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"Extrema-direita perdeu o monopólio da circulação"
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"Extrema-direita perdeu o monopólio da circulação"

Para pesquisador, nova estratégia adotada por campo progressista tem atordoado grupos bolsonaristas na disputa eleitoral nas redes sociais
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DIOGO Silva Corrêa é professor da Universidade de Vila Velha (UVV), no Espírito Santo (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação DIOGO Silva Corrêa é professor da Universidade de Vila Velha (UVV), no Espírito Santo

A extrema-direita não está mais sozinha na arena da disputa digital no Brasil. Doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, o professor Diogo Silva Corrêa avalia que o campo progressista começou a mobilizar ferramentas e táticas antes restritas ao conservadorismo nas eleições.

Segundo ele, a partir do que vem sendo chamado de “janonismo cultural”, em referência ao deputado federal André Janones, do Avante-MG, partidos e grupos de esquerda passam a operar um enfrentamento do bolsonarismo em paridade de armas.

“Em alguma medida, esse tipo de atitude obriga a extrema-direita a perder o monopólio da circulação dessa forma de fazer política”, analisa o pesquisador, que leciona no programa de pós-graduação em Sociologia Política da Universidade de Vila Velha (UVV), no Espírito Santo.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

O POVO – A (extrema) direita dominou a disputa nas redes em 2018. Em 2022, o cenário parece diferente, não?

Diogo Silva Corrêa – Em 2018, essa extrema-direita, que substitui essa direita democrática que estava estabelecida até então pelo PSDB, importou uma nova forma de fazer campanha eleitoral que replica em certa medida alguns modelos que estavam estabelecidos no Brexit e na eleição do Trump. Uma forma de fazer política que vai ser estabelecida sobretudo pelo Steve Bannon. No caso brasileiro, aproveitam essa popularização dos smartphones e do Whatsapp para introduzir aqui essa estratégia de campanha pautada pela difusão massiva de notícias falsas, as famosas fake news. Fake news é essa forma particular de circulação de notícia falsa a partir de uma nova infraestrutura tecnológica. Introduzem essa difusão massiva de notícias falsas, de baixa qualidade, mas que simulam uma estética de realidade, sensacionalista e popular. O objetivo disso é produzir sistematicamente o pânico moral, porque o pânico moral captura a atenção e produz engajamento. Essa extrema-direita vai introduzir esse novo modo de fazer campanha e explorar massivamente as questões morais, que, associadas ao neoliberalismo econômico do Paulo Guedes, vão resultar no conservadorismo dos costumes e toda essa pauta em torno da ideia de Deus, pátria e família. É importante reconhecer que, desde pouco antes de 2018, já se tem um ecossistema informacional da direita sendo formado, trazido em boa parte pelos “think tanks” estadunidenses, como o Brasil Paralelo, o MBL e outras figuras ligadas ao Olavo de Carvalho. É esse caldo, junto com a capilaridade dos grupos de Whatsapp que o bolsonarismo consegue construir nessa nova forma de fazer campanha, que vai conjugar uma força para ganhar as eleições em 2018. Vamos para 2022. Essa estratégia não é uma novidade para a esquerda e o PT, que começam a tatear procurando meios para lidar com a campanha na rede, considerando que eles (bolsonaristas) partem de uma vantagem porque já têm um ecossistema informacional consolidado.

OP – Como avalia essa queda de braço na campanha a partir da adoção pela esquerda de táticas consagradas pelo bolsonarismo?

