Do medo de usar adereços que identifiquem uma opção de voto até a recusa a debater candidaturas publicamente, a violência já tem alterado o quadro da campanha eleitoral no Brasil em 2022.
Para especialistas ouvidos pelo O POVO, não se trata mais de especular se a disputa pelo voto neste ano será tumultuada. Os estragos começaram, e o primeiro deles foi um episódio de violência extrema, que resultou no assassinato de um tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu durante a festa de aniversário que tinha como tema o ex-presidente Lula.
O guarda civil Marcelo Arruda, 50, foi morto a tiros pelo agente penal bolsonarista Jorge Guaranho há uma semana, no Paraná.
O caso é o mais recente – e também o mais grave – de uma série de outros ataques, que incluem até explosão de bomba com fezes em evento do PT no Rio de Janeiro do qual Lula, que vem liderando as pesquisas de intenção de voto, faria parte.
Mas como, afinal, isso se reflete no processo político-eleitoral? E qual a responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro (PL), cujo discurso de ódio encoraja apoiadores a agredirem adversários?
Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o cientista político Fabio Kerche considera que o objetivo do chefe do Executivo, que aparece em segundo nas sondagens, é exatamente promover uma ruptura da normalidade, beneficiando-se da confusão.
"É preocupante essa radicalização da parte do Bolsonaro e esse estímulo, mas parece que essa é a intenção mesmo, de tumultuar o processo. Eu acho que tumultua, sim, e as pessoas podem ficar com medo de participar", projeta.
Ainda que pondere que "não há condições objetivas de o resultado das eleições não ser reconhecido", o mandatário pode tentar, afirma Kerche, "alguma saída a la Trump", referindo-se à invasão ao Capitólio por extremistas após a derrota do então presidente dos EUA.
Nesse cenário, toda a retórica presidencial que levanta suspeição sobre o sistema de votação e alimenta ofensivas contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) faria parte desse investimento bolsonarista.
De acordo com Emanuel Freitas, pesquisador do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), não há dúvida de que a violência vista nas últimas semanas deriva do presidente e de seus gestos de enfrentamento às leis.
"Foram anos de acirramento e de incitação retórica de eliminação do outro por conta da sua ideologia. O próprio Bolsonaro falando de uma luta do bem contra o mal, em que ele representaria o bem e os outros, a esquerda, o mal, e que é necessário inclusive pôr as mãos em armas", ressalta.
"Tudo isso", continua Freitas, "vai se juntando nessa retórica que chega às vias de fato em algum momento, como chegou a isso".
Segundo ele, o próprio desfecho do inquérito que apurava a morte de Arruda, no Paraná, é um elemento que adiciona preocupação. "Com a conclusão da polícia de que não foi crime político, foi crime torpe, com toda a certeza a eleição de 2022 será mais tumultuada do que a de 2018", adverte.
O corolário disso na campanha é, acrescenta o professor, "desde o medo do eleitor de portar objetos, adesivos de carro, camisa, bandeiras, até a inibição no uso de artefatos que digam qual é minha escolha porque não sei qual será a reação desses extremistas, que estão em um dos polos e tão somente em um".
Há, no entanto, outros reflexos da violência em jogo, reflete o professor e cientista político César Barreira, um estudioso do tema no estado.
À frente do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Barreira chama a atenção para o fato de que "os discursos têm uma influência" no andamento da eleição, com maior ou menor grau de hostilidade.
"Hoje, com essa prática do governo central, sempre falando da questão da violência e do armamento, é como se tivéssemos um reforço da cultura da violência. A relação é direta", critica o docente.
Embora situe a relação entre violência e política como uma constante na história, remontando à década de 1930 no Brasil, Barreira entende que o regime democrático transferiu esses embates para a arena institucional e o campo do simbólico.
O que se vê agora, porém, "quando existe a violência e a eliminação fere profundamente essa disputa no espaço democrático na eleição", conclui, é "uma troca: em vez de a disputa ser na rua, é na bala. É uma prática do passado em tempos modernos".
"Era previsível ter campanha mais violenta"
O cientista político Cleyton Monte afirma que algum nível de violência já era esperado na disputa eleitoral de 2022, sobretudo por causa das falas presidenciais estimulando essa hostilidade. O que surpreende, porém, é que o cenário tenha deteriorado rapidamente.
"É claro que já era previsível a gente ter uma campanha mais violenta", diz Monte, "mas não tão cedo e não com essa brutalidade que já estamos vendo".
Para ele, "a eleição nem começou oficialmente, e estamos vendo assassinato com teor explicitamente de violência política", o que pressagia uma campanha diferente de todas as demais.
"Existe uma perspectiva de ter uma campanha de maior acirramento e embate porque o quadro se configura nessa disputa. As pessoas não vão expressar seu voto e sua escolha com medo de represálias e temendo a sua integridade física. Isso é muito grave. Cria uma atmosfera de medo", analisa.
Rodrigo Prando, cientista político da Faculdade Mackenzie, a violência tem escalado rapidamente, passando daqueles costumeiros ataques retóricos do presidente a atos no dia a dia, como o assassinato do guarda civil petista Marcelo Arruda, no Paraná.
"Isso tudo já tem tumultuado e exigirá a atenção dos candidatos", aponta, acrescentando que as campanhas de Lula e de outros nomes ao Planalto já vêm se cercando de cuidados com a segurança.
O petista, por exemplo, tem feito uso de colete à prova de balas em suas participações em eventos com eleitores depois da morte de um correligionário.
Professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Vitor Sandes projeta que, caso não exista uma atenção especial dos órgãos de controle e investigação no país, o quadro pode piorar ainda mais.
"Se não houver uma atuação incisiva das instituições no sentido de limitar e punir episódios de violência política", enfatiza, "haverá um claro incentivo a atos de extremistas que não compactuam com um princípio básico da democracia: a liberdade de expressão". (Henrique Araújo)