Em meio à escalada de violência na Bahia em meados de agosto, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) saiu em defesa da PM: “Eu quero pedir para aqueles que ficam mandando recados errados: respeitem a nossa Polícia Militar, o que vocês estão fazendo com a Polícia Militar é irresponsabilidade”.
Sucessor de Rui Costa no cargo, o petista se referia às críticas que tinham como alvo a explosão de casos de homicídios no estado e o aumento no contingente de vítimas por intervenção policial.
Dias depois das declarações do chefe do Executivo, a líder quilombola Bernadete Pacífico, de 72 anos, seria assassinada por disparos de arma de fogo nas proximidades do terreiro que mantinha.
Na última segunda-feira, 28, uma chacina deixou nove mortos na região metropolitana de Salvador – três eram crianças. Os corpos foram carbonizados.
O cenário não é uma marca apenas da Bahia. No Ceará, por exemplo, outro estado sob gestão de um governante petista, denúncias de tortura levadas a cabo nas unidades prisionais foram apresentadas por instituições que acompanham o tema.
Coordenador do grupo Prerrogativas, o advogado Marco Aurélio de Carvalho avalia que “a situação do sistema prisional do Ceará é dramática, vergonhosa e demanda imediata intervenção governamental”.
Segundo ele, em missão ao Ceará, “o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) produziram relatórios de inspeção em que apontaram a prática sistemática de violência e maus-tratos”.
Convidados pelo O POVO, pesquisadores refletem sobre as dificuldades que gestores de partidos idelogicamente alinhados ao campo progressista vêm tendo diante da curva ascendente da violência, seja pela letalidade das PMs, seja na esteira de disputas entre facções criminosas em torno do controle de territórios.
Ainda de acordo com Carvalho, apenas a ação dos governos estaduais não é suficiente para debelar esse tipo de quadro, cujo enfrentamento requer a participação de todos os entes da federação, sobretudo da União.
Em conversa com a reportagem, a professora emérita da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Glaucíria Mota Brasil, resume o que parece ser o maior desafio para os chefes de Executivo: reformular as PMs.
“Os governos podem até mudar, mas as polícias resistem às mudanças”, sintetiza.
Pesquisadora Glaucíria Mota Brasil reflete sobre desafio que a agenda da segurança pública representa para governos liderados por políticos de esquerda, a exemplo de Ceará e Bahia
Professora emérita da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Glaucíria Mota Brasil avalia que, mesmo em governos progressistas, as estruturas militarizadas das polícias são pouco permeáveis a mudanças em seu modo de funcionamento.
Para a coordenadora sênior do Laboratório de Direitos Humanos da Uece (Labvida), essa é uma das razões pelas quais há registros crescentes de violência policial em estados como Ceará e Bahia.
O outro motivo tem relação, sustenta a pesquisadora, com o quadro histórico. “A questão paradoxal, pós-ditadura, é que a polícia que temos hoje é a polícia que o estado brasileiro democrático herdou da ditadura militar de 1964”, aponta Mota Brasil.
O POVO – Avalia que as gestões de esquerda no país têm de fato dificuldade de abordar a agenda da segurança nos seus governos?
Glaucíria Mota Brasil – Os processos de democratização na América Latina, a partir dos anos 80, não resultaram em mudanças substanciais na segurança pública. Isso dificultou o enfrentamento da criminalidade violenta e não equacionou os problemas estruturais da relação entre polícia, poderes de estado e sociedade civil na democracia. Enquanto o campo progressista sempre teve dificuldades de abordar a agenda da segurança por questões histórico-políticas, a direita sempre abraçou as pautas da segurança, que, em muitas questões, estão alinhadas com seus interesses políticos. E as dificuldades da esquerda estão diretamente relacionadas aos 20 anos de ditadura militar a que esteve submetido o Brasil, a partir de 1964, e pelo fato de as suas instituições policiais terem sido instrumentalizadas como aparelhos do terror contra seus opositores. Estas sequestraram, torturaram, mataram, invadiram casas, fizeram desaparecer militantes, simpatizantes e políticos de esquerdas e até seus familiares contrários ao regime de exceção. Até hoje, familiares não tiveram acesso aos restos mortais porque lhes foi negado. Creio que não ser essa uma memória fácil de esquecer para muitos dos atuais gestores de esquerda que tiveram e têm laços com um “passado que nem passado é ainda”. A questão paradoxal, pós-ditadura, é que a polícia que temos hoje é a polícia que o estado brasileiro democrático herdou da ditadura militar de 1964. E não se pode ignorar que, com essa estrutura, vieram as práticas do passado que não foram esquecidas e persistem em tempos de democracia. O maior exemplo é o modus operandi letal, violento e violador de direitos de policiais que formam os quadros da instituição policial. Como explicar que, em pleno Estado Democrático de Direito, policiais sejam responsáveis por chacinas contra comunidades civis por motivo de vingança, como ocorreu recentemente no Guarujá, em São Paulo, e em 2015 na comunidade do Curió, no Ceará?
