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Raquel Machado: quando a democracia precisa se defender
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Raquel Machado: quando a democracia precisa se defender

Professora explica por que a Justiça Eleitoral é tão criticada e incompreendida e aponta o papel das instituições para salvar a democracia brasileira
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Professora da Faculdade de Direito Raquel Machado, especialista em direito eleitoral (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Professora da Faculdade de Direito Raquel Machado, especialista em direito eleitoral

A Justiça Eleitoral é um dos mais incompreendidos entre os ramos do Judiciário, acredita a professora Raquel Machado, uma das mais respeitadas autoridades em direito eleitoral no Brasil. Ela explica que muitas atitudes tidas pelos críticos como arbitrárias da parte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são decorrentes da natureza excepcional da corte. O TSE tem atribuições normativas, consultivas e administrativas que nenhum outra esfera da Justiça tem, nem o Supremo Tribunal Federal (STF), aponta a professora. Isso inclui poder de polícia dos juízes para fiscalizarem, por exemplo, a propaganda eleitoral.

Raquel Machado comenta recentes decisões de grande impacto tomadas pela Justiça Eleitoral, como tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível e, no Ceará, a cassação de toda a chapa de deputados estaduais do PL. Ela analisa ainda os ataques cometidos contra o sistema político. A professora fala da chamada democracia defensiva ou democracia militante. São instrumentos de defesa do próprio regime democrático.

Embora seja uma das virtudes, uma das fragilidades da democracia, ela aponta, está no fato de que qualquer pessoa pode chegar ao poder. É diferente da monarquia, em que a linha sucessória é pré-estabelecida. Isso significa que pode chegar ao poder, pela via democrática, alguém que use o cargo para desacreditar e destruir o próprio sistema que o elegeu. Aquilo que Raquel Machado chama de "cavalo de Tróia da democracia". Por isso o regime precisa ser defendido e se defender.

Embora seja um dos tabus nesse debate, Machado destaca que a liberdade de expressão, e seus limites, passou a ser reexaminada com o aumento da violência política, uma dessas ameaças à democracia.

Raquel Machado é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenadora acadêmica da Transparência Eleitoral Brasileira, membro Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (Parla). Ela é doutora em direito pela USP, fez pós-doutorado na Universidade de Economia de Viena e foi professora visitante na Universidade de Paris Descartes (França) e na Universidade de Firenze (Itália).

Ela conversou com O POVO em uma das salas históricas da Faculdade de Direito da UFC, onde se graduou, cursou mestrado e hoje leciona. Questionada sobre as recentes investidas contra o Estado de direito e a atuação do Judiciário, ela afirma: "O que salvou a democracia brasileira foi a força das instituições". 

O POVO - A senhora disse, antes da entrevista, que a Justiça Eleitoral hoje é talvez o ramo do direito entre os mais incompreendidos. Por quê?

Raquel Machado - A Justiça Eleitoral é incompreendida, primeiro, porque as pessoas não têm noção histórica da importância do surgimento da Justiça Eleitoral. É importante, quando a gente pensa nas nossas instituições, na história do nosso país, compreender o motivo social dentro da nossa história. Os Estados Unidos não têm uma Justiça como nós temos a Justiça Eleitoral. Não posso usar os Estados Unidos como parâmetro porque a história americana é diferente da história brasileira. As instituições têm um sentido histórico. O sentido histórico da Justiça Eleitoral é combater as fraudes eleitorais. A Justiça Eleitoral surgiu da necessidade de ter um órgão afastado da política para controlar a integridade das eleições. Até então, as eleições eram controladas por quem fazia a política. Tinha muita fraude eleitoral. No contexto brasileiro, em que havia muita fraude eleitoral e em que essa fraude era praticada por quem estava na política, e pensando na dinâmica das instituições, foi decidido que a nossa Justiça Eleitoral deveria ser criada. Por quê? Porque ela seria integrada por pessoas com conhecimento técnico sobre normas jurídicas que asseguram o resultado da eleição.

"Os órgãos da Justiça Eleitoral têm mais poderes que os demais órgãos de Poder Judiciário. Isso faz com que as pessoas não compreendam algumas medidas imediatas e fortes que a Justiça Eleitoral toma" Raquel Machado

A primeira razão de incompreensão é a falta desse conhecimento sobre a razão de a Justiça Eleitoral existir. Depois, falta o conhecimento de que a Justiça Eleitoral tem muitos poderes. Os órgãos da Justiça Eleitoral têm mais poderes que os demais órgãos de Poder Judiciário. Isso faz com que as pessoas não compreendam algumas medidas imediatas e fortes que a Justiça Eleitoral toma. Parece arbítrio quando na verdade decorre da própria dinâmica da Justiça Eleitoral. E quais são esses poderes que a Justiça Eleitoral tem? A Justiça Eleitoral, como todos os órgãos do Poder Judiciário, tem poder jurisdicional para julgar as lides que são submetidas a ela. Mas, além disso, a Justiça Eleitoral tem três funções intensas que os outros órgãos do Poder Judiciário não têm. A Justiça Eleitoral tem muita função normativa. Ou seja, a Justiça Eleitoral elabora as normas para ajudar na concretização da Lei Eleitoral. Em outras matérias, em outros âmbitos, isso é feito por decreto. A gente não pode ter decreto em matéria eleitoral, porque se não o chefe do Executivo ia disciplinar a própria dinâmica da Justiça Eleitoral e das eleições. Uma pessoa interessada na política ia dizer como é que a política deveria ser. A Justiça Eleitoral, por essa necessidade também histórico-institucional, tem muito poder normativo. Os integrantes do TSE fazem normas secundárias para disciplinar como é que vão ser as eleições.

