Em meio à campanha presidencial mais acirrada dos últimos anos, a violência política avança pelo Brasil. Na madrugada da última quinta-feira, 8, o ódio e a intolerância produziram mais uma vítima. Benedito Cardoso dos Santos, 44, apoiador do ex-presidente Lula (PT), foi morto a golpes de faca e machado por um eleitor do presidente Jair Bolsonaro (PL). O crime aconteceu na cidade de Confresa (MT), a 1.160 quilômetros da capital Cuiabá.
O caso ganhou repercussão ontem, a prisão do acusado de cometer o crime. De acordo com a Polícia Civil mato-grossense, Rafael Oliveira, 24, confessou o homicídio em depoimento. O delegado responsável pelas investigações do caso, Victor Oliveira, informou que não há dúvidas quanto à motivação do homicídio. "O que levou ao crime foi a opinião política divergente. A vítima estava defendendo o Lula e o autor, defendendo o Bolsonaro", disse.
Os dois homens trabalhavam juntos cortando lenha em uma propriedade privada do município. À noite, após os atos de 7 de Setembro pró-Bolsonaro, eles tiveram uma tensa discussão sobre política, com diversas trocas de xingamentos.
Segundo a Polícia, Benedito teria dado um soco no rosto de Rafael e o ameaçado com uma faca. Em seguida, o apoiador de Bolsonaro conseguiu tomar a arma do colega e desferiu contra ele várias golpes com o objeto nas costas.
Ao ser atingido, Benedito caiu no chão e continuou sofrendo golpes no pescoço, nos olhos e na testa. Segundo o delegado, foram ao menos 15 facadas. Mesmo com os golpes, a vítima ainda apresentava sinais vitais.
Rafael, então, foi até o barracão onde ficavam guardados os instrumentos de trabalho e pegou um machado. Com a arma, ele acertou o pescoço de Benedito, que morreu em seguida.
Após o homicídio, Rafael escondeu as armas do crime e foi até um hospital da cidade para solicitar atendimento médico devido a cortes na mão e na testa. Aos profissionais de saúde, ele alegou que tinha sido vítima de uma tentativa de roubo.
Após receber atendimento, o suspeito foi levado para a delegacia para prestar depoimento e, segundo a polícia, confessou o crime e a motivação. O homem foi preso em flagrante, mas por decisão da Justiça, teve a prisão convertida em preventiva durante audiência de custódia. Ele vai responder por homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e cruel.
Na decisão que decretou prisão preventiva, o juiz Carlos Eduardo Pinho Bezerra alertou que a intolerância pode fazer com que a sociedade regrida a tempos de barbárie. "Lado outro, verifica-se que a liberdade de manifestação do pensamento, seja ela político-partidária, religiosa, ou outra, é uma garantia fundamental irrenunciável", enfatizou o magistrado.
Os casos de violência política no contexto da forte polarização entre Lula e Bolsonaro têm se tornado cada vez mais recorrentes desde a pré-campanha. Em julho, o militante petista Marcelo Arruda foi assassinado a tiros durante sua festa de aniversário pelo policial penal bolsonarista Jorge Guaranho, em Foz do Iguaçu (PR). O crime completou dois meses nesta sexta-feira, 9.
Guaranho está preso preventivamente no Complexo Médico Penal de Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Ele é réu por homicídio duplamente qualificado e deve ser ouvido pela primeira vez pela Justiça na próxima quarta-feira, 14, quando está marcada a primeira audiência de instrução do caso.
No começo deste mês, um policial militar baleou um homem dentro de uma igreja evangélica, em Goiânia (GO), após os dois discutirem sobre partidos de esquerda. O assunto foi introduzido entre os fiéis pelo próprio pastor, que se manifestou contrário à candidatura de Lula.
A vítima, que discordava da posição do líder religioso, foi repreendida pelo PM e em seguida levou um tiro na perna. O militar foi levado a uma delegacia para prestar depoimento e liberado em seguida.
