do Exército, eles falam em suicídio imediatamente. Mas, a minha mãe primeiro ficou sabendo, sem detalhes, quando os diretores falaram lá. Se eles falaram que o Exército... A gente nunca teve dúvidas do que aconteceu.

OP - Vlado saiu ainda criança da Iugoslávia. Vocês têm essa memória familiar da fuga dele, o que era para ele ter fugido de um regime totalitário e estar vivendo numa ditadura aqui?

Ivo - Eu tinha oito anos, meu irmão tinha sete. Então, bem, a gente sabia que ele que tinha nascido fora do país. Até porque ele falava em iugoslavo com a minha avó. Apesar de ela também falar português muito bem, tinha essa coisa da família. Tinha um tio dele que também morava aqui no Brasil. Quando eles estavam juntos, às vezes falavam em iugoslavo. A gente tinha essa visão de que existe um mundo além do Brasil. Até porque eu e meu irmão, nós temos foto de quando meu pai trabalhava na BBC de Londres. A gente nasceu em Londres. Então, isso fazia parte da nossa realidade, as pessoas nascerem em países diferentes. A gente não tinha a mínima ideia do que significava a história da fuga dele da Iugoslávia, o exílio mais ou menos que eles ficaram escondidos na Itália antes de chegar ao Brasil. A gente não tinha discernimento dessa história, porque a gente era muito jovem.

Jornalista Vladimir Herzog
Jornalista Vladimir Herzog (Foto: DataDoc)

OP - Só após o fim da Segunda Guerra Mundial ele e seus avós vieram ao Brasil, não é?

Ivo - Isso. Durante a guerra, eles fogem da Iugoslávia, vão para a Itália, ficam clandestinos na Itália. O meu avô não conseguia falar em italiano, então ele se passava por surdo e mudo. Meu pai aprendeu italiano muito rapidamente. E ao final da guerra tem aqueles programas de migração, aquela coisa toda, e eles resolvem vir ao Brasil. Os parentes da minha família da parte de pai não fugiram da Iugoslávia. Todos morreram em campos de concentração. O meu nome é em homenagem a um primo do meu pai que veio a morrer num campo de concentração.

OP - Como foi mais tarde, quando vocês tomam conhecimento dessa história do totalitarismo atravessando a trajetória da família, seu pai ter escapado do que foi aquele horror. Como é lidar com essa história?

Ivo - É uma pergunta muito difícil. Como minha avó viveu com isso tem uma dimensão que a gente nunca vai entender. Porque a gente não viveu aquilo lá, né? Ela sai daquele país horroroso e chega ao Brasil. Passou fome durante vários anos. O período de guerra é um período de dificuldades. Era um país frio. Você chega a um país de céu azul, um monte de gente feliz, vai a uma feira de frutas que você nem sabia que existia, toda essa fatura. Então é algo como: "Isso aqui é o paraíso, viemos para o lugar certo." E depois perder o filho, da maneira que aconteceu. Uma violência semelhante a que ela fugiu. É uma coisa muito complexa. Mas ajuda a explicar um pouco porque meu pai nunca foi preso. Ele se apresenta voluntariamente no dia 25. E as pessoas perguntam, se ele sabia que alguns jornalistas... Tinha a questão da tortura, que o regime era aquela coisa violenta. Então, por que ele se apresenta? Por que ele não vai embora? E aí talvez essa experiência que ele teve quando jovem, daquele horror que ele sobreviveu, era meio que uma referência. Nada podia ser pior do que aquilo que ele já tinha vivido. E como ele não fazia nenhum ato ilegal. Era por causa das coisas que ele pensava. Tinha uma linha editorial, essa coisa e tal. Então, ele pensou: "Vou lá, vou dar minhas explicações e no fim do dia eu estou de volta". Falou para minha mãe o esperar para jantar.

Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzorg, assassinado pela ditadura militar
Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzorg, assassinado pela ditadura militar (Foto: Bárbara Moira)

OP - A morte do seu pai marcou um ponto de inflexão na ditadura naquele período. O senhor identifica algum evento que já aconteceu agora ou que ainda vai acontecer que pode ser potencialmente esse ponto de inflexão rumo a uma superação da era Bolsonaro?