OP - As resoluções que a gente vê antes de cada eleição.

Raquel - Exato. São resoluções feitas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) porque não tem como ser feitas por decreto. A lei, quando ela é feita, nunca traz todos os elementos para sua aplicação. A lei sempre deixa brechas e dúvidas. Quem é que vai resolver? Quem resolve, no caso do direito eleitoral, é a própria Justiça Eleitoral. Essas resoluções dão um poder para o TSE que o STF (Supremo Tribunal Federal) não tem, que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) não tem, nenhum outro tribunal tem tanto poder normativo como tem o TSE. Mas esse poder o TSE tem porque a opção seria: ou é o TSE ou será o presidente da República. Porque estamos no âmbito nacional, precisamos de normatização nacional. Então, o TSE tem esse poder normativo muito intenso. Além desse poder normativo muito intenso, o TSE tem um poder consultivo. TSE responde a dúvidas sobre a legislação eleitoral. Nenhum outro órgão do Poder Judiciário tem esse poder consultivo. E ainda, e esse é um poder também muito intenso, a Justiça Eleitoral tem muito poder administrativo. É a Justiça Eleitoral que organiza as eleições. Os juízes eleitorais têm um poder que é tipicamente administrativo, que é o poder de polícia. Poder de polícia para, inclusive, controlar a propaganda é dos juízes eleitorais. É um poder que não é próprio de juiz.

Realmente é muito difícil para para quem não tem essa noção histórica do surgimento da Justiça Eleitoral. Quem não tem também essa compreensão da separação dos poderes, de por que a Justiça Eleitoral acumula tais poderes. Acha que muitas vezes a Justiça Eleitoral está agindo de forma arbitrária, quando ela está agindo dentro do jogo constitucional e institucional. Se isso não é bom, se isso é criticável, isso tem de ser feito dentro também de um diálogo institucional. Dentro de espaços em que nós podemos levar uma transformação. Porque se eu ficar irresponsavelmente agredindo ministros e agredindo instituições, isso pode trazer instabilidade para o país que não leva a nenhuma reforma. A indignação tem como sentido a transformação. Eu me indigno para transformar. Eu tenho de me indignar nos lugares corretos. Eu até acho que a Justiça Eleitoral pode ser criticável. Mas ela tem de ser criticável com esse conhecimento histórico e ela tem de ser criticável com esse pensamento de: vamos criticar para quê? Vamos melhorar o quê? O que é que nós devemos mudar? E não simplesmente dizer que os ministros não sabem, que os ministros merecem morrer, que eles devem ser presos, que eles são arbitrários. E um outro ponto. Nós não podemos ficar sempre atacando continuamente as instituições, quando na verdade o que nós temos são erros pontuais de algumas autoridades. Seria a mesma coisa de eu não concordar com o presidente da República e dizer que a Presidência da República deveria ser abolida. Foi o que a sociedade brasileira, de certa forma, fez. Em determinado momento, as pessoas estavam incomodadas com decisões do Supremo, com decisões do TSE e começaram a pedir a extinção desses órgãos. Quando não tem democracia sem Judiciário. Democracia não é só eleição. Nós temos de atacar os atos e as decisões que estão errados, e não as instituições como todo.

OP - A senhora explicou que a Justiça Eleitoral tem mais poderes, mas há uma crítica ao protagonismo assumido hoje. Sempre foi assim ou a senhora acha que há um crescimento do protagonismo da Justiça Eleitoral? Ou essa atuação sempre foi tão presente assim e a gente que não percebia?

Raquel - Essa atuação aumentou. E ela aumentou por motivos técnicos, sociais e políticos. Quais são os motivos técnicos, jurídicos que levaram essa alteração do Poder Judiciário como todo? Foi a ampliação da importância que nós damos aos princípios jurídicos, que são muito vagos. Antes, o direito trabalhava só com regras. Da década de 1950 do século XX para cá, nós intensificamos a valorização dos princípios, e os princípios são muito vagos. Para interpretar esses princípios vagos, eu preciso dar poder para o intérprete. E isso dá poder para o Judiciário. Tivemos também uma ampliação da invocação da moralidade pela sociedade. Uma ânsia de moralizar a política. Essa ânsia de moralizar a política veio por dois caminhos. Veio por alterações legislativas e também por poder do julgador de, muitas vezes diante de ações que antes nós considerávamos normais na política, se passar a ter mais rigor no controle. Também houve evolução do próprio direito eleitoral para uma amplitude no número de normas. Hoje nós temos muito mais regramento sobre financiamento de campanha, muito mais regramento sobre propaganda, muito mais regramento sobre o princípio da igualdade de modo geral. Foram muitos movimentos jurídicos, políticos e sociais que levaram a essa ampliação do poder dos juízes no que diz respeito ao controle da política.

