A democracia respirou em 2022. Soa até estranho refletir sobre um ano notadamente marcado por uma guerra e concluir que a liberdade e a soberania populares terminam mais esta volta em torno do Sol com algo a ser comemorado. Parece e é, de fato, estranho.
Nas urnas, candidatos que se notabilizaram nos últimos anos por usarem a própria democracia para corroê-la por dentro terminam o ano sem poder. Casos de Jair Bolsonaro, no Brasil, ou Donald Trump, nos EUA.
Fora da esfera eleitoral, líderes autocratas também saem enfraquecidos. Xi Jinping não esperava começar seu terceiro mandato na China com tantos problemas. Ao invadir a Ucrânia, Vladimir Putin se deixou levar por mitos do passado de uma grande Rússia tocada por um líder que pensa ser infalível, mas que na realidade está atolado pela soberba em uma guerra já transformada em labirinto de difícil saída.
2022 teve o pior do ser humano que voltou a falar em armas nucleares como há muito tempo não se falava. Por outro lado, o melhor que este mesmo ser humano pode produzir tornou visível o alumbramento que está a milhões de quilômetros, graças às lentes do James Webb, um telescópio com nome de gente.
Em terra firme, o planeta arde em chamas de florestas queimadas, é inundado por tempestades e vê seu futuro cada vez mais curto enquanto 8 bilhões de humanos, em apuros, não sabem para onde ir.
Cerca de 90% deles, inclusive, que não era nem nascido quanto Elizabeth II virou rainha do Reino Unido. Em 2022 ela deixou de ser.
Por diferentes razões, as mulheres neste ano seguiram se levantando na luta pelo controle dos próprios corpos. Liberdade buscada até mesmo em contextos antagônicos como nos EUA e no Irã.
Confira 12 grandes acontecimentos de 2022 (com AFP)
Em 24 de fevereiro, o presidente russo, Vladimir Putin, ordena a invasão da Ucrânia e abre uma crise sem precedentes desde o fim da Guerra Fria. Ante os países da Otan, que manifestam apoio à Ucrânia, o chefe do Kremlin ameaça usar arma nuclear, e diz estar disposto a empregar "todos os meios".
Putin, que diz querer "desnazificar" a Ucrânia, encontra-se diplomaticamente isolado. União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos impõem sanções a Moscou, as quais endurecem, sucessivamente, e fornecem armas à Ucrânia.
Os testemunhos contra o Exército russo se multiplicam, com acusações de assassinato de civis, torturas e estupros. No início da invasão, as tropas russas desistem de cercar Kiev, de onde o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, dirige-se, diariamente, aos líderes mundiais para pedir apoio econômico e militar.
A guerra deflagra o medo de uma crise alimentar mundial, devido ao bloqueio marítimo imposto pela Rússia no Mar Negro. Em julho, um acordo permite à Ucrânia retomar suas abundantes exportações de grãos.
Em setembro, Putin decreta a mobilização de cerca de 300 mil reservistas e assina a anexação de quatro territórios ucranianos total, ou parcialmente, ocupados, após “referendos” denunciados pela comunidade internacional. Ao mesmo tempo, o Exército russo acumula um revés atrás do outro no terreno. Depois de abandonar a região de Kharkiv, Moscou ordena a retirada de suas forças de Kherson no início de novembro.
A Rússia lança centenas de ataques de retaliação à rede de energia ucraniana, deixando milhões de ucranianos no escuro, às vésperas do inverno.
Iniciada em 2021 por problemas nas cadeias de abastecimento juntamente com a forte demanda em meio à recuperação pós-pandemia, a alta de preços se acelera em 2022 e atinge níveis inéditos em décadas. A inflação pode chegar a 8% no quarto trimestre nos países do G20, um obstáculo para o crescimento, que também eleva os custos de produção das empresas.
A inflação se acentua pela Guerra da Ucrânia, que mergulhou a Europa em uma profunda crise energética. Em resposta às sanções ocidentais, Moscou multiplicou as represálias, atingindo, em particular, o ponto fraco da UE: sua dependência do gás russo. Suas exportações de gás, principalmente para Alemanha e Itália, estão em queda livre.
Para conter a inflação, o Banco Central americano (Fed) elevou suas taxas de juros de maneira significativa desde março, o que também encareceu o crédito. O Banco Central Europeu (BCE) também endureceu sua política monetária.
