Dois políticos, representantes do mesmo grupo ou fruto de uma coligação, dão as mãos e sobem o palanque para, juntos, disputar o comando de uma prefeitura. A dinâmica que começa sempre às mil maravilhas, em muitos municípios, não perdura até o fim dos quatros anos. É comum que atritos entre prefeito e vice resultem com um rompimento político e distanciamento nas relações. Em pelo menos sete municípios cearenses, esta situação acontece atualmente.
As regras eleitorais estabelecem que para concorrer em disputas majoritárias a prefeituras é preciso apresentar à Justiça Eleitoral um registro de candidatos a prefeito e vice-prefeito “sempre em chapa única e indivisível, ainda que resulte da indicação de uma coligação”. Ou seja, embora seja possível substituições por impedimentos, candidatos a prefeito e vice estão juntos até tomarem posse. No entanto, não há nada na legislação que firme que as figuras precisam continuar aliados após assumirem os mandatos.
A função primordial de um vice é estar disponível caso haja uma vacância no cargo de prefeito. A Lei Orgânica de cada município estabelece as funções para o vice, o de substituir o prefeito em ausências que variam de cidade para cidade e, auxiliar o chefe do Executivo sempre que houver uma convocação para “missões especiais”.
Em alguns municípios, há uma divisão para que vices assumam suas próprias pastas, como acontece em Fortaleza e Caucaia. Em ambos os casos, as estruturas tinham orçamento previsto, segundo as suas respectivas Lei Orçamentária Anual (LOA). A movimentação, no entanto, não tem obrigação legal e ocorre por um acordo de cada gestão.
O advogado Pedro Neto, com atuação voltada para o Direito Constitucional, Administrativo, Processual e Eleitoral, explica justamente que, como não há obrigatoriedade para que o vice tenha funções além da vacância e das “missões especiais”, cada gestão faz sua estruturação e articulações. Ele destaca o papel “institucional” do vice, mas que não chega a amarras legais que garantam, por exemplo, que ele recorra para poder ocupar algum espaço na governança.
“O vice e o prefeito estão juntos da candidatura até o dia da posse, juridicamente cabe ao titular inúmeras atribuições. Ao vice cabe ficar de prontidão para uma possível vacância”, explica. E segue: “Alguns municípios estruturaram a vice prefeitura designando servidores, mas não há essa atribuição nem nada que imponha o dever de fazer atribuição. É por mera faculdade convocar o vice para ocupar cargo na gestão”.
Ele afirma que o tempo em que o prefeito ou prefeita pode se ausentar da gestão varia entre 10, 15 ou 30 dias e também é definido na Lei Orgânica municipal. Caso o gestor ultrapasse isso, é preciso que o cargo seja passado para o vice.
Em casos nos quais as partes são rompidas é possível que o vice possa acionar a Câmara Municipal para apurar os fatos. O Ministério Público (MPCE), acionado em alguns casos de supostos “sumiços”, só podem atuar quando a ausência do gestor é acompanhada da possibilidade de que outros crimes estejam acontecendo.
Em Caucaia, o prefeito Vitor Valim (PSB) e Deuzinho Filho (União Brasil), além de rompidos, trocam publicamente acusações. Os dois se afastaram politicamente ainda em 2022 por motivações na época da eleição. O prefeito fez parte da base governista que apoiou a candidatura de Elmano de Freitas (PT), enquanto Deuzinho foi aliado de Capitão Wagner (União Brasil) na disputa estadual.
Eleito como parte da oposição estadual, Valim se aproximou do Palácio da Abolição ainda na gestão de Camilo Santana (PT). Enquanto isso, Deuzinho continuou ligado a Capitão Wagner. Segundo o vice, o rompimento teria atingido também a relação administrativa já que, segundo ele, o prefeito teria relatado desconforto com Deuzinho usando o gabinete.
