O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrentou ontem o primeiro desafio antes de assumir seu terceiro mandato: o silêncio de Jair Bolsonaro (PL), que ainda não reconheceu sua derrota nas eleições que colocaram a polarização do país em evidência. O líder petista venceu o presidente de extrema-direita por uma margem estreita, de 50,9% dos votos contra 49,1%.
Até o fechamento desta página, mais de 24 horas após a confirmação do resultado, Bolsonaro não havia se pronunciado sobre a vitória de Lula, que foi reconhecida de imediato pelos líderes de Estados Unidos, Alemanha, França e Rússia.
Ontem, Joe Biden telefonou para Lula para destacar a "sólida relação" entre os Estados Unidos e o Brasil e ambos prometeram trabalhar como "parceiros" na luta contra a crise climática e a migração regional, entre outros "desafios comuns", disse a Casa Branca em um comunicado.
Lula também teve um encontro em São Paulo com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, durante o qual prometeu visitar o país vizinho antes de tomar posse em 1º de janeiro.
Enquanto isso, Bolsonaro permanece em silêncio. O presidente em fim de mandato chegou cedo ao Palácio do Planalto, em Brasília, onde avaliou uma possível declaração com sua equipe. Em seguida, partiu para a residência oficial do Palácio da Alvorada.
Durante seu discurso de vitória, Lula manifestou sua preocupação com a transição de poder: "Preciso saber se o presidente vai permitir que haja uma transição".
Apenas alguns dos aliados parlamentares de Bolsonaro admitiram a derrota nas redes sociais, onde o bolsonarismo costuma ser muito ativo.
Caminhoneiros e outros manifestantes bloquearam estradas em 11 dos 26 estados do país e no Distrito Federal, em repúdio à vitória da esquerda. A polícia interveio para liberar algumas vias.
"Não vamos aceitar perder o que conquistamos até agora, o que queremos é que prevaleça o que está na nossa bandeira: ordem e progresso. Não aceitamos a forma como essa eleição aconteceu", disse Antoniel Almeida, 45, em Barra Mansa, um dos pontos de protesto no Rio de Janeiro.
A Bolsa de Valores de São Paulo subiu 1,31%, enquanto o real se valorizou em relação ao dólar, para 5,16. Na sexta-feira, havia fechado em 5,34.
Consciente dos desafios que enfrentará a partir de 1º de janeiro, quando será empossado, Lula reconheceu em seu discurso que governará em "uma situação muito difícil" e destacou a necessidade de restabelecer a unidade dos brasileiros.
A transição pode representar um desafio para Lula, explicou Paulo Calmon, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). "Lula deve ter cuidado, primeiro com um 'terceiro turno': com qualquer desafio que Bolsonaro e seus aliados possam criar, como (Donald) Trump nos Estados Unidos, para deslegitimar sua vitória e mobilizar seu eleitorado contra ele", afirmou.
Lula teve 2,139 milhões de votos a mais que Bolsonaro, a vitória mais apertada em um segundo turno na história da democracia brasileira, após uma campanha polarizada e tensa.
Marco Antônio Teixeira, cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirmou que o presidente eleito terá que trabalhar para "ampliar a legitimidade do governo", com a presença no Executivo de "setores não petistas".
O Congresso, que em 2 de outubro se inclinou à direita com a eleição de conservadores e aliados de Bolsonaro, deve apresentar uma oposição mais forte do que as que Lula enfrentou em seus dois outros governos. O PL de Bolsonaro elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, com 99 representantes.
Lula, que governou o Brasil de 2003 a 2010, chega ao poder com o apoio dos mais vulneráveis, grupo que possui uma memória afetiva da bonança sob sua administração. Ele fez várias promessas para melhorar a economia, incluindo aumentar o salário mínimo e reforçar os programas sociais.
Adriano Laureno, da consultoria Prospectiva, disse que o resultado de Bolsonaro, que foi o segundo colocado mais bem votado na história do país, significa que Lula terá uma oposição "forte, organizada, inclusive nas ruas".
Durante a campanha, o líder do PT destacou as conquistas socioeconômicas de seus dois primeiros mandatos, como a saída da pobreza de mais de 30 milhões de brasileiros graças a iniciativas sociais financiadas com o 'boom' das commodities.
O terceiro mandato de Lula não contará com o mesmo cenário favorável: embora a economia dê sinais de melhora, com crescimento, menos inflação e mais emprego, está longe da prosperidade dos anos 2000 e enfrenta um mundo em risco de recessão global.
Se não forem atendidas, as expectativas podem voltar como um bumerangue, afirmam os analistas.
"É um governo que começa com muita dificuldade na parte econômica. Vai assumir num cenário internacional complicado, numa possível recessão, com juros muito altos no Brasil e mais essa bomba fiscal para lidar" (R$ 400 bilhões), afirmou Laureno.
Jair Bolsonaro completou um dia sem reconhecer a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva na disputa pelo Palácio do Planalto. Desde a confirmação do resultado até o fechamento desta página, o chefe do Executivo permanece em silêncio, sem falar com a imprensa, fazer pronunciamentos ou publicar mensagens nas redes sociais.
A expectativa entre aliados do presidente é de que ele se manifeste nesta terça-feira, 1º. De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, Bolsonaro disse a ministros que não vai contestar o resultado da eleição, mas pode fazer críticas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ministros próximos a Bolsonaro se reuniram ontem com ele no Planalto. De acordo com fontes, estiveram presentes Ciro Nogueira (Casa Civil), Fábio Faria (Comunicações) Paulo Guedes (Economia) e Carlos França (Relações Exteriores), além da presidente da Caixa, Daniella Marques.
Na noite de domingo, Bolsonaro se recusou a receber aliados e se isolou no Palácio da Alvorada após a derrota. De acordo com fontes, ao menos três ministros e dois deputados que foram à residência oficial não conseguiram ser recebidos pelo chefe do Executivo. Um deles foi o titular da pasta de Minas e Energia, Adolfo Sachsida.