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Fim da linha para Bolsonaro
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Fim da linha para Bolsonaro

Prestes a encerrar o mandato, Jair Bolsonaro deixa como legado desmonte da máquina pública, ataque aos órgãos ambientais e desestabilização institucional ao longo de quatro anos
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Jair Bolsonaro deixou o Brasil, antes da posse do novo presidente da República (Foto: JANSEN)
Foto: JANSEN Jair Bolsonaro deixou o Brasil, antes da posse do novo presidente da República

A duas semanas de deixar a Presidência, Jair Bolsonaro (PL) ainda tenta emplacar itens da sua agenda de campanha. Dias atrás, congelou recursos que seriam usados para pagamento de bolsas de pesquisa. Em seguida, emitiu sinais ambíguos que têm encorajado manifestantes golpistas a continuarem nas ruas.

Os dois pontos, tanto a asfixia das universidades quanto os ataques às instituições, constituem duas marcas da gestão do militar reformado. Em quatro anos, Bolsonaro dedicou-se a fazer o que, segundo anunciou logo quando assumiu o poder, seria “destruir” o que a esquerda havia feito, numa referência aos governos de Lula e Dilma Rousseff.

Como parte desse plano, o presidente esvaziou conselhos da sociedade civil, estrangulou a pesquisa e atacou redes de proteção e órgãos ambientais.

Ele também escalou aliados sem qualquer preparo para áreas como Cultura, rebaixada a uma secretaria, e Educação, cuja cadeira de titular foi ocupada por quatro nomes – um para cada ano, todos, sem exceção, envolvidos em polêmicas ou suspeitas de cometimento de crimes.

Bolsonaro ainda militarizou a gestão pública, povoando a administração com cerca de oito mil quadros oriundos das forças armadas. Em seu governo, Exército, Marinha e Aeronáutica tiveram papel de proeminência, situação que acabou por implicar órgãos de estado em impasses de natureza política.

O principal deles foi o envolvimento dos militares nas investidas de Bolsonaro contra as urnas e instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Os fardados estiveram à frente de outro ensaio de golpismo de Bolsonaro: o desfile de 7 de setembro de 2021, quando o presidente ameaçou abertamente ministros da corte eleitoral, notadamente Alexandre de Moraes, convertido em inimigo do bolsonarismo.

Para especialistas ouvidos pelo O POVO, essas são algumas das marcas de Bolsonaro durante os seus anos de governo, agora prestes a se encerrar. A elas, porém, se acrescentam outras, igualmente relevantes para se entender o saldo de um período de profunda turbulência e instabilidade nas relações entre os poderes da República.

Convidado a apontar três episódios que definiriam o governo de Bolsonaro, o cientista político Cleyton Monte indica como elemento preponderante exatamente a predisposição explicitada do presidente recém-eleito para se contrapor a um programa de natureza progressista.

Segundo ele, “aquela visita de Bolsonaro aos EUA logo no início do governo, num jantar com a presença do Olavo de Carvalho, com ele dizendo que o objetivo do governo seria destruir o que tinha sido feito pela esquerda, foi definidora da lógica da gestão”.

Era como se, depois desse cartão de visitas, o chefe do Executivo estivesse dispensado da tarefa de governar guiado pela preocupação com o bem comum. Bolsonaro, desde o início, pautou-se por ações cujo objetivo e horizonte tinham em vista os seus aliados mais fiéis e os seus inimigos, reais ou imaginários.

De acordo com Monte, essa tendência ao conflito, empregada para mobilizar as bases, foi responsável pelo que ele adiciona como os dois fatores restantes: as tensões com o STF e sua conduta durante a pandemia da Covid-19.

“Ficou claro ali (no enfrentamento com o Judiciário)”, continua o pesquisador, “o caráter antidemocrático e anti-institucional do presidente”. Esse perfil reacionário e populista se reforçou com as sucessivas menções negativas do presidente e postura desrespeitosa em meio às mortes na pandemia, seguidas de declarações como “eu não sou coveiro”.

“Isso inclusive foi muito explorado pelos adversários na campanha eleitoral. Ficou a imagem de um presidente antipático à população e insensível”, conclui Monte.

Cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fabio Kerche avalia que, além da inação do governo Bolsonaro durante a pandemia, há um ponto decisivo para compreender os últimos quatro anos: a relação do mandatário com o Congresso.

“Isso foi importante porque divide o governo. Nos dois primeiros anos, Bolsonaro tentou governar sem negociar com o centrão, tentando romper com o presidencialismo de coalizão. E, a partir do terceiro ano, teve que negociar porque percebeu que não conseguiria governar”, analisa o especialista, para quem essa saída encontrada por Bolsonaro “fortaleceu muito o centrão, que teve papel importante novamente”.

“Não houve uma ruptura, como anunciava na campanha”, diz, citando uma das promessas do então candidato, ainda em 2018, quando o discurso anti-centrão predominava e seus aliados cantavam em eventos: “Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão”.