“Logo depois das eleições, o prefeito me chamou para uma conversa pedindo que eu saísse do prédio porque ele não se sentia confortável comigo lá. Estou agora na Casa de Projetos, tive que sair do gabinete”, disse ao O POVO.
Os dois devem se enfrentar nas eleições de 2024, com Valim se lançando à reeleição e Deuzinho já articulando diálogo com vereadores do União Brasil e outras lideranças no Estado que atuam na oposição. Em um dos episódios, um funcionário da gestão do prefeito acusou o vice de usar dinheiro público para pagar "gogo boys".
Sem citar nomes, Valim rebateu e disse que a população é respeitada independentemente de partido político, orientação sexual, cor, raça e religião. "Então, não queiram realmente tergiversar o assunto, porque essa turma do atraso o que quer? Politizar. Eles não querem que Caucaia continue a avançar, essa é a verdade”, pontuou.
Chegou ao fim em 2022 a parceria do prefeito Bismarck Maia (Podemos) e Denise Rocha Menezes (PT). Os dois estão no segundo mandato à frente da prefeitura de Aracati, tendo concorrido juntos em 2016 e 2020. O rompimento tomou proporções em junho de 2022, quando a relação dos dois já vinha “estremecida”, após a vice-prefeita anunciar que iria se candidatar ao cargo de deputada estadual.
O contato piorou após ela registrar um boletim de ocorrência contra o filho do prefeito, Guilherme Bismarck (PDT), que era, na época, secretário da Casa Civil na gestão do pai, após ser xingada por ele.
O secretário, no entanto, acusou a petista de ter sido homofóbica e disse que, ao longo da gestão do pai, manteve uma relação de carinho com Denise, mas disse que a vice agia com “interesses pessoais”. Guilherme também foi candidato a deputado estadual, ficou na suplência do PDT e hoje ocupa cadeira na Assembleia Legislativa (Alece).
“Por cinco anos como chefe da Casa Civil de Aracati, mantive uma relação de verdadeiro carinho pela Denise, mesmo encontrando com ela somente às sextas-feiras. Se em algumas ocasiões não pude lhe atender em reivindicações, foi apenas baseado na orientação de priorizar os mais humildes e não aos interesses pessoais, no respeito ao patrimônio público, a moral e ao dinheiro do povo”, afirmou por meio de nota, na época.
O rompimento da chapa ocorreu em janeiro deste ano quando a vice, Lígia Protasio (PP), usou a redes sociais para criticar o prefeito Braguinha (PSB) e anunciar que iria se afastar politicamente. Na gravação, ela fala sobre "ingratidão" por seu grupo político ter escolhido apoiar o gestor após "ninguém querer chegar perto por medo de ser perseguido".
Ela aponta no vídeo que Braguinha não conseguiu permanecer unido, quando vice, nas chapas em que foi eleito. A relação dos dois vinha desgastada e foi acirrada com o processo eleitoral do ano passado. Ela alega que foi “gradativamente podada” de suas funções e disse que ela e sua família foram “vítimas de um estelionato eleitoral”.
No início de abril, o Ministério Público do Ceará (MPCE) afastou o Braguinha por suspeita de corrupção. Outros quatro secretários deixaram o cargo temporariamente. Poucos dias depois, a vice foi empossada como prefeita, onde permaneceu. Ela renovou quase todo o secretariado em meados de julho.
Pelas redes sociais, Braguinha alegou que há "forte perseguição política". "Seguimos fortalecidos com nosso propósito de construir uma Santa Quitéria melhor para todos de forma limpa e transparente, não baixaremos a cabeça diante dos ataques e investidas que estamos sofrendo", afirmou.
Mesmo sendo do mesmo partido, o vice-prefeito de Pindoretama, Raimundo Cândido (PL), rompeu com o grupo do prefeito Dedé Soldado (PL). A decisão foi anunciada para os assessores do mandatário e a justificativa seriam as denúncias de irregularidades na educação e saúde.
