No dia em que o então ministro da Justiça Sergio Moro pediu demissão do governo de Jair Bolsonaro, em abril de 2020, os jornalistas Bela Megale e Aguirre Talento ainda não sabiam que estavam contando o capítulo final da Operação Lava Jato. A partir dali, a dupla, habituada à cobertura do dia a dia da política em Brasília, passou a mergulhar no desfecho da força-tarefa.
Dois anos e mais de 50 entrevistas depois, o resultado pode ser lido em “O fim da Lava-Jato: como a atuação de Bolsonaro, Lula e Moro enterrou a maior e mais controversa investigação do Brasil”, que sai agora pela Globo Livros.
Na obra, Aguirre e Bela recontam a “season finale” da operação, marcada por seu gigantismo – dezenas de fases desde 2014, quando foi deflagrada, mas também por suas controvérsias. O ponto de partida é a entrada de Moro no governo. O de chegada, a soltura do ex-presidente Lula e suas vitórias no Supremo.
Nesse trajeto, os jornalistas ajudam a jogar luz sobre um episódio central no desenho político-eleitoral do Brasil em 2022. Em conversa com O POVO, Aguirre e Bela abordaram o percurso da investigação e os desafios que encontraram pela frente.
Para eles, diferentemente de 2018, a disputa deste ano “já é uma eleição do pós-Lava Jato”.
O POVO – Lula, Bolsonaro e Moro “ajudaram a enterrar” a Lava Jato, segundo o livro que conta o ocaso da operação. Qual a cota de participação de cada um deles nesse processo?
Bela Megale – Vou começar falando do papel do Moro nesse processo, já que ele é o “pai” da Lava Jato. Era o juiz que esteve à frente da maior operação de combate à corrupção do país. O que a gente narra no livro é a atuação do Moro a partir do momento em que ele já mostra desejo de deixar a vida no Judiciário pra entrar na política. Primeiro, a gente pontua a entrada dele no governo Bolsonaro num momento em que tira a toga e vem pra Esplanada e aceita fazer parte do governo. Esse é um passo decisivo na mudança de rumo da Lava Jato. A gente também fala dos diálogos da Lava Jato que acabam sendo expostos no período em que o Moro ainda é ministro da Justiça, algo que deixa em evidência uma série de excessos na operação, principalmente na comunicação dos procuradores com o Moro e que reforça a questão da suspeição. Já em relação a Bolsonaro, no livro a gente expõe os bastidores desse desmonte das instituições e dos mecanismos do combate à corrupção que Bolsonaro conduz no seu governo, boa parte com Moro como ministro, o que é uma grande surpresa, pra poder livrar o filho dele, Flávio Bolsonaro, no esteio das acusações do caso Queiroz. Ele acaba sustentando uma série de afrouxamentos das instituições responsáveis pelo combate. Já em relação ao ex-presidente Lula, foi o principal alvo da Lava Jato. A gente detalha como foi esse embate traçado principalmente na esfera jurídica da defesa do ex-presidente, que não quis aceitar acordos até propostos pelo Supremo e insistiu em permanecer preso e só sair quando tivesse uma decisão. A gente também detalha como foi a mudança de clima, de quando Lula apenas sofre derrotas e ao final a defesa consegue enterrar mais de 25 ações penais contra o ex-presidente.
Aguirre Talento – No caso do ex-presidente, a gente relata como a defesa assumiu uma linha argumentativa além do jurídico, transformando as investigações da Lava Jato contra Lula numa perseguição política. Essa narrativa acabou sendo reforçada depois que vieram a público as mensagens dos hackers, que deram combustível para questionamento da competência da 13ª Vara Federal e de suspeição do Sergio Moro. O golpe final imposto à Lava Jato é o julgamento da suspeição do ex-juiz Moro, que é a primeira vez que o STF declara que o juiz que processou e condenou o ex-presidente Lula não tinha condições de imparcialidade pra conduzir aquele processo. Isso acaba jogando uma mancha de parcialidade em toda a Lava Jato e tem consequências que até agora são imprevisíveis. A gente tem visto diversos processos serem anulados no esteio desse entendimento do STF.