Corrêa – Acho que boa parte da campanha do campo progressista agora é um pouco sobre o que fazer, e aí entra a presença do André Janones, deputado federal de Minas Gerais que foi do PT de 2013 a 2015, depois migra para o PSC e hoje está no Avante, que é um partido pequeno. É um deputado, como ele mesmo diz, que voava abaixo do radar, porque sempre teve engajamento nas redes, mas era alguém desconhecido pelo público mais amplo fora de Minas. O Janones estava como pré-candidato à Presidência, mas, vendo que não tinha chances, decide conversar com o Lula, e o Lula o acolhe. Acho que ali tem uma oportunidade do Lula, que ele percebe, de ter uma renovação das estratégias do PT nas redes. O Janones já tinha engajamento na internet, mas era bom pros dois lados. Ele tinha engajamento, mas não aparecia como um nome relevante fora de Minas para pleitear cargos no Executivo. No caso do Lula, era importante pra ele porque ele podia, através do Janones, introduzir outra estratégia nas redes. O que acontece é que ele começa a usar determinadas táticas de extrema-direita, como vídeos sensacionalistas. A primeira grande peça é o vídeo do Bolsonaro no templo maçom. Pouco antes do primeiro turno, temos um vídeo de um jovem associando o PT ao satanismo. O que o Janones faz? Pega um vídeo do Bolsonaro, um vídeo antigo, de 2016, porque ele sabe que a maçonaria é demonizada pelos evangélicos de modo geral. Ele pega isso e começa a jogar nas redes sociais. Ele vai difundindo em larga escala esse tipo de vídeo com o objetivo de produzir pânico moral, furar a bolha do campo progressista e conseguir atingir esse campo pelo menos para dizer: se vocês acham que o Lula é potencialmente satanista, o Bolsonaro também é. O método é também interessante porque tem uma divisão do trabalho aí. O Lula continua a fazer a campanha dele, normalmente. Não é como Bolsonaro faz, o Bolsonaro mesmo faz parte desse modo sujo de fazer política. O Lula continua ficando no canto dele, fazendo o tipo de campanha até então, e esse jogo sujo, digamos assim, passa a ser delegado e exercido pelo Janones, que vai usar os mesmos métodos de “trolagem” e produção da dúvida. Pega uma fala fora de contexto e coloca uma dúvida. É importante dizer que o Janones, de modo geral, opera com vídeos verídicos, mas dá uma tonalidade sensacionalista e por vezes “fake”, porque de fato e intencionalmente produz uma descontextualização da fala daquele vídeo para introduzir algum novo tipo de pânico.

OP – A entrada de um personagem como Janones no bloco lulista é uma inflexão nas estratégias do campo de esquerda?

Corrêa – Acho que hoje, quando a gente olha para essa postura do campo progressista a partir do que tem sido chamado de “janonismo cultural” ou de “Carluxo do bem”, temos duas posições. Uma é próxima ao que o Janones defende, que diz que é preciso usar as armas do inimigo pra vencer a guerra comunicacional. A gente pode dar o exemplo da guerra da Ucrânia. Eu posso ser contra o uso de arma, no entanto isso não quer dizer que você seja contra os ucranianos pegarem em armas para defenderem seu país e seu território ante a invasão russa. O que o Janones diz é: eu não criei a guerra, eu sou contra a “arma”, mas uma vez que a extrema-direita colocou a guerra nesses termos, é importante que essas armas sejam utilizadas. Porque não adianta ter uma vitória moral e uma derrota eleitoral. A primeira defesa é então: é importante, sim, combater com as mesmas armas, senão eles vão perder a eleição. É isso que o Janones está argumentando. O outro ponto é que esse tipo de estratégia obriga a extrema-direita a ficar contra as cordas. Coloca a extrema-direita contra a parede, e ela é obrigada a responder e a se justificar em vez de só ficar espalhando fake news. Por exemplo, o Bolsonaro teve que responder sobre o templo maçom e o próprio Malafaia fez uma live dizendo que não tinha problema nenhum o Bolsonaro estar num templo. É uma forma de, em vez de eles estarem só propagando fake news, também responder. Um terceiro elemento que não está sendo suficientemente explorado, e que tenho percebido acompanhando os grupos, é como os ataques do campo progressista obrigam a própria extrema-direita a expor os seus métodos ao denunciar a esquerda de fazer o mesmo. Há um vídeo do Eduardo Bolsonaro que é curioso em que ele faz isso, alertando que tem “bots” espalhando notícias falsas de maneira sistemática e a esquerda está botando não sei quantos milhões de reais etc. Em alguma medida, esse tipo de atitude obriga a extrema-direita a perder o monopólio da circulação dessa forma de fazer política. Ao mesmo tempo, faz com que seja obrigada a dizer o que está fazendo e, ao fazer isso, também fala sobre o que ela faz desde 2018.

OP – Quais os efeitos possíveis de uma disputa eleitoral que se dá nesses termos e a partir desse território moral e religioso?