OP - Nas eleições do ano passado, em 2018 também, Jair Bolsonaro politizou muito essa questão. De uma forma que hoje é até difícil a gente imaginar um cenário em que um juiz eleitoral possa dar uma decisão sem automaticamente a população achar que ele decidiu daquela forma por ser bolsonarista, ou por ser petista. A gente tem como superar isso?

Raquel - Eu penso que temos como superar, mas a longo prazo. A política, os direitos e os sentimentos sociais são feitos de impulsos e razões. A razão requer uma educação duradoura e longa. Quando nós temos a razão abalada, nos tornamos muito impulsivos. E nós estávamos muito impulsivos, todos, nos últimos quatro anos. Diante desse cenário de impulsividade, um afloramento dos sentimentos em detrimento da razão, nós precisamos trazer um pouco de calma para a sociedade. Para que as pessoas, quando criticam o Poder Judiciário... Ou na verdade quando atacam. Porque eu entendo que não é nem uma crítica. Muitas vezes é um ataque. Quando atacam o Poder Judiciário, quando atacam as instituições, pensem: mas qual a razão? Qual o sentido? Nós precisaremos agora de muita educação para cidadania.

"A política, os direitos e os sentimentos sociais são feitos de impulsos e razões. A razão requer uma educação duradoura e longa. Quando nós temos a razão abalada, nos tornamos muito impulsivos. E nós estávamos muito impulsivos, todos, nos últimos quatro anos. Diante desse cenário de impulsividade, um afloramento dos sentimentos em detrimento da razão, nós precisamos trazer um pouco de calma para a sociedade" Raquel Machado

Essa educação para a cidadania requer compreensão do funcionamento das instituições. Tem algo muito interessante da Justiça Eleitoral que foi desvalorizado pelo próprio TSE. O TSE proferiu decisões contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, mas o TSE também proferiu inúmeras decisões a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro. É necessário que as pessoas tenham consciência disso. O fato de ter sido proferida uma decisão ruim não quer dizer que só decisões ruins são proferidas. É necessário que as pessoas entendam, se informem. Há um dado muito relevante nesse jogo político polarizado. Na eleição anterior (2018), o então ex-presidente Lula não participou, por uma decisão da Justiça Eleitoral. Quando ele foi retirado das eleições anteriores, ele foi retirado por uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso. E ele foi retirado de uma forma muito grave. Quando uma candidatura está sendo discutida, a Justiça Eleitoral admite a chamada candidatura sub judice. A pessoa ficar discutindo a sua candidatura e continuar fazendo campanha. Na eleição em que o presidente Lula foi retirado, foi impedido de participar porque era inelegível, o TSE disse: ele (Lula) não pode fazer ato de campanha. Ou seja, não foi dado a ele o direito de fazer campanha sub judice. Esse mesmo TSE que agora proferiu uma decisão que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível também já impediu o ex-presidente, o atual presidente que então era ex-presidente, de participar. É preciso que as pessoas tenham esse conhecimento de que há decisões para todos os lados. É necessário que se veja a importância das instituições. Que se aprenda que é necessário criticar, mas é necessário criticar de forma construtiva. Agora, levaremos tempo, sim. Porque estamos vivendo muito mais guiados por sentimentos do que pela razão. As pessoas foram categorizadas, elas foram muito encaixadas em classificações. Se você não concorda com o que defende a pessoa X você é isso ou aquilo, quando na verdade o saudável. Por exemplo, hoje o presidente Lula está no poder. Mesmo uma pessoa que votou no presidente Lula, mesmo uma pessoa que gosta do partido do presidente Lula (o PT) se sinta à vontade para criticar ações do presidente Lula. Não existe em uma democracia ninguém que possa ser endeusado. O que nós tivemos durante o período eleitoral passado foi o endeusamento de políticos e uma perda do senso crítico. Essa perda do senso crítico traz esse cenário de polarização que nós devemos tentar combater para que nós tenhamos mais paz, para que nós tenhamos mais amizade, para que nós sejamos mais felizes. A felicidade depende também do conforto político, da habilidade para discordar sem se tornar inimigo.

"Não existe em uma democracia ninguém que possa ser endeusado. O que nós tivemos durante o período eleitoral passado foi o endeusamento de políticos e uma perda do senso crítico. Essa perda do senso crítico traz esse cenário de polarização que nós devemos tentar combater para que nós tenhamos mais paz" Raquel Machado

OP - Uma das críticas aos motivos que levaram à inelegibilidade de Bolsonaro é a um suposto avanço contra a liberdade de expressão. Qual a senhora considera o limite dessa liberdade?