Ontem, um bolsonarista se envolveu em uma briga generalizada com militantes do PT em São Gonçalo, região Metropolitana do Rio de Janeiro. A confusão aconteceu na porta de uma igreja evangélica onde Lula era aguardado para um ato religioso. Ao fim do tumulto, o apoiador de Bolsonaro deixou o local com a cabeça sangrando.
O carro dele continha adereços em apoio a Bolsonaro e contra Lula. No vidro da janela da porta traseira, havia uma imagem do petista com roupa de presidiário e atrás das grades. Um dia antes do evento, o bolsonarista avisou que iria protestar.
"Amanhã eu estou aqui para protestar contra esse safado, Lula ladrão na cadeia, Bolsonaro nele", escreveu em uma rede social.
O clima de hostilidade entre petistas e bolsonaristas aumentou em grande escala após os atos de 7 de Setembro. Em discurso a apoiadores no Rio de Janeiro, Bolsonaro defendeu "extirpar" opositores e chamou os eleitores de esquerda de "cabeças vazias".
No ato realizado em Fortaleza, na Praça Portugal, o deputado estadual Delegado Cavalcante (PL), apoiador do presidente, ameaçou ganhar a eleição "na bala", caso o resultado nas urnas não seja favorável a Bolsonaro.
Presidenciáveis repercutem caso e criticam intolerância
Os candidatos à Presidência da República repercutiram o caso da morte de Benedito Cardoso dos Santos, apoiador do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assassinado por Rafael Silva de Oliveira, eleitor de Jair Bolsonaro (PL).
Em postagem nas redes sociais, Lula lamentou o assassinato de Benedito. "A intolerância tirou mais uma vida. O Brasil não merece o ódio que se instaurou nesse país", afirmou o candidato petista. "Meus sentimentos à família e amigos de Benedito."
O candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes, buscou responsabilizar os rivais pelo ocorrido. Segundo ele, Benedito se tornou "mais uma vítima da guerra fratricida, semeada por uma polarização irracional e odienta".
Mais cedo, o pedetista já havia criticado Lula por comparar bolsonaristas a membros da Ku Klux Klan - grupo supremacista branco -, colocando o petista como um dos responsáveis pelo "radicalismo" nas ruas. "Abaixo a violência política. O Brasil quer paz!", disse, no Twitter.
A candidata do MDB à Presidência, Simone Tebet, também se manifestou sobre o episódio. "Este não é o Brasil que podemos aceitar. O Brasil é um país de paz, quer paz, quer união, especialmente na área política. Precisamos que o presidente da República dê um basta nisso. Ele estimula o ódio através de fake news, através de suas redes sociais. É preciso que ele dê um basta. Nenhum filho pode mais dormir sem um pai por uma briga fratricida por questões políticas", disse.
"Quando a política é tomada pela violência, significa que caminhamos rumo à barbárie", afirmou Felipe d’Avila, candidato do Novo, no Twitter. Presidenciável pela UP, Leo Péricles disse que "a violência é um dos sinais do avanço do fascismo".
Bolsonaro radicaliza discurso contra PT após novo caso de violência política
No dia em que veio a público o assassinato de um simpatizante do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em Mato Grosso, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o petista mantiveram o tom beligerante dos discursos. O atual chefe do Executivo disse que vai "varrer" o PT para o "lixo da história". Já Lula afirmou que o ato de 7 de Setembro em Copacabana, no Rio, representava a "supremacia branca". "Até comparei com a Ku Klux Khan", disse.
Em Araguatins (TO), Bolsonaro chamou o PT de "praga" que "só gera desgraça". "Essa praga sempre está contra a população. Esse pessoal não produz nada, só gera desgraça para o povo brasileiro. Com essa nossa reeleição, com a eleição do (Ronaldo) Dimas aqui para o governo do Estado, pode ter certeza, varreremos para o lixo da história esse partido dito dos trabalhadores, mas que, na verdade, é composto por desocupados", disse o presidente ontem. Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato chegou a falar em "fuzilar a petralhada".
