Perto de três centenas de pessoas escaladas e distribuídas entre dezenas de grupos técnicos, que se debruçam sobre todas as áreas do governo de Jair Bolsonaro (PL) em quatro anos de administração.
Esse é o tamanho do desafio da equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O gigantismo da comissão, montada sob a coordenação de Geraldo Alckmin (PSB), vice na chapa vencedora, reflete a coalizão que os levou ao Planalto em 2022.
Dos 280 nomes até aqui anunciados por Alckmin, quase metade tem filiação partidária, da qual a maior parte se origina na própria legenda do ex-presidente, que agora retorna a um terceiro mandato.
Onze cearenses integram esse time. De advogados a professores, passando por quadros técnicos do Ministério da Educação e gestores eleitos pelo PT, a exemplo do ex-governador Camilo Santana (PT), que vai ocupar cadeira no Senado, a composição atua em frentes diversas e com finalidades distintas.
De acordo com membros da transição ouvidos pelo O POVO, há uma dupla tarefa dos participantes desde que entraram em campo: numa etapa inicial, ela consiste em fazer um diagnóstico pormenorizado, até dia 30/11, da gestão que se encerra.
Depois disso, e uma vez a par de todas as informações disponíveis, preparar um relatório que será apresentado primeiro ao coordenador ou coordenadora de cada grupo de trabalho e, na sequência, ao núcleo central da transição, de maneira a subsidiar decisões posteriores.
Convidada a compor o GT de comunicação nesse processo de mudança, a professora e pesquisadora Helena Martins, da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que, além do levantamento prévio a cargo da equipe, os encarregados de cada setor também mapeiam possíveis atos de Bolsonaro que poderão ser revogados por Lula quando for empossado.
“A tarefa de todos os GTs é, até o fim deste mês, fazer uma avaliação do governo, das políticas desenvolvidas em cada área, da situação em termos de pessoal, de orçamento por causa dos cortes, e apontar possíveis atos do Bolsonaro que devam ser revogados”, antecipa.
Segundo a docente, um dos pontos sensíveis já identificados pela equipe é a questão dos sigilos de 100 anos, determinados pelo chefe do Executivo sobre temas de seu interesse estrito, político ou eleitoral. Outro tópico nesse segmento diz respeito à EBC, que deve ter atuação potencializada no governo Lula.
Cumprida essa fase, segue-se a uma outra, que vai se deter mais especificamente num organograma relacionado à estruturação de possíveis pastas do ministério de Lula.
Advogado e também professor de Direito, Marcelo Uchôa é outro nome a se somar à transição, mas no GT de Direitos Humanos. À reportagem, ele indica as prioridades pela frente no pouco tempo que ainda resta.
“Me foi pedido para fazer um trabalho de análise das relações internacionais do ministério (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos)”, cita Uchôa, acrescentando que, entre essas atividades das quais foi incumbido, está sobretudo avaliar eventuais recomendações de órgãos internacionais descumpridas pelo Brasil e tratados aos quais o país teria deixado de ratificar.
Além disso, continua, “me foi pedido também para, junto com um grupo mais próximo ao Silvio Almeida, fazer análise de todos aqueles atos jurídicos tomados por esse ministério e que serão objeto do revogaço”.
“Vamos trabalhar até o dia 30 deste mês para entender o que foi feito nesse Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”, reforça.
Educadora e servidora do Ministério da Educação (MEC), Jaana Flávia Fernandes prevê a entrega do relatório nas próximas semanas. Questionada sobre o que o GT já teria sinalizado como gargalos da gestão Bolsonaro, ela responde que a falta de diálogo com estados e municípios na elaboração de políticas públicas na área.
“A lei de cotas, por exemplo, completa dez anos e precisa ser revista, e não tem um grupo de trabalho para isso”, declara.
Entre os assuntos identificados como vitais no relatório, está ainda o tema dos impactos da pandemia de Covid-19 nos processos de aprendizagem.