Raquel - É muito importante nós considerarmos hoje esse limite. Nós tivemos um acirramento dos debates nos últimos tempos. Tivemos um aumento de falas violentas. A reanálise da liberdade de expressão surge nesse contexto de aumento da violência política. Estamos voltando a debater o que é liberdade de expressão com o aumento da violência política. A liberdade de expressão é muito importante e é muito importante que as pessoas possam dizer tudo o que pensam. Desde que não seja crime. É um elemento que as pessoas não consideram. A palavra é uma arma. A palavra fere e mata tanto quanto uma arma de verdade, porque o ser humano é feito de palavras. Nosso sentimentos vêm das palavras, nosso comportamento vem da palavra. Há um fato histórico que me impressiona muito que é a Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572). Catarina de Médici (mãe do rei da França, Carlos IX) pediu autorização ao filho para matar alguns huguenotes (protestantes franceses envolvidos nos conflitos religiosos do século XVI). O filho dela, o Carlos, disse: tudo bem. Foi autorizada a execução das pessoas que estavam naquela lista. A sociedade francesa teve contato com essa autorização para matar. Os próprios franceses, os próprios civis começaram a matar. E quando eles começaram, eles não conseguiam parar de matar. A violência, quando desencadeada, é muito difícil de ser freada. A liberdade de expressão tem de ser considerada nesse contexto de que a palavra é uma arma e de que a palavra pode ser utilizada para praticar crimes. Se por um lado eu tenho liberdade de expressão, eu tenho de considerar a liberdade de expressão também dentro de um contexto de responsabilidade. Aquele que usa a palavra deve ser responsável pelo que diz.

"Se por um lado eu tenho liberdade de expressão, eu tenho de considerar a liberdade de expressão dentro de um contexto de responsabilidade. Aquele que usa a palavra deve ser responsável pelo que diz" Raquel Machado

Alguns valores na nossa sociedade são inegociáveis porque são considerados direitos fundamentais. Apenas sociedades bem menos desenvolvidas na proteção dos direitos não têm direitos fundamentais. Mas nós temos direitos fundamentais. Porque nós temos direitos fundamentais, nós entendemos que o racismo não é aceitável. Nós entendemos que a homofobia não é aceitável. Porque praticar racismo e homofobia é crime. Eu não posso dizer que eu tenho liberdade de expressão de praticar crime. Você tem liberdade de expressão de difundir as suas ideias, de questionar. Você pode até dizer que não gosta de uma sociedade tão progressista, que acha que uma sociedade progressista põe em risco a família, que a família é muito importante, que esse arranjo pode levar ao perigo da sociedade. Mas não pode discriminar alguém, não pode agredir alguém. Da mesma forma não pode agredir as instituições, porque a democracia é feita de crença. Para a democracia existir, é preciso também que o povo acredite na democracia. Se aquele que está no poder utiliza o próprio espaço de poder para desacreditar a democracia, é uma espécie de cavalo de Tróia da democracia. É alguém que está ali para destruir a democracia. Por isso existe a chamada democracia militante ou democracia defensiva, que são técnicas para proteger a própria democracia. Como nós estávamos falando no começo, o TSE é criticado? É. O Poder Judiciário é criticado? É muito. Por exemplo, essa decisão do piso da enfermagem (sobre a obrigação de estados e municípios pagarem o piso), essa decisão eu penso que ela é muito criticável, mas eu não vou, por exemplo, dizer que o ministro Luís Roberto Barroso não merece ser acreditado porque ele tomou uma decisão com a qual não concordo, em um caso. É necessário saber fazer as críticas. O que aconteceu nas últimas eleições? O ex-presidente (Bolsonaro) convocou o embaixadores, ou seja, convocou a comunidade internacional para desacreditar o próprio país que ele governava. Se ele achava que estava correndo algum risco democrático de as eleições serem mesmo inválidas, ele deveria ter procurado ajuda internacional, deveria ter ido para a ONU, ele deveria ter ido para a OEA (Organização dos Estados Americanos), ele deveria ter procurado alguma organização internacional que pudesse ajudar e ele teria de ter feito em forma de apelo. Mas não, ele fez em forma de jocosidade, para desmerecer as instituições do país que ele governava. E que ele sabia que ia causar instabilidade. Então é uma incitação. A mesma incitação vejo na Noite de São Bartolomeu. Não é que o rei tenha dito: "Vamos matar os huguenotes". Não. Ele autorizou uma lista de pessoas que poderiam ser mortas. Mas, quando o chefe do Executivo chama pessoas para praticarem atos, é claro que essas pessoas têm uma tendência de acompanhá-lo. Ele (Bolsonaro) tem muita representatividade e ele realmente é um líder. Ele foi um líder, ele teve muito protagonismo verbal, político.

"Se aquele que está no poder utiliza o próprio espaço de poder para desacreditar a democracia, é uma espécie de cavalo de Tróia da democracia. É alguém que está ali para destruir a democracia" Raquel Machado

OP - A senhora falou da democracia defensiva. Quais os instrumentos para a democracia se defender?