Ivo - A revisão da interpretação da Lei de Anistia pelo STF. Eu acho que esse é o grande obstáculo para a gente dizer: as coisas estão mudando e a gente vai poder escrever a página dessa história e virar a página dessa história. Mas do jeito que há a interpretação do STF sobre a Lei da Anistia hoje, mantém um resquício daquela época muito forte ainda presente. E vamos lembrar que, no caso do meu pai, que foi julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A corte julgou que não só no caso do meu pai, mas nos casos semelhantes, o Estado brasileiro cometeu crimes de lesa-humanidade. São crimes imperdoáveis e imprescritíveis. Todos eles deveriam ser investigados e os eventuais envolvidos, trazidos à Justiça.

OP - Esse passado mal trabalhado é um dos fatores que nos levou ao Bolsonaro?

Ivo - Você coloca uma coisa importante na sua pergunta: é um dos fatores. Isso, porque não tem um fator que nos leva ao Bolsonaro. Eu acho que existe um conjunto de fatores que criam ainda um resíduo muito grande no Brasil de ter uma cultura de violência. A gente tem a questão da escravidão. O Brasil foi o último país, um dos últimos países a acabar com a escravidão. Eu não sabia disso, descobri recentemente que o Brasil trouxe da África literalmente dez vezes mais escravos do que os Estados Unidos. O Brasil trouxe dez vezes mais escravos. Levou duzentos anos de luta sociais para acabar com a escravidão. O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a ditadura. O Brasil nunca tratou ainda, fez uma reconciliação com a questão indígena, dos massacres dos povos indígenas. Essa região que nós estamos hoje, Norte e Nordeste, tem uma prática de violência e de impunidade presente. Chico Mendes, Dorothy Stang, só para citar dois nomes famosos. Mas a violência acontece no dia a dia e não é trazida à Justiça. Eu acho que a Lei da Anistia deveria ser reinterpretada como são as leis de anistia, que anistiam crimes políticos e não crimes comuns, como assassinato, tortura, desaparecimento. Seria um marco institucional. É um marco institucional que está faltando no nosso país. O Estado brasileiro precisa promover esse marco institucional. Ainda na sentença da Corte Interamericana tem mais um item que é muito importante também. Inclusive foi um item que a família fez questão. A corte ordena que o Estado brasileiro promova um ato público, com a presença das Forças Armadas, e peça perdão pelo que aconteceu na época da ditadura. A gente precisa ter uma sinalização clara, objetiva, de que esse país mudou. E a gente ainda não tem isso. E, aí sim, isso que você fala do Bolsonaro. Porque mais importante do que o Bolsonaro estar no poder é o Bolsonaro fazer o que ele está fazendo no poder. Do ponto de vista de militarização, do ponto de vista de negacionismo, essa coisa toda, que é uma perpetuação daquela cultura que existia na época da ditadura.

OP - O senhor ver perspectiva para essa revisão da Lei de Anistia na conjuntura atual?

Ivo - Eu acho que a gente tem de ter esperança. Aquela brincadeira se o copo está meio cheio ou meio vazio. Eu acho que esses momentos difíceis que a gente está passando agora são até importantes. É um remédio amargo, mas é um remédio que faz a sociedade refletir sobre essas temáticas. E, eventualmente, criar um movimento político que permita que aconteça. Com certeza, com a evolução da composição do STF, com as últimas pessoas que entraram lá, aumenta essa dificuldade de se conseguir isso. Mas é isso. Ou a gente cria rupturas. Ou a gente dá nome aos bois, como se fala. Porque o jogo do jeito que está sendo jogado, a maneira que os poderes têm feito, têm tentado conciliar a democracia, o STF, o Legislativo, o Executivo, não está dando certo. A violência vem aumentando, com focos mais atuais na questão de gênero, questão de raça, que a sociedade não aceita mais. A violência comum também, com a dominação das milícias, muitas formadas por ex-militares. Um sistema jurídico que não é bem visto pela sociedade. É visto como lento e produzindo muita impunidade. A gente quer manter essas percepções ruins e esses fatos ruins na construção de um país melhor? Ou a gente quer realmente um país melhor? Tem aquele ditado que diz que louco é aquele que acredita que fazendo as mesmas coisas vai obter um resultado diferente. É uma loucura imaginar que, se a gente continuar com essa atual interpretação do STF sobre a Lei de Anistia, uma série de outras questões, esse modelo presidencialista de coalizão, essas coisas todas, que a gente vai ter um resultado diferente do que a gente tem hoje. Com corrupção generalizada, um Congresso oportunista, Orçamento secreto, essa coisa toda. Ou se muda alguma coisa ou vamos continuar com esse resultado que está aí. E a gente tem de ter esperança de que o mundo vai ser melhor.