Lula, por sua vez, em entrevista coletiva em um hotel da zona sul do Rio, reforçou o que havia dito anteontem sobre as manifestações pró-Bolsonaro de quarta-feira, quando comparou os atos com uma "reunião da Ku Klux Klan".
"O palanque aqui de Copacabana, pela fotografia que eu vi, e eu vi só na televisão, era a supremacia branca no palanque. Eu até comparei que parecia um pouco a Ku Klux Klan, só faltou o capucho, a máscara, porque era isso o palanque. É um palanque de elite", afirmou o petista ontem.
Pelo Twitter, Bolsonaro rebateu. "Associar os milhões de famílias que foram pacificamente às ruas manifestar seu amor pelo Brasil no dia de nossa Independência a um grupo terrorista, racista e antissemita, como a Ku Klux Klan, é de longe a maior e mais covarde ofensa ao povo brasileiro que já vi em minha vida", escreveu. "Tais ofensas se tornam ainda mais revoltantes quando são proferidas por quem estava preso por assaltar o mesmo povo que agora ataca, e que está tentando, a todo custo, voltar à cena do crime. É um ex-presidiário xingando aqueles que vivem suas vidas de forma honesta e justa."
No discurso em Araguatins, Bolsonaro reforçou a defesa de sua pauta ideológica. Afirmou que o PT quer descriminalizar o aborto, legalizar as drogas e impor o que ele chama de ideologia de gênero. "Nós não podemos errar. Sabemos que é uma luta do bem contra o mal. O lado de lá quer o comunismo, o lado de lá quer desarmar o povo de bem do Brasil", disse.
Para Lula, porém, Bolsonaro "não se dá conta de estar armando o crime organizado" ao facilitar a compra de armas e munições. "Enquanto no meu governo a gente recolheu 620 mil armas neste País, temos um cidadão na Presidência que faz decreto liberando armas à vontade, não importa o calibre, não importa a quantidade de balas", afirmou.
Eleição vive escalada da violência real e simbólica, afirmam especialistas
A quantidade de atos de violência - simbólica e real - na campanha eleitoral deste ano afeta sua qualidade, diferenciando-a de todas as eleições desde a redemocratização. A sucessão de ameaças e agressões se tornou natural por meio da identificação do adversário político como inimigo.
Essas são algumas das características verificadas nesta eleição. A condução do debate político por grupos e pessoas radicalizadas culminou em episódios como os recentes assassinatos registrados em Foz do Iguaçu (PR) e em Confresa (MT) - onde o apoiador de Bolsonaro Rafael Silva de Oliveira, de 22 anos, matou o petista Benedito Cardoso dos Santos, de 44 anos, e ainda tentou decapitá-lo.
Não se estaria diante de fatos isolados, mas de uma escalada do ódio que as instituições não contiveram em seu início. A organização internacional Human Rights Watch repudiou ontem o assassinato em Confresa e afirmou que "todos os candidatos deveriam condenar qualquer ato de violência política".
A reportagem ouviu especialistas em ética, ciência política e direitos humanos para compreender o fenômeno reforçado pelo delito em Mato Grosso, cujo autor responderá por homicídio duplamente qualificado - por motivo torpe e cruel. "A intolerância não deve e não será admitida, sob pena de regredirmos aos tempos de barbárie", escreveu o juiz Carlos Eduardo Pinho Bezerra de Menezes, ao manter o criminoso preso
O assassinato aconteceu no dia 7 de Setembro. Durante os últimos dias, políticos fizeram declarações que não contribuem para desanuviar o clima da eleição. Ainda que conflitos e contradições sejam parte da democracia, o meio pacífico deixou de ser a resolução da diferença em discursos de autoridades.