Raquel - São instrumentos de controle, sobretudo pelo Poder Judiciário, mas também de conscientização. E também normativos. Por exemplo, nós não tínhamos o crime contra a democracia, o tipo penal. E agora nós temos. Porque se percebeu que era necessário diante do nosso contexto. Democracia defensiva é um conjunto de pensamentos, normas e ações para defender a democracia. Ela cria limites em relação à liberdade de expressão, em relação aos comportamentos dentro da própria democracia. Ela parece um paradoxo, porque um dos maiores fundamentos da democracia é a liberdade. As pessoas pensam: como é que, se a democracia tem como fundamento a liberdade, para defender a democracia eu vou limitar a liberdade? Mas a democracia já nasceu com limites. Tanto que um dos institutos mais importantes da democracia grega era o ostracismo, que existia para defender a democracia grega dos tiranos. O julgamento era se essa pessoa é um tirano. Se for um tirano, vamos colocar o nome dele na ostra para que ele seja expulso. Aquela pessoa não podia mais continuar naquela sociedade porque ela era nociva para a própria democracia. Então, a democracia sempre nasceu com uma ideia de se defender. A democracia não pode permitir viabilizar que aquela própria pessoa chegue ao poder e destrua a democracia, como aconteceu nos regimes totalitários. Mussolini foi aclamado, Hitler foi aclamado e eles, depois de estarem no poder, criaram formas de tornar o poder totalitário. Então, como nós podemos falar da democracia defensiva, a democracia militante? Primeiro, a figura da ostracismo, uma figura histórica, não foi teorizada. Durante o nazismo e o fascismo tem um livro que foi escrito por Karl Loewenstein. Ele escreveu esse texto que se chama A Democracia Militante, que é exatamente um texto em que ele dá um alerta: olha, se a democracia não se defender, ela vai ser destruída. Numa democracia, qualquer pessoa chega ao poder. É diferente de uma monarquia, em que eu já tenho toda uma linha sucessória. Eu sei quem vai ocupar ao poder. Na democracia, qualquer pessoa pode chegar. Inclusive um que vai destruir a democracia. Se a democracia não criar mecanismos de defesa, ela pode ser atacada. O que aconteceu no Brasil? Nós vivemos a ditadura. E a ditadura veio com toda uma justificativa econômica, social, jurídica e o sistema que foi colocado. Claro, não passava pela ideia de ninguém falar em democracia nem muito menos democracia defensiva. Quando nós tivemos a Constituição de 1988, houve mesmo uma festa em prol da democracia. A democracia estava no imaginário popular como algo positivo e bom. Mas as crises econômicas e sociais trouxeram uma suspeita sobre a capacidade da democracia de ser eficiente para produzir bons resultados econômicos, bons resultados sociais e as pessoas começaram a pedir a volta da ditadura. Como é que alguém pede a volta da ditadura? As pessoas poderiam até usar outras palavras, poderiam pedir a volta de um governo mais organizado, a volta de mais estabilidade, mas pedir a volta da ditadura é pedir o fim da democracia. E as pessoas não têm consciência disso, não têm consciência da gravidade que é pedir o fim da democracia.

"Democracia defensiva é um conjunto de pensamentos, normas e ações para defender a democracia" Raquel Machado
 

OP - A pena para abolição violenta do Estado democrático de direito é de quatro a oito anos de reclusão. Se não for reincidente, nem pega regime fechado. Não é pouco para algo tão grave?

Raquel - A pena é pequena, mas eu penso que nesse momento, a legislação veio principalmente com a força simbólica de ser um tipo penal. Já parece muito. Algumas pessoas não aceitam, acham que está cerceando a liberdade de expressão. A palavra pode ser muito perversa. É claro que eu não posso atirar com as palavras, como eu não posso atirar com o revólver. Mas não tinha esse tipo penal contra a democracia. Foi muito importante, simbolicamente, que ele tenha vindo, ainda que com uma pena reduzida. Isso já gera conscientização. E aí vamos ver o que vai acontecer nos próximos anos. É importante que as pessoas vão tomando consciência de que liberdade de expressão não é passe livre para arbitrariedade, não é passe livre para qualquer discurso. Porque sempre foi assim, só que nunca ninguém precisou dizer, nunca ninguém precisou dizer porque a sociedade estava num outro grau de civilidade. As pessoas não tinham coragem de dizer coisas que passaram a dizer. E não é uma opinião, isso que eu estou dizendo. O aumento da violência política é dado. As pessoas ficaram mais agressivas.

OP - A senhora falou como a democracia é feita de crença no sistema. E a confiança das pessoas na urna eletrônica caiu, puxada por uma campanha de ataque. É uma ferida que a gente vai ter de aprender a lidar?