Em junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos devolveu a cada estado o poder de proibir o aborto em seu território, enterrando, assim, sua decisão de 1973 no caso "Roe vs. Wade", que o havia estabelecido como um direito constitucional. Depois da mudança, cerca de 20 estados proíbem totalmente ou limitam seriamente o direito ao aborto.
O assunto se impõe entre os temas mais importantes da campanha das eleições de meio de mandato ("midterms") de novembro. Os resultados das urnas não geram a onda conservadora que os simpatizantes do ex-presidente Donald Trump esperavam.
Apesar de tudo, Trump anuncia sua candidatura à eleição presidencial de 2024. A disputa pela indicação dos republicanos deve ser dura, em particular com o governador da Flórida, Ron DeSantis, uma nova estrela da direita americana.
A candidatura do ex-presidente pode ser impedida pela justiça. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 afirma que Trump não deveria ocupar cargos públicos novamente, após incitar seus apoiadores à "insurreição".
Após uma sucessão de escândalos e de demissões em seu governo, o primeiro-ministro britânico, o conservador Boris Johnson, apresenta sua renúncia em julho. Liz Truss foi oficialmente nomeada para sucedê-lo em Downing Street, em uma cerimônia com a rainha Elizabeth II dois dias antes da morte da monarca em 8 de setembro, após um reinado de 70 anos. No dia 10, Charles III foi proclamado rei.
Primeira-ministra mais efêmera da história moderna do país, Liz durou apenas 44 dias no cargo. Ela renunciou após causar uma crise política e financeira com seu programa econômico.
Rishi Sunak chegou ao poder no final de outubro, em um período de instabilidade sem precedentes no Reino Unido. É o quinto chefe de Governo britânico desde o referendo do Brexit em junho de 2016.
Em 2022, os desastres ligados à mudança climática se multiplicaram. O verão foi o mais quente já registrado na Europa, com recordes de temperatura e ondas de calor que provocam secas e incêndios. Pelo menos 15 mil mortes são diretamente atribuíveis a este calor extremo na Europa, de acordo com a OMS.
A China também bate recordes de calor em agosto, e a seca ameaça a região do Chifre da África com fome. Incêndios e desmatamento também atingem níveis máximos na Amazônia brasileira.
No Paquistão, inundações históricas, devido a monções de proporções anormais, matam mais de 1.700 pessoas e obrigam oito milhões a se deslocarem. Um terço do país se vê inundado.
Se as projeções para este ano se confirmarem, os oito anos de 2015 a 2022 serão os mais quentes já registrados, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM).
Após duras negociações, a conferência do Clima da ONU no Egito (COP27) termina em 20 de novembro com um acordo político para criar um fundo para compensar os países mais vulneráveis pelas perdas e pelos danos sofridos como resultado da mudança climática.
O telescópio espacial James Webb, em órbita para examinar os limites do universo e a atmosfera dos planetas distantes, forneceu imagens excepcionais durante 2022. Seu trabalho até à data é apenas um esboço do que poderia fazer em um futuro não tão distante.
Os resultados do Webb, localizado a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, superam em muitos aspectos os do telescópio veterano Hubble, que permanece em funcionamento, mas sem a mesma precisão das lentes de seu jovem concorrente.
Por conta de sua espetacular coloração nas fotografias, ele conseguiu deslumbrar os fãs. O Webb enviou em 12 de julho de 2022 cinco imagens que destacaram suas capacidades: milhares de galáxias, algumas formadas pouco depois do Big Bang, até 13,8 bilhões de anos. Outras imagens coloridas que causaram espanto foram os "Pilares da Criação", enormes estruturas de gás e poeira repletas de estrelas, em tons de azul, vermelho e cinza.
Em 16 de setembro, a curdo-iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, morre em um hospital três dias depois de ser detida pela polícia da moralidade. Ela foi acusada de violar o código de vestimenta do Irã para mulheres, que as obriga a cobrir o cabelo em público e usar roupas discretas.
Sua morte provocou uma onda de manifestações em todo país, a maior desde a Revolução Islâmica de 1979. As jovens lideram os protestos. Muitas delas tiram e queimam seus véus, como mostram vários vídeos que viralizaram nas redes sociais.
As manifestações pela liberdade das mulheres se transformam, progressivamente, em um movimento mais amplo dirigido contra o regime islâmico e se estendem às universidades e escolas, apesar da repressão. As autoridades relatam mais de 300 mortes, enquanto uma ONG com sede na Noruega contabiliza pelo menos 469.