Em março, conforme noticiou O POVO, os vereadores Sabryna Rocha (PP) e Silvia Reis (PSB) denunciaram ter encontrado alimentos, que seriam destinados à merenda escolar, enterrados em uma escola localizada no distrito de Pratiús, em Pindoretama. As parlamentares alegaram ter recebido denúncias sobre o caso e que, ao se deslocar até o local, encontraram gêneros alimentícios enterrados.
Em nota, a Prefeitura de Pindoretama informou que tem "rigoroso controle" do estoque para evitar que alimentos vencidos sejam disponibilizados para unidades escolares e que alguns produtos ofertados são "enviados em quantidade superior ao necessário" para evitar que faltem alimentos para os alunos. Há a perspectiva de que o vice possa concorrer às eleições de 2024.
Em Limoeiro do Norte, o rompimento é acompanhado de um suposto sumiço do prefeito José Maria Lucena (PSB). A vice-prefeita Dilmara Amaral (PDT) rompeu relações com o prefeito durante a gestão e afirma existir dificuldade de contato com Lucena.
A oposição no município destaca que o prefeito teria se ausentado do Executivo por mais de 15 dias e não passou o cargo para a vice-gestora. A suposta ausência do prefeito se tornou uma investigação do Ministério Público (MPCE), apurando que, devido à saúde do prefeito, outras pessoas estariam desempenhando suas funções.
“A última aparição pública dele foi em janeiro. A família e a Prefeitura não se posicionam. Desde janeiro a gente não tem nenhuma notícia da saúde do prefeito. Já tentei conversar com ele, mas sem sucesso", afirmou Dilmara ao O POVO.
Uma audiência sobre o caso já foi realizada, na qual o prefeito compareceu virtualmente. Um segundo encontro tinha sido agendado, mas a defesa do prefeito alegou que no dia marcado seria quando o gestor realizaria hemodiálise. A audiência foi reagendada.
Um possível acordo chegou a ser ensaiado, com informações que Lucena tiraria licença. A vice considerou, na época, que era prejudicial o município estar politicamente dividido.
O acordo não vingou. Por meio de nota, a prefeitura disse estar funcionando normalmente. “A gestão continua trabalhando normalmente com secretários municipais e serviços à população, inclusive com destaques na Educação no Spaece e outras ações e na Saúde”, aponta.
Em Tianguá, o Ministério Público apura a capacidade civil do prefeito Luiz Menezes (PSD). O gestor e o vice-prefeito Alex Nunes (PL) estão rompidos desde o começo do mandato. A dupla foi eleita nas eleições suplementares de 2019 e repetiram a chapa no ano seguinte, sendo reeleita.
Em caso similar ao de Limoeiro do Norte, teria acontecido um suposto “sumiço” do prefeito ainda em agosto de 2022. O motivo seria a saúde delicada do gestor, segundo informações extraoficiais. Ele teria ficado internado em um hospital e até tratado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
A ausência teria ocorrido por mais de 15 dias, prazo que o cargo deveria passar para o vice-prefeito. No início de março, a vereadora Nadir Nunes (PL), do mesmo partido do vice e aliada dele, usou seu tempo no plenário para acusar que, sem o gestor, a Prefeitura estaria sendo gerida pelos assessores do prefeito e pela primeira-dama. A situação foi apurada pela Câmara Municipal e o procedimento foi arquivado.
O município enfrenta uma série de atipicidades. O prefeito Antônio Almeida Neto (MDB) cumpre o segundo afastamento, determinado pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) em processo sobre supostas irregulares na contratação de servidores terceirizados.
A vice Ana Patrícia (Republicanos), quando assumiu pela segunda vez, fez pronunciamento criticando o prefeito e a condição do grupo político na cidade. “Se hoje estou aqui, não foi uma escolha minha. Se hoje estou substituindo um prefeito que, pela segunda vez, está sendo acusado de corrupção, não fui eu, foi a Justiça”, afirmou. Ela ressaltou que não sabia como "receberia" o município.