Raquel - A urna eletrônica foi muito atacada. E é compreensível que uma pessoa não entenda como a urna funciona inteiramente, mas daí a duvidar da urna é um passo muito grande. Mas, se a pessoa que não entende como a urna funciona, porque ela tem tecnologia, e ouve quem está no poder duvidando da própria urna, é claro que ela vai sentir muito legitimada a duvidar da urna. A urna eletrônica foi muito fiscalizada. O TSE tomou todo o cuidado para chamar pessoas da sociedade civil. O próprio governo participou, porque a Defesa participou, o próprio governo fiscalizando as eleições. O passo a passo era explicado, como uma urna eletrônica funciona. Ela não tem, efetivamente, como ser fraudada porque ela é um sistema fechado de informações. É um sistema fechado e triplo de informações, com três elementos de verificação, que é o que fica gravado na urna, o disco e os documentos impressos do antes e do depois da urna. Esse ataque à urna infundado, é claro que ele leva ao descrédito da urna, porque se a pessoa não compreende a tecnologia, ela desacredita da tecnologia. O resultado final é um voto que ela não vê como é que é colocado. Mas o fato de ela não compreender como é colocado, porque nós não compreendemos a tecnologia de um modo geral, não quer dizer que ela não é confiável. Porque pessoas, técnicos que trabalham com informática e estão abertos à crítica da sociedade civil, permitem o acompanhamento de todo o funcionamento da urna.

OP - O que a senhora achou de o Exército de repente ser chamado a fiscalizar urna, auditar?

Raquel - No contexto que nós estávamos vivendo, foi importante. Porque um dos elementos mais fortes para mostrar que o presidente Jair Bolsonaro estava dizendo uma mentira no seu discurso aos embaixadores é que exatamente o Exército estava fiscalizando e o Exército não disse nada. Pelo contrário, ele atestou a funcionalidade das urnas. Então, naquele contexto de descrédito foi interessante que as Forças Armadas tenham participado. As Forças Armadas, de certa forma, apesar de ser inusual, apesar de ser desnecessário, naquele contexto foi necessário. O TSE, a Justiça Eleitoral arriscou muito. Arriscou muito porque as Forças Armadas poderiam ter trazido mais instabilidade. Mas não foi o que aconteceu. Foi um momento em que o TSE abriu o diálogo aos órgãos públicos, mas também à sociedade civil. Inúmeras organizações sem fins lucrativos acompanharam as eleições e observaram a validade do resultado. Foi arriscado, mas foi necessário. Foi muito importante naquele contexto, porque mostrou algo que, no começo nós referimos, que é a importância do diálogo entre as instituições e o respeito das instituições. O TSE, de uma forma leiga, disse: Forças Armadas, confio em vocês, venham dialogar, participem nesse momento com a gente, participe quem quiser. Se credenciem que eu quero que vocês vejam como essa urna, que está sendo duvidada, funciona. Eu até participei de várias reuniões com os ministros do TSE como observadora da Transparência Eleitoral. Eu ficava impressionada com a dedicação dos ministros em conversar, porque eles passavam às vezes uma amanhã inteira, uma tarde inteira, tarde e noite, ouvindo as críticas, ouvindo as observações de partidos políticos, de organizações da sociedade civil e das Forças Armadas.

"A imprensa foi muito importante. Porque a imprensa foi firme. Muitas pessoas passaram a acusar alguns jornalistas que simplesmente diziam que a urna funciona de antibolsonaristas, quando na verdade nós temos que passar a refletir sobre o que é um jornalismo de viés e o que é um jornalismo comprometido com a verdade" Raquel Machado

OP - Uma pergunta que é quase uma provocação: a senhora acha que o Alexandre de Moraes salvou a democracia brasileira?

Raquel - A atuação dele foi muito importante, mas o que salvou a democracia brasileira foi a força das instituições de modo geral. Nós estávamos amadurecidos democraticamente na nossa organização institucional. Não foi só o ministro Alexandre de Moraes. O ministro Alexandre de Moraes se tornou muito protagonista por quê? Porque ele era o presidente do órgão que tem muito poder administrativo. O Alexandre de Moraes foi o protagonista, foi a voz de outras personagens que também atuaram com muita força e atuaram com muita integridade. As instituições de um modo geral funcionaram, inclusive o Poder Legislativo, que é um poder também muito questionado. O Poder Legislativo percebeu o risco que nós estávamos correndo. As pessoas confundem democracia com a eleição. Democracia não é eleição, só. Eleição é muito importante para democracia, mas democracia é equilíbrio entre poderes, respeito aos direitos fundamentais, eleições íntegras. Para que isso ocorra, nós temos de ter as instituições funcionando. E nossas instituições funcionaram. Nós fomos salvos pelas instituições. A imprensa foi muito importante. Porque a imprensa foi firme. É claro que teve uma polarização. Quero fazer um evento sobre isso, porque muitas pessoas passaram a acusar alguns jornalistas que simplesmente diziam que a urna funciona de antibolsonaristas, quando na verdade nós temos que passar a refletir sobre o que é um jornalismo de viés e o que é um jornalismo comprometido com a verdade. O jornalismo foi muito importante. Também a força da organização da sociedade civil. A sociedade civil brasileira soube se organizar, tanto que nós vimos a Carta pela Democracia na USP. Aquela carta pela democracia reuniu muitas organizações. É muito interessante que as pessoas aprenderam a dinâmica do poder. As pessoas aprenderam: vamos fazer carta de repúdio, vamos fazer carta de apoio, vamos falar com as instituições. As pessoas aprenderam a se articular para defender a democracia. Aquela carta pela democracia da USP foi muito importante. Foram muitos atores que defenderam a democracia. O ministro Alexandre de Morais, algumas vezes ele errou. Algumas vezes ele foi exagerado mesmo. Só que ele proferiu muitas decisões muito acertadas. E essas decisões trouxeram estabilidade. Ele não teve medo do jogo político. Todos eles também foram ameaçados. É muito difícil você manter a sua decisão quando você está sendo ameaçada, sua família está sendo ameaçada. E ele teve coragem. Ele foi um homem corajoso. Não digo que ele foi sempre certo, mas ele foi muito corajoso.