Megale – Também acho importante pontuar que a gente chama esses três nomes, que são nomes de peso e que tiveram papel decisivo (Lula, Moro e Bolsonaro), mas também detalhamos a participação de figuras importantes do Judiciário, do MPF, do procurador-geral da República, Augusto Aras, e também da vice-procuradora Lindôra de Araújo, uma aliada do presidente Jair Bolsonaro (PL), nessa cruzada contra a força-tarefa da Lava Jato. Inclusive, que tem o objetivo de acabar com qualquer legado em relação à Lava Jato no momento em que Moro sai do governo e ali se torna um grande inimigo do Bolsonaro.
OP – Houve uma combinação de fatores, então, a entrada do Moro no governo, o casamento do bolsonarismo com o centrão, a chegada do Aras também, que é parte do processo de desmonte. E uma perda de status da Lava Jato na opinião pública. Houve algum fator mais determinante?
Talento – É difícil atribuir a responsabilidade a um fator preponderante, mas a essa confluência de fatores e à combinação de atores. O Bolsonaro, por exemplo, que se elegeu com a bandeira da Lava Jato e, quando chegou ao poder, começou a minar as instituições de combate à corrupção e a tentar controlar essas instituições, colocar pessoas de confiança na PF e na PGR. Esse processo aconteceu ao mesmo tempo em que as investigações da Lava Jato estavam se esgotando e caindo no descrédito, não apenas porque atingiram o alto nível da classe política, mas também porque cometeram erros, criando um sentimento de um certo desgaste na sociedade. Isso permitiu impor sucessivas derrotas ao arcabouço legal do avanço da Lava Jato. É uma história muito semelhante ao que aconteceu com as Mãos Limpas na Itália.
Megale – Concordo com Aguirre, não existe um fator que se destaque, de fato existe esse pontapé inicial com a entrada do Moro no governo Bolsonaro e aí uma série de fatores que se somam no fim da operação. E, claro, que esses elementos da Vaza Jato também, que tiveram peso importante pra que a opinião pública acabasse se voltando contra a operação. Era um desafio, porque tinha uma série de poderosos delatados e se aproximava do Judiciário, mas quando tem essa sucessão de fatores e a exposição desses erros centrais na condução da Lava Jato, isso se soma para que a operação de fato chegue ao fim.
OP – Como foi o processo de investigação e a escrita do livro?
Talento – A gente vem acompanhando a Lava Jato desde o seu início, realmente. Acompanhava como se fosse um seriado, em que cada semana estava pra ocorrer um capítulo novo, a gente não sabia quem ia ser preso. Foi um terremoto não só jurídico, mas seu impacto na política foi muito grande desde 2014. Quando começou o governo Bolsonaro e Moro se tornou ministro da Justiça, como a gente faz cobertura em Brasília, passamos a acompanhar mais de perto o processo de fritura do ministro, desentendimentos entre ele e o presidente, o processo de escolha do PGR, as tentativas de interferência na PF. Até que tudo isso culminou com o momento em que Moro não aguentou mais a pressão pra trocar o comando da PF. Quando Bolsonaro resolveu unilateralmente demitir o diretor-geral Maurício Valejo, que era pessoa da confiança de Moro, ele resolveu pedir demissão. Aquele pronunciamento teve impacto forte em Brasília. Começaram rumores de que aquilo poderia deflagrar um processo de impeachment, um golpe forte no governo Bolsonaro. Muito rapidamente o procurador Augusto Aras pediu abertura de inquérito pra apurar se realmente Bolsonaro cometeu algum crime. A gente até narra com detalhes esse processo, porque o Aras não queria pedir abertura do inquérito, mas foi convencido pelos seus pares de que era um momento em que ele teria que honrar a biografia dele, ou seria cobrado. Como a gente estava acompanhando de perto e a gente tinha acesso a muitas fontes que estavam envolvidas diretamente no processo, tive a ideia com a Bela de que valeria contar essa história em um livro. A gente tem muita matéria em parceria, cobrimos o dia a dia dessa crise. Falei: acho que é uma coisa maior do que as matérias que a gente faz todo dia, temos que dar uma aprofundada e transformar essa história em um livro. A gente não sabia inicialmente qual seria o escopo, porque era uma coisa sobre os bastidores da passagem do Moro pelo Governo, a investigação de interferência, até que aquilo foi ganhando corpo. A gente começou a apuração pouco depois do rompimento do Moro com Bolsonaro, que foi em abril de 2020. Fomos entrevistando todos os personagens envolvidos, fazendo várias entrevistas, principalmente em off, com personagens que tinham passado pelo governo Bolsonaro, pessoas que tinham trabalhado com Moro, membros da PF, do MPF. Foi um processo que durou mais ou menos dois anos, até que, no fim, ficou mais claro pra gente que aquela história que a gente estava contando era realmente a história do fim da Lava Jato. O capítulo final da operação, digamos assim.