No início de dezembro, o regime anuncia a dissolução da polícia da moralidade. Mas, ao mesmo tempo, a justiça iraniana executa dois jovens condenados por atos relacionados às manifestações.
O presidente chinês, Xi Jinping, conquista um 3º mandato consecutivo à frente do Partido Comunista em outubro e se cerca de figuras leais para se tornar o líder mais poderoso da China moderna. No poder por uma década, Xi demonstrou grande desejo de controle, interferindo em quase todos os mecanismos do Estado.
As tensões no Estreito de Taiwan atingem o nível mais elevado em décadas, após a visita à ilha da presidente da Câmara dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, em agosto. Em represália, a China faz manobras militares terrestres e marítimas de uma amplitude sem precedentes desde meados dos anos 1990.
A estratégia "Covid zero" do país, que implica confinamentos de bairros ou cidades inteiras logo que um caso aparece, provoca manifestações no final de novembro de uma magnitude inédita há décadas. As autoridades reprimiram os protestos, mas também decidiram acabar com a política de "Covid zero". Desde então, os casos de coronavírus dispararam no país e os hospitais enfrentam dificuldades com o elevado número de pacientes.
Depois de quatro anos no poder, o líder de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, é derrotado por estreita margem pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva, no segundo turno da eleição presidencial em 30 de outubro. Lula voltará ao poder em 1º de janeiro de 2023, e será um grande impulso para a esquerda latino-americana, que, em 2022, teve ainda a vitória histórica do ex-guerrilheiro Gustavo Petro na Colômbia.
Já na Europa, os ultraconservadores conquistaram vitórias importantes nas eleições legislativas de vários países, a começar pela quarta vitória consecutiva do partido do líder nacionalista húngaro Viktor Orban, em abril. Na França, o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, conseguiu um avanço histórico em junho, tornando-se a primeira sigla da oposição na Assembleia Nacional, onde Emmanuel Macron perdeu a maioria absoluta, embora tenha sido reeleito presidente.
Na Itália, Giorgia Meloni conquistou uma vitória histórica em setembro com seu partido pós-fascista Irmãos da Itália ("Fratelli d'Italia") e assumiu como chefe de Governo em outubro.
Após dois anos de conflito, o governo federal etíope e as autoridades rebeldes da região do Tigrai assinam, em 2 de novembro, em Pretória, um acordo de "fim das hostilidades". A expectativa é que o pacto acabe com uma guerra descrita por ONGs como "uma das mais sangrentas no mundo". Os combates haviam recomeçado no final de agosto, após cinco meses de cessar-fogo.
Desde novembro de 2020, o conflito opõe o governo etíope, apoiado por forças da vizinha Eritreia, e os rebeldes do Tigrai. O conflito é marcado por possíveis crimes contra a humanidade cometidos por "todas as partes", segundo a ONU, e forçou o deslocamento de mais de dois milhões de etíopes.
Além do desarmamento dos rebeldes, o acordo de paz deve permitir a chegada de ajuda humanitária ao Tigrai. Há mais de um ano, seus 6 milhões de habitantes sofrem com a grave escassez de alimentos e de remédios.
A população mundial superou a marca de 8 bilhões em meados de novembro, segundo as Nações Unidas. Mas o crescimento da população também apresenta enormes desafios para os países mais pobres, onde é mais acentuado.
A Terra tinha menos de 1 bilhão de pessoas no século XIX, mas levou apenas 12 anos para crescer de 7 para 8 bilhões e levará cerca de 15 anos para chegar a 9 bilhões, em 2037, segundo estimativa da ONU, que projeta ainda um "pico" de 10,4 bilhões na década de 2080 e uma estagnação até o final do século.
A organização da Copa do Mundo de 2022 no Catar rendeu ao país-sede uma enxurrada de críticas. O primeiro país árabe a organizar este grande evento foi criticado por seu tratamento aos trabalhadores estrangeiros, à comunidade LGBTQIA+ e às mulheres.
Boa parte das críticas está relacionada com a situação dos trabalhadores imigrantes, um fator essencial em um país onde os catarianos representam apenas 10% de uma população de três milhões de habitantes. Algumas ONGs falam em milhares de mortos em acidentes nas obras para o Mundial, número que o governo de Doha nega.
Em campo, no dia 18 de dezembro, após 36 anos de espera, 120 minutos de jogo e uma disputa de pênaltis, a Argentina de Lionel Messi conquista sua terceira Copa do Mundo na final contra a França.