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Um mundo em guerra
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Um mundo em guerra

Estimativa da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) aponta que até setembro deste ano, o número de pessoas deslocadas por razões de guerra, perseguição e violações de direitos humanos ultrapassou 114 milhões
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Prédios destroçados: imagem corriqueira (Foto: MOHAMMED ABED/AFP)
Foto: MOHAMMED ABED/AFP Prédios destroçados: imagem corriqueira

A guerra sempre fez parte da história mundial e, dificilmente, deixará de ser algo presente no cotidiano da raça humana. Hoje, dezenas de guerras ou conflitos armados estão em curso. Parte deles são midiáticos, como o conflito entre Israel e Hamas ou a guerra entre Rússia e Ucrânia. Outra parte, parece ter caído no esquecimento, como a guerra civil na Síria, a guerra por procuração no Iêmen ou os conflitos no Sudão e na Etiópia (ver quadro).

O tema sempre provocou discussões acaloradas entre os grupos envolvidos ou até mesmo entre aqueles que estão distantes da realidade dos conflitos, que a cada ano parecem se multiplicar. Apesar disso, nunca houve uma guerra que se justificasse boa ou uma paz que se julgasse ruim. Todas as guerras afetam os envolvidos e suas regiões, bem como os civis que muitas vezes são forçados a se deslocar para ou tras localidades ou outras nações.

Neste ano, o número de pessoas deslocadas por razões de guerra, perseguição e violações de direitos humanos ultrapassou 114 milhões no fim de setembro, segundo estimativa da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Enquanto o foco do mundo se mantém nos desdobramentos da guerra na Faixa de Gaza, na Palestina, muitos outros conflitos estão provocando mortes, crises humanitárias e deslocamento massivo.

Em junho, a Acnur publicou o relatório Tendências Globais sobre Deslocamento Forçado 2022 com dados consolidados do ano passado. Constatou-se que apenas em 2022, o número de pessoas deslocadas por guerra atingiu o montante de 108,4 milhões; O valor superou em 19,1 milhões o registrado em 2021, sendo o maior consolidado da história.

O principal fator de deslocamento no ano passado foi a guerra na Ucrânia. O número de refugiados ucranianos passou de 27,3 mil (em 2021) para 5,7 milhões no final de 2022, naquele que tornou-se o fluxo mais rápido de refugiados no mundo desde a 2ª Guerra Mundial. O POVO ouviu especialistas sobre se há uma crise no sistema de governança global e sobre as falhas de mecanismos internacionais em prevenir tais conflitos.

Uriã Fancelli, mestre em relações internacionais pelas universidades de Estrasburgo e Groningen reforça que as Nações Unidas (ONU) tem falhado em prevenir conflitos e se mostrado mais eficaz em agir no pós-guerra. “A ONU se mostrou mais eficiente em remediar as consequências desses conflitos do que em acabar com eles ou evitar que acontecessem. É como se fosse uma organização internacional de ajuda humanitária”.

O especialista defende que o modelo de governança global precisa de ajustes,mas ressalta conquistas importantes. “Acredito que é igual a um casamento. O fato de não ter funcionado para sempre não significa que não foi bom. Durante muito tempo essas instituições funcionaram e resultaram em várias medidas concretas e específicas, como por exemplo, o Protocolo de Kyoto ou a Declaração Universal de Direitos Humanos”, destaca.

No entanto, avalia que devido aos grandes interesses de grandes potências, a ONU acaba ficando “de mãos atadas para evitar grandes conflitos”. Fancelli destaca que um caminho para evitar a guerra pode ser a partir da oportunização de estabilidade econômica nas regiões menos desenvolvidas. “Muitas guerras são forjadas com base em discursos nacionalistas, mas se houver mais estabilidade econômica as frustrações das populações dificilmente serão exploradas para justificar uma declaração de guerra”, projeta.

Para Demetrius Pereira, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing e do Centro Universitário Belas Artes, há, sim, uma crise no multilateralismo e em parte dos mecanismos internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU.

“A própria criação da ONU, foi feita a partir de um acordo entre potências de que elas teriam mecanismos de controle, como o poder de veto. Seriam os grandes policiais do mundo. Esse sistema da ONU, o próprio Conselho de Segurança, começou a ficar desatualizado. A realidade não é a da 2ª Guerra Mundial”, analisa.

Para o especialista é preciso que tais mecanismos se adequem à nova realidade global. “Alemanha, Brasil, Japão e Índia formam um grupo que apoia um ao outro para a reforma do Conselho. Para nós brasileiros é a proposta mais interessante, que se dê mais inclusividade a países que influenciam o mundo na prática. Do jeito que está, as grandes potências exercem o poder de veto quando lhes interessa. EUA e Rússia historicamente são os que mais exercem esse poder de veto. São os que mais obstaculizam o funcionamento do conselho devido aos seus inúmeros interesses globais”.

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS?

Especialistas ouvidos pelo O POVO avaliaram os motivos que levam algumas guerras a serem mais faladas enquanto outras são menos comentadas, sobretudo no Ocidente. Mestre em relações internacionais, Uriã Fancelli analisa que esse fenômeno ajudaria a explicar uma “crescente divisão entre Norte e Sul global” que estaria em curso atualmente.

“Os países do sul (menos desenvolvidos), principalmente, acreditam que essas instituições internacionais, até então dominadas e conduzidas pelos países do norte (mais desenvolvidos), falharam em proteger seus interesses. Isso pôde ser visto tanto em relação à Pandemia quanto em relação à guerra na Ucrânia”, diz comparando a postura durante a guerra envolvendo um aliado europeu em relação a conflitos em outras nações do sul.

“A reação de diversos governos europeus em relação a refugiados ucranianos foi de acolhimento, inclusive com o governo do Reino Unido pagando para que seus cidadãos hospedassem essas pessoas. Agora, qual a reação dos europeus sobre refugiados vindos de países africanos? De puro desdém. O sul global percebeu isso, viu a diferença do tratamento dos refugiados ucranianos em relação aos refugiados de outras etnias. O sul global percebeu a diferença nesse tratamento e se sente frustrado com essas instituições”.

Sobre a atuação de mecanismos internacionais, Demetrius Pereira aponta que o principal papel passou a ser “prevenir as catástrofes humanitárias”. O professor explica ainda o motivo de algumas guerras serem midiáticas e outras não tão destacadas.

“Às vezes falta um pouco de interesse dos países mais ricos em certos conflitos e regiões. Geralmente, no Oriente Médio se presta mais atenção por conta do petróleo, que desperta interesse internacional. Em outras regiões, como em países da África, por exemplo, não há tanto interesse ou disposição para realizar intervenções ou até mesmo enviar ajuda”, diz.

Em relação ao Conselho de Segurança da ONU, os especialistas defendem uma revisão do modelo de funcionamento.

“Imagina colocar meia dúzia de países, sem qualquer tipo de poder coercitivo mais robusto. Eles conseguiriam apenas com o voto obrigar a Rússia a se retirar da Ucrânia, por exemplo? Uma reforma no Conselho não pode se resumir a apenas a ampliação de países, mas tem que ser na sua dinâmica de funcionamento”, finaliza Uriã.

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