OP - Eu percebo a esperança no que o senhor fala. A gente teve a redemocratização e depois Fernando Henrique (PSDB), Lula (PT) e Dilma (PT), três presidentes que foram perseguidos na ditadura, de diferentes formas. E depois veio o Bolsonaro, que elogia o coronel Brilhante Ustra e tudo que representa. Como faz para manter a esperança? Não tem a visão de que estava avançando e agora foi na direção contrária?

Ivo - A gente tem de ter... O mundo existe há não sei quantos bilhões de anos. O Brasil a 500 e poucos anos. A gente não pode tecer as nossas conclusões olhando uma fotografia de cinco a dez anos. A gente tem de fazer um exercício um pouco mais longo. Esses ciclos progressistas e conservadores acontecem ao longo da história. Infelizmente, o humano é meio preguiçoso. Se a coisa está boa, ele se acomoda. Na hora em que você se acomoda, baixa a guarda e aquele movimento contrário ao que você faz, ele está fora da zona de conforto, ele vai e reverte. É quase uma gangorra como essas coisas acontecem. O problema são as intensidades. Entender que depois de um governo Dilma e Lula vem um governo mais conservador, ok. Faz parte do jogo. Mas a ponto de desrespeitar a imprensa, desrespeitar a vida, ser negacionista, é de uma intensidade muito complexa. Matou mais de 600 mil pessoas, do ponto de vista prático. Só por causa da pandemia. A gente tem de entender que esses ciclos acontecem. O que a gente precisa refletir é o que a gente está fazendo de errado que permite esses extremos, esse distanciamento tão forte. E isso é uma reflexão que tem de ser feita. Bolsonaro tem o mérito de ter chegado aonde ele chegou através do processo democrático. Vamos poder discutir coisas que ele fez que a gente não acha muito legal. Mas nós somos responsáveis por ter permitido que ele chegasse lá. Porque houve presidentes progressistas, mais ou menos, esses presidentes que você citou. E pelo jeito não fizeram o suficiente. Do ponto de vista da educação, do ponto de vista de pressionar por uma revisão da Lei da Anistia, de rever a questão da segurança pública. Porque a segurança pública que existe hoje, via Polícia Militar, a Polícia Militar é um exército de ocupação da época da ditadura. É um conceito errado. O militar foi feito para combater o inimigo e eliminar o inimigo. Como a gente põe essa pessoa na rua para cuidar da nossa segurança? Os romanos, quando os militares voltavam da guerra, não deixavam entrar na cidade. "Não, o militar está aqui para combater nosso inimigo externo. Eles não têm nada, nenhum assunto a ser tratado dentro da polis, dentro da cidade". E hoje a gente deixa nas mãos dos militares, o que também é uma coisa que sistematicamente não tem funcionado. E não é culpa do policial militar, do militar, do indivíduo. É culpa da questão institucional do que é o militar. De novo, esses governos não olharam para essas coisas, que estão postas. Você falou: um dos fatores. São vários fatores que abriram a guarda para a gente ir parar onde a gente parou. Eu também tenho muita esperança, que também é uma esperança vital, porque eu não consigo imaginar mais quatro anos desse governo, que no ano que vem encerra esse período tão complexo e tão triste da nossa história. Mas o que eu acho que é o grande desafio é que a próxima pessoa que vier a liderar esse país faça o que tem de ser feito. E não entre mais num governinho de coalizão com esse centrão horroroso, essa coisa toda. Se não, vai voltar.

Ivo Herzog é filho do jornalista Vladimir Herzorg e de Clarice Herzog
Ivo Herzog é filho do jornalista Vladimir Herzorg e de Clarice Herzog (Foto: Bárbara Moira)

OP - Uma derrocada da economia repercute na vida prática das pessoas e determina o voto. Como fazer com que o processo de deterioração da democracia seja também percebido no cotidiano das pessoas? Que isso saia das rodinhas intelectualizadas e entre no rol de preocupações do cidadão médio?