Economia, meio ambiente e políticas sociais dominam transição
Mesmo que se trate de uma etapa de transição, algumas preocupações da equipe de Lula encarregada dos trabalhos já antecipam temas centrais no novo governo, segundo o cientista político Cleyton Monte.
Para ele, é possível perceber uma “preocupação maior com macroeconomia e política econômica, meio ambiente e políticas sociais”. “Acho que são as três linhas emergenciais, digamos assim, desse grupo de transição”, aponta.
Já sobre o tamanho da equipe, que vem sendo criticada por superar outras formadas para o mesmo fim desde a redemocratização, Monte ressalta que “há uma percepção da frente e da coalizão que ganhou as eleições de que uma construção coletiva se faz necessária”.
“Lula quer chegar na posse com um programa mínimo de governo baseado em uma discussão coletiva”, avalia, “e isso é uma premissa de que ele não quer se afastar”.
Ainda de acordo com o pesquisador, a aposta nessa força ampla montada no processo, e que envolve um grande número de colaboradores, pretende conferir às decisões do grupo e posteriormente às de Lula “uma fonte de legitimidade com um simbolismo grande”.
“Lula passou toda a campanha batendo na tecla do centralismo, do autoritarismo, do despreparo do Bolsonaro, da falta de diálogo. A equipe de transição indica uma linha de consulta coletiva, de retorno aos conselhos”, enfatiza.
Nem tudo, porém, sai exatamente como o planejado, e as primeiras rusgas começam a aparecer. Foi o caso da saída do ex-ministro Guido Mantega da equipe.
“A transição já deixa claro que vamos ter vários conflitos”, segue Monte, acrescentando que “estamos falando de vários partidos e da ampliação da base”.
“Toda a discussão que estamos vendo sobre responsabilidade fiscal e social já sinaliza que vamos ter uma série de tendências. Essa unidade do governo é difícil de ser alcançada. É o prenúncio de conflitos futuros, por exemplo, nas diferentes visões da política econômica”, conclui.
Ponto de Vista: O desafio do diagnóstico
Existe um plano de Governo que foi eleito pela população, com as contribuições acrescentadas no 2º turno por novos apoiadores. Não é um novo plano que os grupos técnicos farão.
O GT da Educação, como os demais, tem como objetivo o diagnóstico preciso da realidade da área, ouvir as diversas organizações que têm relação com a política educacional, a exemplo da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e de reitores de universidades, assim como especialistas, e identificar ações necessárias para o início do novo Governo.
Há a atitude importante de dialogar, escutar e receber sugestões dos setores inseridos na diversidade e pluralidade que fazem o Brasil e que haviam sido gravemente interrompidas pelo desgoverno de Jair Bolsonaro.
O que ele fez no MEC, por exemplo, foi desconstruir e nada pôr no lugar. Os indicadores na educação pública desse período são trágicos. Não basta voltarem as melhores condições anteriores. O que se pretende é dar um salto qualitativo.
O analfabetismo nas escolas públicas brasileiras aumentou de 51% para 69%. E não podemos atribuir apenas à Covid-19, pois o governo Bolsonaro nada fez para que esse percentual fosse menor. Pelo contrário, desconstruiu o que de bom existia.
Uma criança não alfabetizada na idade certa tem todo o seu percurso formativo obstruído e, por consequência, seu itinerário de vida comprometido, o que resulta nas terríveis desigualdades sociais e econômicas, o que faz o Brasil campeão no pódio das desigualdades entre as economias organizadas do mundo.
O GT da Educação, coordenado pelo ex-ministro Paulo Paim, já vem trabalhando com reuniões desde a última quarta-feira, 16. Ao final, será feito um relatório para ser entregue à coordenação geral da transição, dirigida pelo vice-presidente Alckmin e pelo ex-ministro Aloísio Mercadante.
Veveu Arruda, ex-prefeito de Sobral e membro da equipe de transição de Lula