OP – As polícias não se democratizaram.
Glaucíria – A redemocratização do Estado brasileiro não significou a incorporação dos princípios democráticos e da legalidade nos serviços policiais pelo complexo fato histórico de a redemocratização ter se feito de modo incompleto. E o maior exemplo é que as polícias miliares brasileiras ainda mantêm vestígios da era ditatorial ao continuarem como exército de reserva das Forças Armadas. Muitas das suas estruturas internas de poder permaneceram intactas, como se fossem estruturas neutras prontas para servir à democracia, quando não são. Nesses últimos quatro anos, podemos observar que a neutralidade passa ao largo dessas estruturas. Atualmente, a polícia continua a usar a resposta violenta e de violação de direitos como principal meio de conter a criminalidade. Os números de civis mortos pela polícia continuam alarmantes, quer em governos de esquerda quer em governos de direita. A Constituição de 1988 não diz o que é segurança pública, embora em seu artigo 144 enumere quais são as instituições responsáveis por fazer e garantir a segurança pública no Estado brasileiro, além de afirmar que segurança pública é um dever do Estado e responsabilidade de todos. Se as leis que regem o trabalho policial são permissivas ou pouco claras, e as orientações de governo abertas, ou até mesmo violentas, a amplitude do poder discricionário das polícias só aumenta. Quer nos parecer que os governos podem até mudar, mas as polícias resistem às mudanças que possam trazer esses governos, principalmente, quando estes são progressistas.
OP – Por que temos visto episódios de abusos das PMs justamente em estados governados por políticos de esquerda, a exemplo de Ceará e Bahia?
Glaucíria – Os episódios de abusos das PMs estarem ocorrendo em estados governados pela esquerda, como Ceará e Bahia, não é algo isolado; uma vez que abusos, violências e assassinatos também são cometidos pelas PMs no Rio e em São Paulo, um estado governado pela direita. A questão é: como os governos de esquerda respondem ao modus operandi dessa polícia que viola sistematicamente os direitos humanos e de cidadania, principalmente da população pobre, negra e moradora das periferias das nossas cidades?
OP – E como eles têm respondido?
Glaucíria – Em todo esse processo, pode-se observar que a recorrência ao modelo tradicional de pensar e fazer polícia no estado brasileiro acabou se tornando um círculo vicioso do “eterno retorno” aos velhos modelos institucionais dos quais os governantes progressistas também têm lançado mão quando seus tipos ideais de gestão na segurança pública são “interrompidos”, como acontece hoje no Ceará, com o esvaziamento lento e gradual do “Pacto por um Ceará Pacífico”, e ocorreu no passado recente com o “Ronda do Quarteirão” no governo de Cid Gomes (2006-2010). E assim em todos os estados do Nordeste, que, embalados pelas propostas do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do segundo governo Lula (2006-2010), inauguram em suas políticas de segurança pública um novo modelo de policiamento com feições comunitárias e abordagens mais preventivas que repressivas – ou a “polícia da cordialidade”. Nesse contexto, ignoraram o fato histórico de as instituições policiais serem estruturas de poder secular, criadas na modernidade, que sabem absorver mudanças propostas pelos governos de plantão em sua racionalidade de funcionamento. E o que isso significa? Que, passado algum tempo, a maioria dos programas inaugurados pelos governos progressistas sob o signo da cidadania começaram a ter problemas internos e externos frente à dinâmica criminal, que estava se transformando rapidamente no cenário nacional e local. A solução encontrada por esses governos progressistas foi lançar mão “de um pé de boi”, como justificou o então governador Cid Gomes diante do fato de o velho modelo policial, forjado sob o signo do militarismo, voltar a assumir posição de destaque na política estadual de segurança pública em seu governo. Nunca foi tão atual a recomendação feita por Paulo Sérgio Pinheiro, no século passado, aos governos democráticos que assumiram pós-ditadura: que, se estes quisessem fazer a revolução na questão da violência, teriam que alterar as estruturas de poder das instituições policiais para retirar o entulho autoritário que deitou raízes profundas em suas estruturas.