"O ministro Alexandre de Morais, algumas vezes ele errou. Algumas vezes ele foi exagerado mesmo. Só que ele proferiu muitas decisões muito acertadas. E essas decisões trouxeram estabilidade. Ele não teve medo do jogo político. Não digo que ele foi sempre certo, mas ele foi muito corajoso." Raquel Machado

OP - Bolsonaro foi tornado inelegível. Se ele tem sido reeleito, seria mais difícil uma decisão eventualmente de cassar o mandato, com ele no poder?

Raquel - Teria sido difícil, sim. Porque existe o princípio do aproveitamento do voto. Sempre a vontade do eleitor tem de ser maximizada e considerada. A Justiça Eleitoral só age para anular uma eleição em casos extremamente graves. Foi exatamente, por isso que o TSE não deixou o Lula continuar fazendo campanha (em 2018) quando entendeu o que o Lula era inelegível e por isso não poderia continuar candidato. Porque o TSE teve medo que o Lula ganhasse. E era indiscutível que ele era inelegível naquele cenário. Não tinha como Lula não ser inelegível, porque tinha uma decisão de um órgão colegiado contra ele. Você poderia dizer que aquela decisão era injusta, mas você não poderia dizer que ele não era inelegível. O TSE, até sabendo disso, disse: o Lula não pode fazer campanha. Porque o Lula tinha muito risco de ganhar. Ganhar uma eleição é um argumento a mais a favor de quem vai ser julgado pela Justiça Eleitoral, apesar do elemento técnico. Por conta do princípio do aproveitamento do voto, por conta do princípio de que, se o eleitor foi à urna e votou, eu tenho de respeitar de alguma forma aquele voto. Eu só vou anular uma eleição diante de uma gravidade. Mas, isso é interessante no julgamento da inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro: o TSE teve muita preocupação com a gravidade da conduta. Porque segundo a lei não é qualquer abuso de poder que leva à inelegibilidade ou à perda do mandato. É apenas aquela grave. E o TSE, nesse julgamento, exatamente porque ainda que o ex-presidente Bolsonaro não tenha ganho, ele perdeu por muito pouco e tem o seu séquito de seguidores, o TSE teve muita preocupação de mostrar que não estava sendo arbitrário e de mostrar que não estava sendo político. Porque o TSE procurou, tecnicamente, dizer: aqui teve gravidade e ele mostrou essa gravidade tanto do ponto de vista valorativo jurídico, ou seja valores jurídicos muito importantes foram violados. Como ele (TSE) teve a preocupação de mostrar o impacto numérico da gravidade da ação que foi praticada pelo ex-presidente? Por exemplo mostrando como houve reprodução daqueles vídeos. Por isso que o documento do 8 de janeiro ficou sendo questionado se entrava ou não entrava como prova. Existe a questão processual, de saber se poderia, aquele documento que foi produzido depois, entrar como prova na ação. Mas além dessa questão, tem a questão de provar que os atos questionadores da eleição tiveram tanto impacto que levaram ao ataque às instituições. Mas então, o TSE, talvez se o ex-presidente Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito, talvez não cassasse o mandato dele, não tornasse inelegível, mas diante do cenário que nós vivemos, diante de tantas ações que foram feitas, eu penso que talvez ele continuasse com essa coragem. Mas é claro que nós teríamos um grande problema de legitimidade, porque os eleitores iriam contestar a decisão. E aí nós teríamos um caos social.

OP - Dezenas de deputados e senadores se elegeram com esse mesmo discurso de Bolsonaro. Inclusive vários estão sendo investigados porque atiçaram, incentivaram e financiaram os atos de 8 de janeiro. Essa questão do aproveitamento do voto protege esse pessoal?

Raquel - Essas pessoas têm de ter cuidado. As ações eleitorais têm de ser ajuizadas no momento certo. Algumas pessoas fizeram atos antidemocráticos, mas não se sujeitaram a ações, porque essas ações não foram ajuizadas. Tem muita gente que fez o discurso do Bolsonaro, mas ninguém entrou com ação contra elas. Se não entrou naquela época, não pode entrar agora. Ação eleitoral, só pode entrar até a diplomação. Se não entrou no tempo certo, não vai poder entrar agora. Mas essas pessoas, mesmo sendo eleitas, estão correndo risco, porque essa decisão do TSE não deixou de ser um recado sobre a relevância da democracia, não deixou de ser um recado sobre o cuidado que as pessoas devem ter quando atacam a democracia. Algumas pessoas ainda não perceberam isso e eu acho que elas estão agindo irresponsavelmente. Algumas pessoas dizem: quer dizer que o TSE não é mais criticável? É. Se quiser a gente organiza aqui um seminário para criticar a Justiça Eleitoral. Mas vai ser uma crítica pensando: qual é a reforma que nós vamos propor. As pessoas não podem ficar com esse discurso de incitar a população contra a democracia, incitar a população contra as instituições, porque isso é antidemocrático, isso tem consequência jurídica. Elas podem, sim, elas estão correndo risco de perder o mandato, se tiver ação contra elas.