Kerche pondera, no entanto, que a pandemia da Covid e o modo como o governo se portou na crise sanitária também foram um divisor de águas, “escancarando o negacionismo do presidente e seu entorno”.

“Foi um marco no mundo inteiro, mas, no Brasil, do ponto de vista político, a pandemia teve essas consequências. Ela revelou de maneira inequívoca certas características desse governo, como a negação da ciência e o desmonte do sistema de saúde”, compara o professor.

“Militares passaram a ter uma outra missão”

O papel assumido pelos militares na gestão de Bolsonaro foi um elemento que, conforme o cientista político Emanuel Freitas, acabou por definir todo o período da gestão.

Ele mesmo militar da reserva, Bolsonaro se valeu dessa proximidade com os fardados para pressionar as instituições, entre as quais o TSE e o STF, emparedados pelo presidente em atos como o do 7 de setembro.

Essa contaminação política dos quartéis, porém, também foi fator retórico importante para engajar bolsonaristas, que, ainda hoje, permanecem no entorno de unidades militares, pedindo por intervenção.

“Bolsonaro recolocou as forças armadas no centro das decisões políticas. Os militares passaram a ter uma outra missão, a ideia do artigo 142 reflete isso”, ressalta Freitas.

O pesquisador assinala que, para além da militarização do governo, Bolsonaro apostou suas fichas noutra frente: os evangélicos. Isso se revelou inclusive na indicação de um ministro para a corte suprema.

“A promessa de campanha de pôr um evangélico no STF se realizou. Acho que foi importante porque o legitimou de vez com esse segmento”, avalia.

Na campanha eleitoral da qual saiu derrotado por Lula, de fato Bolsonaro recorreu constantemente a esse campo e apelou aos evangélicos, um dos estratos mais fiéis ao presidente, que viu sua rejeição disparar desde a pandemia de Covid-19.

Professor de ciência política da Uece, Pedro Gustavo de Sousa também avalia que essa desestabilização institucional foi uma marca do governo Bolsonaro.

O docente acrescenta, contudo, a “gestão negacionista no combate à pandemia” e o “crescimento do desmatamento na Amazônia”.

PONTO DE VISTA: Governo Bolsonaro: um balanço provisório

Estamos, ainda, em processo de transição do governo Bolsonaro para o futuro governo Lula. Os membros – efetivos e voluntários – da equipe de transição estão fazendo um minucioso balanço das ações realizadas pelo governo que está nos seus estertores.

Por isso, esse texto, aqui, é provisório e tratará de algo que, mesmo sem o resultado da avaliação mais minuciosa do governo Bolsonaro, já se pode afirmar com certeza: foi, durante quatro anos, um presidencialismo de confrontação. Bolsonaro e os bolsonaristas têm em seu DNA o confronto, o ataque e a transformação dos adversários em inimigos, sejam internos ou externos, reais ou imaginários. Confrontando, o bolsonarismo se manteve coeso, inflamado e pronto para cumprir as ordens de seu “mito”.

Dessa conduta política temos, nos dias que correm, após o término do segundo turno até há pouco, na diplomação de Lula e Alckmin, milhares de bolsonaristas que não aceitam o resultado das eleições e clamam por ruptura institucional via intervenção militar. Bolsonaro e muitos bolsonaristas no topo do poder foram divulgadores de fake news e teorias da conspiração e, no caso, acerca do processo eleitoral e da segurança das urnas eletrônicas.

Não nos esqueçamos que, há tempos, o presidente afirma que havia ganhado, em 2018, no primeiro turno e que tinha provas de sua vitória. Contudo, instado a apresentar as provas, nunca as apresentou. Os ataques bolsonaristas foram, inacreditavelmente, alicerçados até sobre o negacionismo científico e ao invés de atacar o vírus da Covid, suas ações e omissões foram aliadas da pandemia.

Os ataques bolsonaristas foram, ainda, ataques às instituições e aos outros Poderes. O Legislativo foi cooptado, via orçamento secreto; o Judiciário e os ministros do STF e do TSE foram os alvos prediletos. A democracia brasileira foi tensionada e a tensão ou leva à ruptura ou ao esgarçamento do tecido social. Ruptura não se deu, mas temos uma sociedade fraturada, cindida e esgarçada em seus valores democráticos e republicanos.

Rodrigo Augusto Prando

QUADRO

Entre os pontos mais citados por fontes ouvidas pelo O POVO como marca da gestão Bolsonaro, estão o negacionismo na pandemia, os ataques às instituições, sobretudo ao Judiciário, o desmonte dos órgãos ambientais, o estímulo à atuação criminosa na região amazônica, a asfixia do ensino superior, a condução desastrosa na área da saúde e as suspeições levantadas contra as urnas eletrônicas.

Um fator adicional é a relação do presidente com o Congresso, definida pela entrega de fatia generosa do orçamento público à cúpula legislativa, dando início ao chamado orçamento secreto.

 

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