OP – Quais os principais desafios para transformar as polícias?
Glaucíria – Entendo que esta é uma questão que não depende apenas da vontade do governante, embora ela seja o ponto de inflexão fundante na mudança da política de segurança pública local, como foi em Pernambuco durante o governo de Eduardo Campos. Se a questão paradoxal, pós-ditadura, é que a polícia que temos hoje é a polícia que o estado brasileiro democrático herdou da ditadura militar de 1964, qual será a questão paradoxal amanhã para os governos democráticos de hoje que não conseguirem democratizar suas polícias? Ouso dizer que, para se antecipar a esse paradoxo, será necessário não só reformar as polícias, como criar novas polícias sob o signo da cidadania e das suas políticas sociais, como se discute hoje em algumas cidades americanas e canadenses, numa concepção avessa à lógica da guerra que forjou o atual modelo militarizado das PMs, que vê o cidadão comum como inimigo a ser perseguido e eliminado. Para que isso aconteça, o campo progressista precisa fazer seu dever de casa, que é pautar a segurança pública com o objetivo de reformular o papel da polícia na sociedade democrática por meio de estratégias que possam afrouxar os laços que mantêm os trabalhadores policiais cativos politicamente e ideologicamente da direita, especialmente, da extrema direita.
“Governos de esquerda não conseguiram promover reformas estruturais na segurança”
Advogado e coordenador do grupo Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho considera que, embora governos conduzidos por políticos de esquerda tenham avançado na agenda de direitos, ainda não conseguiram levar adiante reformas nos aparatos das polícias no Brasil.
O POVO – Como avalia a forma como governos de esquerda lidam com a pauta da segurança pública no Brasil?
Marco Aurélio – Os governos de esquerda e do campo democrático ainda não conseguiram promover reformas estruturais na segurança pública, mas foram os que mais avançaram nesta pauta. Tivemos experiências exitosas, como as do governo de Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, e as promovidas em cidades administradas pelo PT no estado de São Paulo, notadamente em Diadema. Mas precisamos avançar a passos rápidos e largos.
OP – Temos visto denúncias de abusos das PMs em estados como Ceará e Bahia. Por que parece haver esse tipo de conduta exatamente em gestões politicamente alinhadas com uma agenda progressista?
Marco Aurélio – Os governos de esquerda e do campo democrático avançaram muito em políticas públicas de inclusão social, mas não conseguiram enfrentar com a necessária eficiência os desafios da segurança pública, o que se reflete, naturalmente, nas lamentáveis e vergonhosas situações de alta letalidade policial em alguns dos estados que governamos. A situação, infelizmente, é ainda pior nos estados governados pela direita. Precisamos dar respostas duras e firmes aos abusos cometidos por policiais e, tanto quanto, aos abusos cometidos no sistema penitenciário de um modo geral. Precisamos ressignificar os aparatos policiais do Estado brasileiro e firmar um grande pacto contra todo e qualquer tipo de violência, inclusive e em especial a estatal.
OP – Historicamente a esquerda no país negligenciou a pauta da segurança. Isso mudou?
