Os Ferreira Gomes, os Aguiar, os Oliveira, os Santana, os Sobreira: no Ceará, a filiação familiar é mais importante que a partidária. Em um estado marcado por disputas acirradas que atravessam décadas de mando político, o sobrenome é cartão de visitas e estabelece o poder de fogo de quem pleiteia o voto do eleitor.
No Legislativo, então, os laços de parentesco são evidentes, expressos nas urnas e carregados como uma herança transmitida de pai para filho, de pai para filha, de irmão para irmã, de tio para sobrinho, de marido para esposa e, num movimento menos usual, de filho para pai.
Foi o caso do deputado federal André Fernandes (PL), cuja influência eleitoral acabou por assegurar também uma vaga para o pai, Alcides Fernandes, na Assembleia Legislativa do Estado (Alece) nas eleições de 2022.
Mas Fernandes não está sozinho. No parlamento estadual, cerca de 30 dos 46 deputados e deputadas, de primeiro mandato ou já experimentados, exibem essa ligação de sangue levada desde o nome. Estão por lá os Landim, os Pessoa, os Gonçalves, os Camurça, os Albuquerque etc. — a lista é extensa e remonta ao próprio processo de formação da província.
Os laços de parentescos são diversos. Filhos são os naturais sucessores. Mas, Acilon Gonçalves (PL) pela esposa trabalhou pela eleição da esposa, Marta. Assim como Nezinho Farias pela esposa, Jô Farias (PT). Assim como André e Alcides, Oscar Rodrigues (União Brasil) é outro que emerge na esteira do filho, o deputado federal Moses Rodrigues.
Na Câmara dos Deputados não é diferente. Dos 22 representantes cearenses, uma parcela significativa não esconde vínculos parentais. Pelo contrário, eles são motivo de orgulho, apresentados como trunfo no tabuleiro onde competem com outras famílias ou candidatos avulsos, funcionando como um elemento de distinção que lhes garante ganhos na hora da conquista.
Para a professora e cientista política Monalisa Torres, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), isso se explica porque "a dinâmica política do Ceará tem muito a ver com a lógica de funcionamento de grupos" no estado ao longo do tempo.
"Em muitos casos", argumenta a docente, "esses grupos têm como núcleo deliberativo e decisório as famílias, a exemplo dos Ferreira Gomes" — formado por Cid, Ciro, Ivo, Lúcio e Lia e cujo patriarca foi a pedra angular da fundação do clã de Sobral, de onde se espalharam. Lia, eleita deputada estadual, é a quarta a ter mandato na Assembleia.
"Existe o grupo dos FG, que incorpora um conjunto de outras lideranças que atuam em regiões diferentes, mas o núcleo decisório são os irmãos. Ainda que não tenha a transferência de pai para filho, tem a distribuição e compartilhamento de funções entre irmãos", aponta Torres.
Por que a distribuição do poder no Estado, contudo, se opera dessa maneira, tendo o familismo como ponto de articulação? Ainda de acordo com a pesquisadora, "quando a gente pensa as famílias políticas, para a manutenção do grupo é preciso ocupar espaços de poder, que são funções e espaços divididos para cada membro da família".
Como exemplo, Torres cita os Aguiar de Domingos Filho (ex-deputado e ex-vice-governador) e Patrícia Aguiar (prefeita do município de Tauá), cuja prole expandiu o capital familiar.
"Tem o pai, o filho e a esposa. A esposa cumpre uma função específica, é prefeita, que tem a ver com o corpo a corpo com a base originária do grupo. Tem o filho, deputado federal, que atua em outra arena, trazendo recursos para alimentar as bases não só de Tauá, mas irradiar e manter o controle da base na região. E tem o pai, que atua na circunscrição estadual", ressalta.
Ao trio, somou-se em 2022 a filha, Gabriela Aguiar, eleita deputada estadual pelo mesmo partido familiar, o PSD. O que poderia ser uma desvantagem, ou seja, a marca de continuidade, torna-se um crédito a ser usado nos conflitos e no cultivo da força do sobrenome.