O deputado estadual e candidato à Câmara Delegado Cavalcante (PL-CE), por exemplo, afirmou que, em caso de derrota de Bolsonaro em outubro, a vitória viria "na bala". Já o presidente reiterou que sua luta é a do "bem contra o mal" e defendeu "extirpar a esquerda" durante seus discursos recentes. Da mesma forma, nada contribui para a redução do quadro de intolerância o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, relacionar os apoiadores de Bolsonaro a membros do grupo supremacista branco Ku Klux Klan.
Em São Gonçalo, no Rio, um apoiador de Bolsonaro foi agredido nesta sexta-feira, 9, por militantes petistas. Rodrigo Duarte passava na frente do Clube dos Tamoios, onde o candidato petista participaria de um evento com um carro com adesivos que mostravam o ex-presidente vestido de presidiário. Militantes petistas bateram no carro. Duarte teve o telefone celular arrancado de sua mão e foi agredido.
Dois dias antes das manifestações pró-Bolsonaro na data do bicentenário da Independência, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin suspendeu trechos de decretos que afrouxavam as regras para a compra de armas e munição. Na decisão, escreveu que o início da campanha "exaspera o risco de violência política".
Aluno da pensadora Hannah Arendt, o ex-chanceler e professor da USP Celso Lafer disse, que nas eleições passadas, desde a redemocratização, e ainda na distensão do regime militar, as relações políticas eram caracterizadas pela dinâmica entre adversários. "Ela podia ser mais incisiva ou intensa, mas não passava pela intimidação da violência."
As instituições teriam fracassado para conter a violência política? Lafer afirmou que as medidas tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, como limitar o porte de arma no dia das eleição, são medidas que defendem o estado democrático de direito.
Para José Álvaro Moisés, a violência política não visa só destruir quem pensa ou tem características diferentes. Ela também pretende estabelecer um clima de medo para paralisar opositores. "É a contraposição da ideia da política baseada na lei", disse o cientista político.
Lafer aponta o dedo para a maneira pela qual Bolsonaro se comporta na esfera pública. O ex-chanceler no governo Fernando Henrique Cardoso vê nela inspiração nas concepções do pensador alemão Carl Schmitt. "A polícia não é uma relação entre adversários, mas uma relação de amigo e inimigo, que eu conduzo com o fim de destruir o inimigo por meio da intimidação da palavra e da violência." Lafer e outros temem uma escalada.
Para ele, o ímpeto com o qual Bolsonaro procurou disseminar o uso de armas, contrariando a legislação anterior, facilita que a violência ocorra na sociedade e assuma as características políticas. Em Crises da República, Arendt afirmou que a violência destrói o poder e seu uso "compromete o poder no âmbito de uma democracia".
Por isso que essa eleição seria uma eleição com características únicas e que se diferencia, inclusive da eleição de 2018 em que Bolsonaro foi eleito, porque, segundo Lafer, ela se faz agora a partir do acúmulo de recursos de que ele dispõe como presidente. Moisés considera que, desde 2018, há um clima de naturalização da violência, que se acentuou neste ano para permitir aos contendores usar esse mecanismo para fazer valer a sua vontade. "Para evitar o que Thomas Hobbes chamava de guerra de todos contra todos e, sabendo que não se pode ganhar sempre, concorda-se em participar do processo em que nem sempre se ganha, mas preserva o clima de sobrevivência, união e busca de consenso", disse.
Para o professor de ética Renato Janine Ribeiro - que ocupou a pasta da Educação no governo de Dilma Rousseff (PT) -, a resposta não está apenas no presente, mas em como as instituições se comportaram diante da história. "Em grande parte o que vivemos é fruto da leniência com que as instituições e a própria mídia trataram o atual governante. Ele devia ter sido punido quando ameaçou por bombas e quartel e defendeu fuzilar Fernando Henrique."
Lafer ressalta que o principal suporte desse fenômeno da violência é a retórica. O ex-chanceler a diferencia do "nós e eles" de Lula, que não usa palavras como "metralhar" e "eliminar".