Filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle adverte para o que, segundo ele, foi apenas o ensaio geral de um tipo de radicalismo que deita raízes na formação social brasileira: o 8 de janeiro de 2023.
“Não foi um ato isolado, seguiu-se a várias outras coisas que demonstram onde nós efetivamente estamos”, argumenta o pesquisador, que esteve em Fortaleza na última semana para participar de encontro na Universidade Federal do Ceará (UFC) e lançar sua obra mais recente, Em um com o impulso (Autêntica).
Em conversa com O POVO, Safatle tratou dos episódios na esteira da intentona golpista, conectando a investida bolsonarista contra as instituições a outros eventos que marcaram a história nacional, tais como a ditadura militar. Para ele, a ameaça que a extrema-direita representa não acabou. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O POVO – A gente vem de um episódio que desafiou a democracia e a institucionalidade, que foi o 8 de janeiro. O que significa essa transição de governo e quais desafios o senhor projeta?
Vladimir Safatle – O Brasil se transformou um laboratório mundial de uma extrema-direita insurrecional. Isso significa o quê? Que é uma extrema-direita que vai cada vez mais trabalhar com grandes mobilizações populares, com ações diretas e violentas, com questionamentos de autoridades constituídas de forma sistemática. Claro que quando digo laboratório mundial é porque o Brasil não está isolado do mundo nesse processo, nós tivemos muito claramente uma internacional conservadora em atuação. EUA, Itália, Polônia, Hungria, Turquia, todos esses países lidam hoje com dinâmicas de estruturas políticas semelhantes. O Brasil conseguiu, na eleição passada, ganhar tempo para saber como trabalhar com essa situação e para encontrar outras saídas. Porque essa extrema-direita não se desmobilizou, isso está muito claro. Ao contrário, ela é composta por um setor extremamente expressivo da população brasileira que tem um grau de identificação, entusiasmo e engajamento absolutamente inquebrantável. O 8 de janeiro não foi um ato isolado, seguiu-se a várias outras coisas que demonstram onde nós efetivamente estamos. Em 9 de janeiro, tivemos tentativa de bloqueio de estrada, sabotagem de linha de energia. Em 31 de janeiro tivemos uma pessoa que se autoimolou na Praça dos Três Poderes, gritando contra o Supremo. Acho muito importante que a gente tenha consciência das forças que estão atuando neste momento na sociedade brasileira para que a gente saiba como lidar com elas.
OP – Há risco ainda?
Vladimir Safatle – Com certeza, isso é absolutamente inegável. O 8 de janeiro foi ensaio geral, haverá ainda outras tentativas nesse sentido, outras formas de mobilização popular. O Brasil se conecta com uma parte de sua história que nós gostamos de esquecer, que é a história do fascismo nacional. Não tenho nenhum problema em utilizar esse termo, acho que é um termo analítico. O Brasil era o país que tinha o maior partido fascista fora da Europa nos anos de 1930, com 1,3 milhão de membros. Na ditadura militar, vários oficiais eram integralistas. A junta militar que governou o Brasil em 1969, e que inflexiona a ditadura em direção para a linha dura, dos seus três membros, dois eram integralistas. Ou seja, essa história não se apagou, ela volta agora por uma série de razoes. E não poderia se apagar porque essa história é baseada na violência estatal, na violência colonial, escravagista, na maneira como o estado funciona no Brasil como gestor de uma guerra civil não declarada, como braço armado de um processo no qual chacinas, massacres e desaparecimentos são fatos normais. Não são fatos excepcionais, é o modo normal de funcionamento no caso do Brasil.
OP – Muitas pessoas, no caso do 8 de janeiro, foram presas e denunciadas, PMs acabaram sendo presos também, mas o núcleo militar das forças armadas, que deu guarida a esse movimento, passa ao largo de qualquer processo de punição mais uma vez. O estado brasileiro tem sabido responder a esse desafio?