Ivo - É uma pergunta muito complexa, que merece uma tese de sociologia para responder. Eu morei uma época nos Estados Unidos e teve algumas eleições que eu passei por lá. Um americano que trabalhava comigo dizia assim: "Se a economia está bem, o governo fica. Se a economia está mal, o governo muda." Esse mindset simplista é global. Você pega a ascensão do Reich, do nazismo na Alemanha, foi numa época de profunda crise econômica. Hiperinflação, aquela coisa toda. A pessoa no desespero quer sobreviver. E ela não é louca. Ela pensa: "O que está acontecendo não dá certo, tenho de mudar o jogo." Aquela coisa da loucura que eu acabei de falar. Mais ou menos isso. Essa coisa existe na cabeça das pessoas. A situação econômica de uma população, feliz ou infelizmente, já joga muito forte no processo eleitoral. Todas as pesquisas qualitativas que os estudiosos fazem em época de eleição mostram que a pessoa está preocupada em primeiro lugar com seu bem-estar. Em tese, para você conseguir que a pessoa tenha uma visão social, ela teria de ter uma compaixão social pela sociedade em que ela vive. Isso é utópico. Todo mundo tem um pouco disso. Pessoas têm pouco ou têm muito. O fato é que, na hora que não tem comida no prato, cara, primeiro eu preciso trazer comida no prato. Depois eu vou me preocupar se o vizinho tem comida no prato dele, se tem saneamento básico, se a educação do meu filho está boa ou não está boa. Você minimiza um pouco essa volatilidade conhecendo o passado, conhecendo a história. Já estamos falando de um processo de educação, um processo de formação muito complexo. E que tem de existir. Você vê em algumas sociedades, especialmente as que passaram por guerra, o processo educacional foi a experiência que eles viveram. Numa guerra, você não sobrevive sozinho, precisa da ajuda de outros. Essas sociedades têm a questão da compaixão, da solidariedade — uma palavra em extinção — da solidariedade mais presente do que naquelas que não passaram por essas situações extremas. O que está acontecendo hoje no Brasil é que algumas pessoas, ou uma parcela importante da população, está passando por uma situação extrema, com a questão da fome. Gente passando fome, mesmo. Uma coisa que não acontecia no Brasil há muitos anos. Essas pessoas, de alguma maneira, vão estar muitos sensibilizadas e muito conscientizadas a rejeitar o que está acontecendo hoje.

OP - Mas não pelo aspecto democrático. Unicamente pela questão econômica?

Ivo - Isso, mas a questão democrática...

OP - Não sensibiliza?

Ivo - Sensibiliza. Antes do Bolsonaro, dez anos atrás, a gente fazia pesquisa e mostrava que quase metade da população não tinha apreço pela democracia. É mais fácil viver numa ditadura que numa democracia. Na ditadura, a responsabilidade pelo que está acontecendo sai de nós. Você terceiriza essa responsabilidade. Terceiriza não, é imposta uma terceirização. Tem um processo de desgaste também desse modelo político de coalizão. Eu, mais jovem que vocês, já ouvia assim: "Votar para quê? Político é tudo igual. Não vai mudar nada". Uma das coisas que poderiam ajudar, e que faz parte de uma democracia madura — nossa democracia é muito jovem, a gente tem 30 anos de democracia — a democracia não é o momento do voto. A democracia é o dia a dia. Se a gente tivesse mais instrumentos para participação das pessoas no dia a dia da sociedade, a gente estaria exercendo a democracia de forma mais intensa. E aí sim as pessoas teriam apreço maior. Acho que isso também é uma coisa que falta. A gente ainda tem uma democracia muito daquela coisa: uma vez a cada dois anos eu tenho de votar. Não é isso.

OP - É precária.

Ivo - É, a democracia é no dia a dia. É você, na reunião de pais do seu filho e você de repente ter poder para trocar o diretor da escola. Nos Estados Unidos, na questão de segurança pública de novo, o xerife, que é o delegado da região, é eleito pela comunidade. E ele tem um vínculo com aquela comunidade que ele vai ter de prestar contas. Isso é muito importante. A democracia é o povo exercendo o poder. Não é eleger simplesmente representantes. É o povo exercendo o poder. De novo, tenho uma visão otimista. A gente não está lá ainda porque a nossa democracia é muito jovem. Mas, ela vinha caminhando com isso, com a existência de centenas de comissões, de órgãos públicos que tinham ingerência sobre o Estado. Comitê da anistia, comitê de educação, essa coisa toda, que esse governo atual também extinguiu muitos.

OP - Uma cruzada contra, por exemplo, professores de história e jornalistas antecede e acompanha o período do Bolsonaro no poder. Antecede e acompanha. Qual a importância da verdade factual para uma democracia, sobretudo na perspectiva desse ano de 2022?