Megale – Foi quando a pandemia estava num momento bastante complicado. A gente escreveu o livro durante a fase mais crítica da Covid. Acabamos tendo que fazer muitas entrevistas por Zoom, a gente também viajou a Curitiba, já que boa dos personagens estava lá, pra fazer apurações, entrevistas in loco, fizemos algumas viagens de trabalho também. A gente se debruçou sobre uma série de documentos. Existia uma divisão, porque o Aguirre acompanhava muito o MPF e eu acompanhava a PF. As nossas apurações eram muito complementares, a gente era uma dupla, e somos até hoje, que trabalhava muito em sintonia. Quando ele trouxe essa ideia, a gente tinha sido procurado por editoras perguntando se a gente tinha alguma proposta, porque o tema da crise política estava quicando, todo mundo queria algo mais profundo sobre esse cenário. Moro larga a toga, entra na política, rompe com Bolsonaro, que começa a atacar a operação. Alguns livros detalharam o auge da operação, mas a derrocada da Lava Jato não estava sendo contada como merecia. Essa reviravolta não estava detalhada. A gente achou que era importante mergulhar nesse episódio.
OP – O livro chega num momento em que alguns personagens da Lava Jato estão tentando uma empreitada política, como Deltan Dallagnol e o próprio Moro. Vislumbram a possibilidade de um capítulo 2, com o pós-Lava Jato?
Megale – A gente ainda não teve conversa sobre isso, mas a gente não descarta. A gente tinha que encerrar o livro em algum momento, mas a gente sempre atualizava na parte final porque um episódio novo na vida do Moro, do Deltan e de outros personagens vinha acontecendo. Mas tinha que encerrar a obra, já que ela era focada na operação. Mas vemos hoje o Deltan com a possibilidade inclusive de ficar inelegível por causa dessa condenação no TCU. O próprio Rodrigo Janot, ex-PGR, desistiu de concorrer. Ele já tinha até número no Podemos com o qual concorreria ao cargo de deputado, mas abriu mão por causa também dessa condenação do TCU. O Moro também sofreu revés, já que teve que ser candidato pelo Paraná porque foi barrado na mudança de domicílio eleitoral para São Paulo. Então a história segue acontecendo.
Talento – Não só envolvendo os personagens da Lava Jato, como também os principais alvos da Lava Jato voltaram à cena política e são candidatos. Tanto o ex-presidente Lula, que foi condenado, chegou a ser preso e depois teve todas as condenações anuladas, como parlamentares, a exemplo do ex-deputado Eduardo Cunha. Vários outros personagens que foram atingidos pela Lava Jato acabaram voltando ainda mais fortes. Já é uma eleição do pós-Lava Jato, porque esse tema do combate à corrupção não é mais um tema tão popular entre as campanhas. A gente tem uma eleição completamente inversa do que ocorreu em 2018, que foi uma eleição fortemente marcada pela Lava Jato.