Vladimir Safatle – Essa questão é absolutamente central. As forças armadas brasileiras hoje já estão em posição de insubordinação ao poder civil. Por isso que faço parte de um grupo que defende “Anistia nunca mais”. Nossa ideia fundamental é que o Brasil não pode mais repetir a ilusão de que uma anistia, principalmente de funcionários públicos que têm nas suas costas crimes contra a democracia, crimes de insubordinação e de sedição contra o poder democrático, não podem ser anistiados. Defendemos três ações. A primeira delas é que o alto comando das forças armadas seja afastado, não só um general, como aconteceu agora, responsável pelo comando das tropas que estavam em Brasília. Se ele fez isso e agiu através da inação, agiu deixando que os símbolos do poder institucional brasileiro fossem totalmente depredados, permitindo que a massa fosse até o Planalto, foi porque ele sabia que tinha guarida de outros generais. Na Colômbia, que também tinha um poder militar insubordinado, o presidente, Gustavo Petro, colocou 70 generais na reserva do Exército e da polícia. O Brasil devia fazer algo parecido como uma condição para garantir o mínimo de normalidade democrática nos próximos anos. Não podemos ter um setor do estado que trama contra o próprio estado, trama contra o próprio governo. Outro ponto é a dissolução da Polícia Militar. A PM está se demonstrando na verdade como uma facção armada de um poder político, não como uma polícia de estado. Isso é desde o topo até a base, a politização da PM é uma aberração. Não existe nenhum país do mundo onde se pode ser ao mesmo tempo um policial e um candidato a deputado, por exemplo. Um funcionário público que tem arma na mão não existe politicamente, pura e simplesmente. Isso é uma condição para a democracia funcionar. Essa polícia tem que ser desmilitarizada e recomposta, sua permanência enquanto tal é um atentado à democracia. Defendemos também que fenômenos como o que ocorreram em 8 de janeiro são resultado de uma logística e organização enorme. Ninguém faz o que fez com três mensagens de WhatsApp. É necessário que os poderes econômicos que estão por trás desse processo sejam efetivamente responsabilizados pelos seus atos. Por isso defendemos a expropriação de empresas que participaram desse processo e sua passagem para a autogestão da classe trabalhadora. É importante dar um sinal ao setor empresarial de que nunca mais o país vai aceitar que o aparato produtivo nacional seja usado para desestabilizar governos democraticamente eleitos.
OP – A gente viu também no episódio um processo de deslocamento da realidade de um grupo que entrou nos acampamentos e foi progressivamente se radicalizando. Como se chega a isso?
Vladimir Safatle – Eu diria que o Brasil acredita muito nas suas próprias ilusões. Acreditamos que era possível fazer uma transição pacífica em relação à ditadura. Que era possível um tipo de momento histórico, que era a Nova República, com um grande sistema de pacto de alianças. Eu diria que tudo isso ruiu. Ruiu há dez anos, desde 2013. Desde lá o Brasil se bate para encontrar alternativas a seu desenvolvimento social e político que não passem mais pelos modelos da Nova República. E a extrema-direita entendeu isso muito mais rapidamente do que qualquer outro setor. A política mundial foi para os extremos, a democracia liberal entrou em colapso e não consegue mais responder às mínimas condições para um pacto social. Não há mais no Brasil base social para pacto algum. Isso a extrema-direita entendeu em vários países do mundo. A esquerda não entendeu isso. A gente vive numa situação na qual temos uma política que foi para os extremos, mas só há um extremo, não há outro. Todo desejo anti-institucional, de ruptura e de recusa, que é constituinte das dimensões fundamentais das lutas sociais, só tem hoje uma vocalização: a extrema-direita. Isso faz com que as pessoas que paulatinamente vão se deslocando para esse espectro primeiro encontrem um discurso claramente constituído, uma forma de vida em larga medida. Não é só discurso político, porque essas pessoas rompem suas relações e constituem novas relações, fazendo algo muito parecido a uma conversão religiosa. A política é feita disso, desse elemento também. Isso sempre foi presente na esquerda. Então, efetivamente essas pessoas não só fazem isso, mas encontraram condições históricas para que pudessem repetir uma tendência que existe na sociedade brasileira. Não é um caso único que aconteceu no Brasil, mas, como falei, desde os anos 1930, o país tinha um partido fascista com um milhão de membros. Isso era radicalismo porque estavam constituídos enquanto partido com discurso claramente aberto. A gente teve ditadura com apoio (civil), isso também foi radicalismo. A história do Brasil é uma história de radicalismos, isso sempre foi assim. A Nova República foi um hiato, e esse hiato acabou. Acho importante entender que essa é a racionalidade das lutas políticas brasileiras. A questão é: a gente está preparado para isso ou não?
O pesquisador participou de evento no auditório da reitoria da UFC, onde palestrou sobre os desafios para a reconstrução democrática no Brasil pós-Bolsonaro. O evento abriu ciclo de discussão sobre luta sindical e organização dos trabalhadores, promovido de fevereiro a abril pelo Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (Adufc).
Entre os temas do encontro com Safatle, estava a desbolsonarização das instituições, entre as quais a universidade pública, alvo de ataques do então presidente durante sua gestão.
Safatle também lançou livro mais recente, publicado pela editora Autêntica. Na obra, trata das relações entre arte e liberdade ao longo da história.