A Rússia aposta em uma nova estratégia em um momento desfavorável da Ucrânia. Em meio a um inverno rigoroso (Hemisfério Norte), os russos vêm intensificando os ataques contra a infraestrutura civil, ampliando o pânico entre a população já bastante abatida pela guerra, que completa dois anos nesta sábado, 24.
A onda de ataques começou em dezembro, com mísseis e drones lançados contra as principais cidades ucranianas, incluindo Kiev, Kharkiv, Lviv e Odessa. Os ataques deixaram mais de 30 mortos. Especialistas dizem que o objetivo é enfraquecer o apoio ucraniano à guerra e forçar uma negociação.
"A Rússia espera levar a Ucrânia à rendição", afirma Raphael Cohen, analista da Rand Corporation, centro de estudos de Washington. Cohen diz que a estratégia de combinar mísseis e bombas diferentes foi usada na 2.ª Guerra e na Guerra do Vietnã.
Moscou também quer testar o aparato de defesa ucraniano, em um contexto de redução do fornecimento de armas da Europa e dos EUA. "Os ataques parecem ser reflexo de vários meses de experimentação com combinações diferentes de drones e mísseis para testar as defesas aéreas ucranianas", afirma um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, centro de estudos dos EUA.
Os ataques russos estão sendo feitos com bombas menos sofisticadas, baratas e difíceis de interceptar, mísseis de curto alcance e drones, como estratégia para a destruição de infraestrutura civil e industrial. O aparato de curto alcance fica pouco tempo no ar e passa pelas defesas ucranianas.
A combinação expôs a vulnerabilidade do sistema de defesa ucraniano. "Temos uma escassez de mísseis guiados antiaéreos, ninguém esconde isso", disse o porta-voz da Força Aérea Ucraniana, Yuri Ignat, em janeiro.
O relatório do Instituto para o Estudo da Guerra ressalta o uso dos drones iranianos Shahed e dos mísseis russos Kinzhal e Iskander, que viajam em alta velocidade, ficam pouco tempo no ar e podem se tornar imunes à guerra eletrônica. "Os russos usaram os Shaheds para contornar as defesas ucranianas e mísseis balísticos para infligir dano máximo. Os ucranianos não interceptaram nenhum dos disparos", completa o relatório.
A nova onda de ataques reforça o cálculo de analistas de que a Rússia armazenou uma grande quantidade de mísseis para usar em sua nova campanha de inverno. Moscou também aumentou a sua produção de mísseis como parte de uma transição para uma economia de guerra. "A Rússia se mobilizou para a guerra", disse Cohen. "Eles conseguem continuar com esses ataques por muito tempo."
Ataques russos no inverno já ocorreram antes. No ano passado, Moscou atacou a infraestrutura energética ucraniana. Apesar dos danos, a Ucrânia não se rendeu. A estratégia agora é mais abrangente, com alvos militares e industriais, além de civis, como shoppings, hospitais e edifícios. Especialistas concordam que a Ucrânia não se renderá e o apoio da população à guerra deve permanecer inalterado.
"A estratégia russa é uma tentativa de enfraquecer o apoio popular ucraniano à guerra", disse Vitelio Brustolin, pesquisador da Universidade Harvard e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). "A estratégia não funcionou no inverno passado e não vai funcionar agora."
Para Constanze Stelzenmüller, diretora do Brookings Institution, os ataques russos tiveram o efeito oposto do esperado por Moscou, aumentando o apoio ucraniano à guerra. "A estratégia deu fôlego maior para a sociedade ucraniana e relembra o Ocidente a razão de apoiar Kiev."
A defesa ucraniana depende da ajuda do Ocidente. Sem os repasses, a Ucrânia corre risco. "Kiev precisa de munição, além de sistemas de defesa antidrone e antimíssil", disse Stelzenmüller. Segundo ela, o Ocidente tem sido lento no envio de ajuda.
Brustolin afirma que a Ucrânia precisa melhorar a guerra eletrônica para bloquear o GPS russo e prevenir mais ataques. De acordo com relatos, isso já está acontecendo. Soldados ucranianos estão interceptando comunicações inimigas, aprendendo códigos e salvando vidas.
A dificuldade de manter o fluxo de apoio internacional passa por disputas travadas em Washington e Bruxelas. Na Europa, o obstáculo tem sido o premiê da Hungria, Viktor Orbán, um aliado da Rússia. Nos EUA, apesar do apoio do presidente Joe Biden, uma ala radical do Partido Republicano, próxima do ex-presidente Donald Trump, questiona a ajuda aos ucranianos.
Com a Câmara dos Deputados sob controle republicano e o Senado dominado pelos democratas, os americanos ainda não chegaram a um acordo para a aprovação de um novo pacote econômico.
Trump, que deve vencer as prévias e ser o candidato republicano nas eleições presidenciais de novembro, já ameaçou cortar o apoio americano à Ucrânia. Além de elogiar Vladimir Putin, ele garante que resolve a guerra "em 24 horas". "Nos EUA, a direita trumpista está tentando impedir o apoio americano à Ucrânia, mas não podemos deixar a Rússia vencer", afirma Stelzenmüller.