OP - Tivemos recentemente a decisão mais extrema que me lembre da Justiça Eleitoral do Ceará, a cassação da chapa inteira de deputados estaduais do PL, por fraude a cota de gênero. Há um campo de pensamento que aqueles votos representam, muito significativo. E há o argumento que se tira duas vagas de mulheres e quatro homens irão assumir. Qual sua opinião sobre essa decisão e as complexidades que envolve uma decisão desse tamanho, a cassação de uma bancada inteira?

Raquel - Essa decisão é complexa, é dificilíssima, mas é uma decorrência da aplicação de uma evolução da jurisprudência. E de um comportamento doentio de partidos políticos de não respeitarem as cotas de candidaturas. Já faz um tempo que a jurisprudência vem dando recado para os partidos partidos: cuidado com as candidaturas femininas, porque os mandatos podem ser perdidos caso se constante fraude. Essa jurisprudência foi evoluindo ao longo de muito tempo. Recentemente tivemos a decisão mais importante sobre o assunto, a decisão do STF reconhecendo que o TSE, quando decidiu que toda a chapa deveria perder o mandato, estava decidindo em respeito ao princípio da igualdade constitucional, em respeito ao princípio da representatividade constitucional. O que aconteceu? Quando o PL foi julgado, foi o caso de deputados que receberam muitos votos, mas o julgamento do PL veio logo depois do julgamento de uma decisão do STF que disse: todos do partido que praticou a fraude devem perder o mandato. O Supremo, sem ter nenhuma ligação com esse caso do PL, reconheceu o que esse entendimento era válido. Porque chegou ao STF inclusive o questionamento: não é excessiva essa medida de dizer que todos vão perder o mandato? O STF disse não. Na verdade, reconhecer que todos vão perder o mandato porque teve fraude é a única maneira que nós temos de fazer com que ninguém seja beneficiado, porque o princípio da igualdade material de respeito às mulheres não foi observado. O Supremo diz: teve fraude, quem vai perder o mandato? Todos. Não podia, diante desse entendimento do Supremo, o TRE daqui reconhecer que teve fraude e levar só à cassação de alguns. A única saída do TRE daqui era dizer: não teve fraude. O TRE daqui poderia dizer: não teve fraude, mas os documentos dos autos demonstravam o contrário. Como é que, constatando que teve fraude, o TRE vai dizer que todos não serão cassados? Se o TRE dissesse: teve fraude, mas eu só vou cassar X, Y, Z, a decisão do TRE estaria contrariando uma (decisão) pretérita do Supremo depois de um longo questionamento sobre qual deveria ser a sanção. Inclusive eu já tinha pensado sobre isso. Eu pensei que as mulheres não deveriam ser prejudicadas, mas não foi esse entendimento do Supremo. O Supremo entendeu que todos devem ser atingidos. Nós chegamos ao momento em que, mais uma vez, o recado é: é muito grave retirar as mulheres da política. Partido, se você retirar as mulheres da política, você vai sofrer a sanção mais grave que você pode sofrer. O que os partidos têm de fazer agora é ter cuidado. É grave, mas faz parte do jogo e do jogo jurídico. Esse partido tem de ter um advogado, esse partido tem de ter uma assistência, esse partido tem de ter alguém que diga: cuidado, porque o Supremo já decidiu. E o Supremo não decidiu da noite para o dia. O Supremo decidiu depois de anos em que a questão vinha sendo debatida.

OP - A gente escuta questionamentos à urna eletrônica de deputados que foram eleitos e foram campeões de voto por esse sistema. Há contradição? É hipocrisia?

Raquel - Tem contradição e hipocrisia, mas tem também aproveitamento político de jogar para o conservadorismo, de jogar para pessoas que não querem acreditar na evolução do direito nem na importância das instituições. O eleitor precisa desenvolver senso crítico. É difícil, mas eu acho que o eleitor evolui, nós já evoluímos. É claro que nós involuímos também (risos). Nós tivemos alguns retrocessos, mas também tivemos é muitos progressos. O grau é de politização das pessoas aumentou muito, para o bem ou para o mal. É necessário agora que as pessoas percebam a contradição disso, até porque não existe decisão pública fora da política. Quem defende decisão pública fora da política e fora das instituições é ditador. É preciso ter muito cuidado com isso. As pessoas precisam saber disso. Como é que eu vou fazer política sem política? A política é o único caminho pacífico para tomada de decisão na sociedade. É claro que as pessoas vão se agredir vão discutir vão ter embates, mas elas vão chegar num acordo. Fora desse acordo verbal que a política permite, é guerra e barbárie.

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