Dois marcos se sobressaem nestes primeiros 100 dias de governo Lula (PT), um econômico e outro político. O econômico é a apresentação do arcabouço fiscal pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) duas semanas atrás.
O político, os atos golpistas de 8 de janeiro, a partir do qual o Planalto se empenhou em cobrar identificação e responsabilização jurídica de quem participou, estimulou e financiou a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República.
Mas não se trata apenas de uma reação. Depois daquele domingo, o que se viu foi um Lula cuja retórica investiu mais ainda contra o ex-presidente e candidato derrotado Jair Bolsonaro (PL), então nos Estados Unidos, para onde viajou a dois dias do fim do mandato e só retornou no fim de março.
Especialistas ouvidos pelo O POVO refletem ainda sobre outros fatores que se impuseram como desafios para o novo governo durante esse período, entre os quais a força do novo Congresso, encabeçado por Arthur Lira (Progressistas-AL), presidente da Câmara dos Deputados.
Há um consenso, porém, de que o 8 de janeiro foi um episódio determinante para a postura adotada pelo Executivo nesse intervalo de pouco mais de três meses.
Sem perder de vista esse enfrentamento com o bolsonarismo, o cientista político Miguel Lago, autor de Linguagem da destruição (Cia das Letras) e professor da Universidade de Columbia, considera que “o estado brasileiro perdeu muita capacidade administrativa ao longo de quatro anos, e não é exagero dizer que houve um projeto de destruição em boa parte dos ministérios”.
Meio ambiente, educação, relações internacionais, cultura, direitos humanos, questão fundiária e indígena – todas as áreas de gestão direta ou indireta estiveram sob algum tipo de ataque, Lago argumenta.
“Não se retoma isso da noite para o dia. Esses 100 primeiros dias foram muito desafiadores para o governo Lula, de fato, e teriam sido para qualquer governo. Porque a questão não é nem sobre o conteúdo das políticas públicas, mas sobre a capacidade de poder fazer políticas públicas”, aponta.
Na prática, continua o pesquisador, “a gente discute muito o conteúdo da política pública, mas deixa de lado as condições e o contexto dentro dos quais elas são feitas”. Lago acrescenta que, “por melhores que sejam os ministros ou os burocratas que se colocam, a administração tem o seu tempo”.
Daí, por exemplo, que o governo Lula tenha apostado no resgate de programas que já eram identificados com os mandatos do petista, tais como Minha Casa, Minha Vida, Mais Médicos e Bolsa Família, de modo a evitar um congelamento da agenda do Executivo, ainda dependente de arranjos no Congresso.
Nessa fase inicial, Lula tenta firmar uma base parlamentar, mas tem esbarrado nos apetites do centrão e na recalcitrância de seu líder maior, Arthur Lira, reeleito para o comando da Câmara com a quase totalidade dos 513 votos possíveis – o que lhe conferiu ainda mais poderes do que antes, sob o governo Bolsonaro.
A essa queda de braço com o bolsonarismo nas ruas e na Justiça na esteira da intentona golpista, somou-se essa “guerra fria” entre o Planalto e o deputado federal alagoano, que tem se comportado ora como aliado, ora como opositor.
"Não são 100 dias de um momento normal da democracia, são 100 dias de um momento excepcional da democracia brasileira"Fábio Kerche, cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fábio Kerche pondera que é preciso levar “em consideração esse cenário que foi encontrado”.
“Diferentemente de outros 100 primeiros dias de FHC, Lula 1 e 2 e Dilma”, ele diz, “a gente encontrou um país muito marcado pela radicalização que foi a eleição e por um governo que desrespeitou as instituições”.
Ainda de acordo com o docente, “não são 100 dias de um momento normal da democracia, são 100 dias de um momento excepcional da democracia brasileira” cujo principal objetivo até aqui tem sido restabelecer “certa normalidade e respeito do Executivo em relação aos poderes”.
Como se faz isso? “Do ponto de vista político”, responde Kerche, “dialogando com o Congresso e com o STF”, e, no âmbito econômico, operando para reduzir certa “resistência do Banco Central”, que tem mantido patamar elevado da taxa de juros e entrado em rota de colisão com o governo.
No terceiro mandato presidencial, Lula (PT) encontra cenário diferente de quando chegou ao Planalto pela primeira vez, duas décadas atrás.
Recém-saído de uma eleição acirrada, ele tem enfrentado uma oposição mais organizada em torno de dois eixos: o bolsonarismo e o lavajatismo, que parecia enterrado mas recobrou algum fôlego, com a contribuição do próprio petista.
Nesse período inicial, o chefe do Executivo dirigiu as críticas públicas a alvos prioritários. Um é o antecessor Jair Bolsonaro (PL). O outro é o senador e ex-juiz Sergio Moro (União Brasil-PR).
Para o cientista político Cleyton Monte, a manutenção dessa retórica reforçou uma fronteira que, segundo ele, Lula estabeleceu nos 100 dias de gestão.
“Uma das questões que mais foram vistas nesses 100 dias foi a demarcação com o bolsonarismo”, atesta Monte, acrescentando que esse embate se deu por meio da “revogação de atos, portarias, decretos e anulação de medidas”.
Mesmo fora do poder e do Brasil, Bolsonaro permaneceu sob fogo cerrado do presidente. Assim como Moro, que, até então desempenhando papel acanhando no Congresso depois de colecionar tentativas frustradas de se viabilizar candidato ao Governo Federal, foi levado para debaixo dos holofotes por Lula.
Alvo de um suposto plano do PCC, o senador esteve no centro do debate político por alguns dias após o presidente afirmar que a trama criminosa era uma armação do parlamentar.
Além dos dois episódios, Monte assinala também a investida golpista do 8 de janeiro como um divisor de águas dessa etapa.
“O grande ato foi a invasão terrorista em Brasília. Isso demarcou muito. Boa parte do governo até agora foi sobre investigar envolvidos, e isso está preso na polarização que o próprio Lula e nomes do seu governo, de forma consciente ou desavisada, acabam alimentando”, analisa.
PONTO DE VISTA
Por se tratar de um governo de reconstrução nacional, Lula utilizou esses primeiros 100 dias mais para reorganizar áreas da burocracia de Estado e de políticas públicas do que propriamente para fazer avançar novas agendas.
A retomada de programas simbólicos de governos petistas, como "Minha Casa, Minha Vida", "Bolsa Família" e "Mais Médicos”, ilustra bem isso, mas também ilude. Parte importante das políticas reorganizadas precede os governos petistas.
É o caso das políticas ambiental, indigenista, cultural, educacional, externa e de ciência e tecnologia, que foram sucateadas ou mesmo desmanteladas durante o quadriênio de Bolsonaro. O desmonte e o achaque a burocracias importantes como as do Ibama, ICMBio e Funai ilustram bem o que precisa ser reconstituído.
Ademais, temos um Congresso bem mais empoderado do que aquele com o qual lidaram os diversos presidentes desde a redemocratização. Isso reduz a velocidade dos acordos e dificulta o avanço das agendas.
Cláudio Couto, doutor em Ciência Política e professor da FGV