Ivo - É vital. A gente tem de conhecer nosso passado para entender nosso presente e a gente estar consciente das decisões que toma para construir o futuro. Uma parte desse processo será o processo eleitoral de construção de coisas muito importantes, que têm muito impacto na sociedade nos próximos quatro anos, que é eleger nossos representantes. Quando eu falo que a democracia não é só eleger, mas é também eleger. E aí o processo eleitoral é também muito importante. E ele tem maior qualidade quanto maior for a consciência da população. Da consciência do voto. Se essas pessoas tivessem consciência no voto, não tinham eleito o Bolsonaro. Bolsonaro vinha com discurso de que ele não era político. Ele estava há mais de 20 anos no Congresso. E não fez nada no Congresso. Só fez absurdos. Mamou na teta do Congresso esse tempo todo. É isso. Eu costumo dizer que o Bolsonaro é um dos políticos mais honestos que eu conheço. Porque ele está fazendo justamente o que ele falou que ia fazer. Normalmente, o político fala que vai fazer uma coisa e no dia seguinte faz outra. Ele não. Ele está sendo consistente. Não tem surpresa no governo Bolsonaro. Talvez a gente só não acreditasse que ele ia ser tão consistente com o que ele falava. Agora, isso para a gente, que se informou, que acompanhou. Logo qualquer discurso dele a gente fica logo muito assustado. Mas, a maioria das pessoas que votaram nele... não é possível. "Não tem corrupção". O cara da rachadinha, um monte de coisas. Falar que ele é o Messias, que vai acabar com a corrupção, que ele não é esse político, que ele falava que não ia fazer mais o jogo político. Ele sempre foi do centrão. Mudou sete vezes de partido. Agora foi a oitava vez. Ele sempre foi aquele político do baixo escalão, do baixo clero. Da pior espécie possível. Dessa coalizão terrível, que atrapalha muito o desenvolvimento do nosso País.

CURIOSIDADES

NOME

Vlado adotou o nome Vladimir, por considerar o original estranho para os brasileiros. Quando foi assassinado, era diretor de jornalismo da TV Cultura.

Jornalista Vladimir Herzog foi torturado e morto durante o regime militar
Jornalista Vladimir Herzog foi torturado e morto durante o regime militar (Foto: Arquivo)

MORTE

Herzog foi encontrado morto com uma cinta amarrada a 1,63 metro de altura — mais baixo que ele próprio. Havia marcas no pescoço, típicas de estrangulamento. Ele teria usado a cinta do próprio macacão. Mas, o macacão dos presos não tinha cinta.

ATESTADO

Em 15 de março de 2013, a família de Vladimir Herzog recebeu novo atestado de óbito do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), por determinação do juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. A causa da morte apontava: "lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi". O atestado anterior dizia: "enforcamento por asfixia mecânica".

QUEM É

Ivo Herzog é engenheiro. Ele nasceu em 31 de agosto 1966 no Queen Mary's Hospital, em Londres. Fez MBA em logística nos Estados Unidos e trabalhou em multinacionais no Brasil e no exterior. É presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog.

CANÇÃO

A mãe de Ivo, nascida Clarice Ribeiro Chaves, é citada na música O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, e que foi adotada como hino da anistia. "Choram Marias e Clarices no solo do Brasil".


CANÇÃO

A mãe de Ivo, nascida Clarice Ribeiro Chaves, é citada na música O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, e que foi adotada como hino da anistia. "Choram Marias e Clarices no solo do Brasil".

QUEM É

Ivo Herzog é engenheiro. Ele nasceu em 31 de agosto 1966 no Queen Mary's Hospital, em Londres. Fez MBA em logística nos Estados Unidos e trabalhou em multinacionais no Brasil e no exterior. É presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog.

ATESTADO

EM 15 de março de 2013, a família de Vladimir Herzog recebeu novo atestado de óbito do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), por determinação do juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. A causa da morte apontava: "lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi". O atestado anterior dizia: "enforcamento por asfixia mecânica".

O NOME

VLADO adotou o nome Vladimir, por considerar o original estranho para os brasileiros. Quando foi assassinado, era diretor de jornalismo da TV Cultura.

MORTE

HERZOG foi encontrado morto com uma cinta amarrada a 1,63 metro de altura — mais baixo que ele próprio. Havia marcas no pescoço, típicas de estrangulamento. Ele teria usado a cinta do próprio macacão. Mas, o macacão dos presos não tinha cinta.

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