Marco Aurélio – Não diria que houve negligência. Talvez, e é importante reconhecermos, não tenhamos conseguido trabalhar o tema com a transversalidade necessária. Segurança pública é saúde, educação, serviços públicos de qualidade, saneamento, moradia digna, geração de empregos e oportunidades. Isso tudo e muito mais. A boa exceção foi o Programa de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) criado no segundo governo Lula, que, pela primeira vez, incluiu a prevenção na pauta da segurança pública, envolvendo os municípios. E, vale registrar, como um grande e feliz exemplo, a política de segurança cidadã da cidade de Diadema, que só em dois anos já tem a menor taxa de homicídios dolosos do país, considerando as cidades com mais de 200 mil habitantes. São quatro homicídios dolosos para cada 100 mil habitantes. Na década de 90, a taxa de homicídios dolosos em Diadema era de 130 homicídios para cada 100 mil habitantes. A cidade também tem a menor taxa de letalidade policial do estado de São Paulo. Entre 2021 e 2022, ocorreram apenas quatro mortes em decorrência de intervenção policial.
OP – Do ponto de vista dos direitos, o que esses abusos das polícias militares representam?
Marco Aurélio – A ação policial tem que sempre ser pautada pela legalidade democrática. Os abusos devem ser rigorosamente investigados e duramente repreendidos. Os casos de tortura e de alta taxa de letalidade policial preocupam a sociedade brasileira de um modo geral e nos envergonham diante do mundo. E enviam um urgente alerta. São a demonstração material de que estamos perdendo esta batalha. Precisamos de uma política nacional de segurança pública criativa e inovadora, que deverá passar, necessariamente, por reformas constitucionais e infraconstitucionais. Acredito no governo Lula e em seu compromisso com a causa. Os ministros Flávio Dino (Justiça) e Sílvio de Almeida (Direitos Humanos) deixarão um grande legado na área. Têm espírito público e a coragem necessária para pautar esse debate.
OP – Como tem acompanhado casos de denúncias de tortura nas prisões do Ceará?
Marco Aurélio – A situação do sistema prisional do Ceará é dramática, vergonhosa e demanda imediata intervenção governamental. Em missão ao Ceará, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) produziram relatórios de inspeção em que apontaram a prática sistemática de violência e maus-tratos. A tortura como método. A seção cearense da OAB declarou recentemente, inclusive, o seu desconforto com a gestão do secretário de Administração Penitenciária do Estado, por opor obstáculos ao pleno exercício da advocacia e do direito de defesa, direito humano básico e fundamental. São órgãos e instâncias da sociedade civil absolutamente insuspeitos. Medidas urgentes e enérgicas hão de ser tomadas para correção desse estado de coisas. É um imperativo civilizatório. Tenho certeza, entretanto, que os esforços comuns do Ministério da Justiça, do Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria de Segurança Pública do Estado podem dar as melhores respostas para esse grande desafio. Mas não podemos, evidentemente, fechar os olhos para o que está acontecendo nos presídios do estado.
Os ganhos democráticos trazidos pela Constituição Federal de 1988 não se refletiram no modo como o Brasil lida com suas forças de segurança. O que se viu, nesse período, foi a manutenção de um enclave corporativo em meio a políticas sociais que permitiram uma inédita participação popular em áreas como Saúde, Educação e Assistência Social. Por causa disso, até hoje, temos de lidar com esse fardo de a segurança pública não ter sido completamente desmilitarizada.
Os governos que se denominam como progressistas enfrentam essa dificuldade no cotidiano: da distância entre o discurso feito para animar a militância e o pragmatismo em manter as mesmas políticas de sempre calcadas na repressão, seja ela qualificada ou não. Há uma dissonância nessa atitude, e quem aponta isso por vezes é tachado como “do contra”. Na prática, contudo, há um segmento da população que sofre com as consequências dessa escolha, haja vista o encarceramento em massa e as chacinas que cada vez menos repercutem na sociedade.
O voto do ministro Cristiano Zanin, escolhido pelo presidente Lula para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), é bastante representativo dessa contradição. Ao se posicionar contra a descriminalização do porte de drogas, ele só reforça a tese que sustenta o modus operandi das polícias, que veem na infinidade de operações e apreensões a única solução para um problema que é mais de saúde pública do que criminal. Mudar essa condição parece uma tarefa que os governos de esquerda não possuem capacidade ou vontade para tal. Mas alguém sempre paga essa conta: a população pobre, preta e periférica.
Ricardo Moura, pesquisador, jornalista e colunista do O POVO