"A família acaba tendo vantagem porque se utiliza o ethos familiar como capital em momentos de disputas eleitorais. Ela incorpora uma ideia, uma marca", assinala a professora, acrescentando que "isso é mobilizado e de alguma forma tem uma certa vantagem em relação a debutantes na política".
Segundo Torres, "a própria família incorpora e transfere certo capital para aquele nome, e isso faz diferença nos processos de disputa" porque "cada espaço ocupado garante a ampliação das bases e o acesso a recursos públicos".
Engana-se quem pensa, no entanto, que se trata de fenômeno exclusivo do estado. Pelo contrário, é uma conduta observada nas "distintas unidades federativas das mais diversas regiões do Brasil", conforme o professor e cientista político Pedro Gustavo de Sousa, também da Uece.
"A marca do parentesco na política eleitoral não consiste numa particularidade do Ceará. É o caso da família Neves em Minas Gerais, Maia no Rio de Janeiro, Covas em São Paulo, Arraes em Pernambuco", enumera.
"Não importa o quão industrializado ou agrário seja a plataforma econômica do estado", continua, "persiste a presença de grupos e lideranças políticas que carregam os mesmos sobrenomes por várias gerações".
Sousa pondera que as razões para isso são muito simples: acesso a recursos, que se revertem em votos, e os votos, por sua vez, ajudam a eleger mais integrantes da mesma família para desempenhar funções públicas, numa cadeia sem fim que pavimenta o caminho das tradições familiares na política nacional.
Força familiar é reflexo de "partidos frágeis"
Cientista político e colunista do O POVO, Cleyton Monte avalia que o domínio das famílias no desenho eleitoral do Ceará é reflexo de uma vulnerabilidade do sistema partidário.
"Sempre que temos partidos frágeis, lideranças fragilizadas e pouco espaço para a renovação, as famílias políticas acabam tendo maior espaço para se reproduzir. O que temos no interior do Estado são as famílias, então a população reconhece muito mais as famílias do que partidos", afirma.
A questão, portanto, diz respeito ao "nível de identificação" do eleitorado com as instituições, das quais a família, considerada como ente, acaba se sobrepondo às demais — inclusive às partidárias.
"Fazer parte de uma família", prossegue o pesquisador, "que poderia jogar contra, para muitos públicos é um fator legitimador".
Nesse sentido, a família passa a desempenhar função de "mecanismo mais tradicional, corriqueiro e eficaz para o exercício do poder", explica Monte, acrescentando que ela se converte numa "forma de garantir a reprodução das bases políticas".
É o que se vê, por exemplo, com as famílias Aguiar e Ferreira Gomes, mas também com outras cujos patriarcas pavimentaram o caminho para que demais familiares pudessem trilhar estrada na vida política e ampliar a ascendência nos municípios sob seu raio de poder.
"A política vai transitando dentro da família para reforçar essas bases. Isso é um aspecto histórico e estrutural que acompanha o Ceará desde o seu processo de formação", aponta.
Eleições de 2022 consagraram lógica da família política
As eleições de 2022, sugere o pesquisador e professor Emanuel Freitas (Uece), consagraram a reprodução do capital familiar como lógica da manutenção do poder político no Ceará. Segundo ele, não apenas políticos considerados tradicionais mobilizaram seus laços de consanguinidade para elevar influência no mapa do voto, mas também os novos personagens da disputa eleitoral.
"Essas eleições de 2022 foram mais marcadas por essa continuidade e rearranjo familiar em diversos cargos do que as de 2018", analisa Freitas.
O cientista político cita, como exemplos, os casos de "André Fernandes", que "sai da Assembleia e deixa o pai (Alcides Fernandes, eleito deputado estadual), entendendo que a vaga é dele", e de "Roberto Pessoa com a filha (Fernanda Pessoa, eleita deputada federal), também uma troca".
"Tem o Domingos com os dois filhos como deputados (Domingos Neto e Gabriela Aguiar)", continua, e "tem a Dayany do Capitão", esposa do secretário de Saúde de Maracanaú, Capitão Wagner (União Brasil), que concorreu ao Governo do Estado ano passado.