Ela também escancarou problemas no MDB, legenda onde era filiada. “Nós trabalhamos em 4 meses e 25 dias para tentar unir um partido que estava até então esfacelado. Se isso não foi possível, não é nossa culpa”, afirmou. Recentemente, ela deixou a sigla e se filiou ao Republicanos, hoje sob a liderança de Chiquinho Feitosa.
As relações entre Joeni Holanda (PSD) e a vice Karine Aquino (PDT) estão apartadas. Hoje, eles ocupam grupos políticos distintos. Perguntado sobre sua relação com os vereadores, ele avaliou ter como aliado 10 dos 11 parlamentares e que "nunca esteve tão boa (a relação).
O rompimento passaria também pela montagem da chapa e por espaços na gestão. "Tenho direito de escolher um vice, assim como eles tem o direto de lutar pela gestão, não acho nada demais, não tem necessidade de ficar faltando com respeito", disse.
Ao O POVO, a vice disse que havia o compromisso de manter a mesma chapa em dois mandatos, mas foi comunicada pelas redes sociais que o prefeito escolheu outro nome para ocupar o cargo na próxima eleição. Segundo ela, não houve contato do prefeito.
“Nunca fui uma vice chata que fica dentro da prefeitura procurando papel sempre apoiei, ia nos eventos que ele me convidava”, ressaltou. A disputa seria também porque os dois apoiaram candidatos distintos em 2022.
Elcio e Sarto quebram tradição de rompimentos em Fortaleza
Fortaleza, a Capital e mais visado município nas eleições, escancara a dificuldade de encontrar equilíbrio entre as relações institucionais e políticas. O atual prefeito José Sarto (PDT) e seu vice Elcio Batista (PSDB) celebram três anos à frente do Executivo em boa sintonia e alinhamento, mesmo com período atribulado para o prefeito com a saída do PSB e do PSD da base governista.
Elcio, além de vice-prefeito, é presidente do Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor), assumindo cargo deixado por Eudoro Santana (PSB). O tucano, que foi chefe de Gabinete de Camilo Santana (PT) e secretário-chefe da Casa Civil do Governo do Ceará, é um dos porta-vozes do prefeito e tece constantes críticas a ex-aliados e ao grupo antes pactuado na eleição de 2020.
O mesmo destino não teve Roberto Cláudio, ainda no Pros em seu primeiro mandato, e Gaudêncio Lucena (PMDB). O desgaste na relação foi escancarado pela exoneração de secretários municipais peemedebistas. Os dois não renovaram a chapa quando RC concorreu novamente à prefeitura, em 2016, quando venceu tendo Moroni Torgan ao seu lado.
Gaudêncio chegou a bater boca publicamente com Ciro Gomes e cobrou o apoio ao, na época, candidato do PT ao governo do Estado do Ceará, Camilo Santana. Gaudencio era aliado de Eunício Oliveira (MDB), que disputou contra Camilo a vaga de governador.
O histórico de rompimento começa na redemocratização, quando a prefeita Maria Luiza Fontenele passou por diversos episódios de desgaste com o vice-prefeito Américo Barreira. Os dois eram filiados ao PT e tiveram divergências que levaram à expulsão da gestora do partido.
O racha também atingiu Ciro Gomes, que interrompeu o mandato de prefeito para assumir o cargo de governador do Estado. Seu vice Juraci Magalhães, do PMDB, rompeu com o PSDB de Ciro.
Juraci também rompeu com seus vices Marlon Cambraia (1997–2001) e Isabel Lopes (2001–2005). A situação se repetiu com nos dois mandatos de Luizianne Lins (PT), com Carlos Veneranda (2005–2009) e Tin Gomes (2009–2010) tendo esta se encerrado quando ele renunciou para assumir o cargo de deputado.