Corrêa – A gente tem um conjunto de pessoas no campo progressista que insiste em que usar as mesmas táticas da extrema-direita é um erro, e por duas razões: a primeira razão é que, segundo esse campo que é contrário ao “janonismo” cultural, vencer a eleição nos mesmos termos que a extrema-direita já é em si uma derrota, uma vez que isso igualaria o campo progressista ao que ele condena. É um dos argumentos de quem é contra esse uso: se a gente começa a fazer as mesmas coisas que a direita faz, ainda que nós estejamos defendendo um campo progressista e eles um campo autoritário, nós estamos cada vez mais no igualando a eles, portanto eles já estão ganhando ao rebaixar o debate a esse nível. O segundo ponto é que esse grupo insiste sobre o risco dessa postura no médio e longo prazos. Primeiro porque não só não se sabe o quanto essa estratégia de fazer o jogo sujo da direita vai se reverter em voto real, não dá pra medir, não dá pra saber. Mas é preciso também olhar o que esse tipo de guerra suja informacional pode produzir sobre a esfera pública. No final das contas, o ponto é: a gente deixa de discutir questões relevantes como emprego, renda, educação, saúde e fica preso numa espécie de guerra informacional cujo objetivo é apenas a produção do pânico moral e engajamento. Seria a morte do debate público, na medida em que entrar nesse jogo é ficar eternamente preso nessa lógica da “mitagem”, da lacração, de simplesmente trolar o outro, e a trolagem sendo aqui uma forma de se colocar que nega ou que quer humilhar o outro, mostrar o quanto ele é ridículo, o quanto não deve ser levado a sério, ao invés de tentar estabelecer, no debate público, não estamos falando de um consenso racional, mas um dissenso razoável. Ou seja, de conseguir estabelecer, dentro da esfera pública, um dissenso razoável em uma campanha em que há duas perspectivas que tentam buscar o bem comum por caminhos diferentes e que podem dizer que uma acredita num tipo de organização social com maior intervenção do estado e outra que dá mais ênfase pro mercado. E que se pode, a partir disso, estabelecer algum tipo de diferença. O que esse grupo que é contrário ao janonismo cultural argumenta é que, no médio e longo prazos, isso (o janonismo) reduz a esfera pública, e a própria rede social e a dinâmica da campanha começam a se pautar por questões que, no final das contas, são irrelevantes do ponto de vista concreto da vida e dos efeitos que isso vai ter. Fica mais numa discussão que não é tão relevante quanto discutir temáticas como emprego e saúde.

OP – Isso pode significar então um novo patamar de arena pública e política no Brasil?

Corrêa – O que vai acontecer no médio e longo prazos a gente não pode saber, mas a gente pode analisar tendências e pensar em possíveis antecipações. Queria mencionar uma coisa que não mencionei. Apesar de toda essa lógica da “mitagem”, da lacração e da circulação de fake news, é importante olhar também o fenômeno de que essas plataformas (Twitter, Youtube etc.), sobretudo a partir dos negacionismo da vacina e da eleição do Trump e do Bolsonaro, começaram a ser duramente criticadas e, a partir de um determinado momento, passaram a colocar restrições. Houve recentes banimentos das falas do Trump e do Bolsonaro, e o próprio Whatsapp começou a colocar restrições, limitar envio de mensagens etc. Esses dispositivos de restrição foram criados em função da incorporação parcial que essas empresas fizeram das críticas que foram dirigidas a elas. É importante dizer que essa politização deve passar não só por um esforço dos lados, do campo progressista ou da extrema-direita, mas das próprias plataformas. Porque uma das questões essenciais vai ser a regulação que essas plataformas vão ter em relação ao combate da difusão de informações falsas e formas de regular o debate para que ele não descambe para esse tipo de problema. Acho que de fato a gente pode argumentar que existe uma patologia da esfera pública no presente e que é preciso fazer alterações e regulações no médio e longo prazos, mas regulações que advenham desse aprendizado que temos tido a partir das eleições e de situações reais, para que a gente possa construir um debate público de melhor qualidade, que possa estar mais preocupado com dissensos razoáveis do que com pânico moral se o candidato x ou y tem pacto com o satanás.

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