O elevado porém inverificável balanço de mortos da guerra na Ucrânia
O balanço humano dos dois anos de invasão russa na Ucrânia aumenta a centenas de milhares de mortos, segundo Kiev e Moscou, mas o número preciso segue sem ser revelado.
Tanto Moscou como Kiev permanecem em silêncio sobre suas baixas militares, e a Rússia oculta, até mesmo, o número de civis que morreram nos territórios que conquistou, como na cidade devastada de Mariupol.
Número desconhecido de mortes civis
Os números oficiais dos civis que morreram desde o início da invasão russa, em fevereiro de 2022, estão muito abaixo da realidade, já que não foi possível fazer uma contagem independente. A principal razão é a impossibilidade de acessar os territórios ucranianos ocupados pela Rússia.
Em junho de 2023, as autoridades ucranianas contabilizaram 10.368 civis mortos. Mas "acreditamos que o número mais provável é cinco vezes superior. Ou seja, ao redor de 50.000" vítimas, disse à época Oleg Gavrych, conselheiro do chefe de gabinete do presidente Volodimir Zelensky.
As Nações Unidas contabilizaram, por sua vez, 10.000 civis mortos, embora se acredite que o balanço também é "consideravelmente superior".
Apenas em Mariupol, a grande cidade portuária do sul do país, o cerco russo deixou pelo menos 25.000 mortos, segundo as autoridades russas, que se referem ao momento em que as tropas de Moscou conseguiram ocupar a cidade, entre fevereiro e maio de 2022.
Ainda não foram divulgados números das vítimas nas outras cidades ocupadas pela Rússia. Do lado russo da fronteira, no entanto, uma contagem do 7x7, um portal de notícias locais, contabilizou pelo menos 145 mortos.
Centenas de milhares de soldados
Tanto de um lado como do outro, os Estados-Maiores não comunicam sobre suas baixas militares, por isso é necessário buscar estimativas de terceiros.
Em agosto, o The New York Times citou oficiais americanos, que do lado ucraniano, estimaram as perdas militares em 70.000 e o número de feridos entre 100.000 e 120.000.
Do lado russo, foram registrados 120.000 mortos e entre 170.000 e 180.000 feridos.
Em 29 de janeiro, o ministro da Defesa britânico, James Heappey, considerou em uma resposta parlamentar que as perdas russas se elevavam a 350.000 mortos e feridos.
O Exército ucraniano calculou na terça-feira ter matado ou ferido cerca de 405.000 soldados russos em dois anos.
O ministro russo da Defesa, Serguei Shoigu, afirmou, por sua vez, em dezembro, que 383.000 soldados ucranianos foram feridos ou mortos desde o início da invasão.
Guerra na Ucrânia expõe erros estratégicos do passado e leva Europa a mudar foco para armas
Segura da proteção dos Estados Unidos e confiante nos tempos de paz, a Europa reduziu praticamente pela metade os gastos em defesa nas três décadas que se seguiram a Guerra Fria. Até que Vladimir Putin rompeu com a aparente normalidade ao invadir a Ucrânia. O conflito, que completa dois anos neste sábado, 24, expõe as fragilidades do continente no momento em que o apoio dos EUA é cada vez mais incerto. E levou a mudança de foco: do desenvolvimento verde para as armas.
Ainda que mais da metade do continente esteja sob o manto da Otan, paira o temor de que Putin poderia testar a aliança - alarme que soou repetidamente nas últimas semanas. A Alemanha alerta que a Rússia poderia atacar um país-membro entre cinco e oito anos, enquanto a Dinamarca afirma que Moscou poderia arriscar uma guerra mais ampla entre três a cinco anos.
A Suécia, que já abandonou a neutralidade histórica, mas ainda espera o aval da Hungria para entrar na Otan, soou ainda mais alarmada. O ministro da Defesa, Carl-Oskar Bohlin, disse que "poderia haver uma guerra" no país e o comandante militar Micael Byden reforçou que os suecos precisam "se preparar mentalmente" para a possibilidade de conflito.
A apreensão é alimentada por declarações que vêm do outro lado do Atlântico. O ex-presidente Donald Trump, que tenta voltar à Casa Branca, já sugeriu que poderia ignorar o artigo 5 do tratado da Otan ("o ataque armado contra um será considerado ataque contra todos"). Mais recentemente, ele foi além e disse que encorajaria a Rússia a fazer "o que quisesse" com países em dívida, uma provável referência ao compromisso de investir 2% do PIB em defesa.
A Europa reduziu drasticamente os investimentos militares no pós-Guerra Fria. Em 1989, ano em que caiu o Muro de Berlim, os gastos em defesa da Europa Central e Ocidental somaram US$ 348 bilhões, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri da sigla em inglês). Em 1993, já sem a União Soviética, os valores não chegaram a US$ 292 bilhões.
"Havia uma suposição geral de que era possível negociar com a Rússia, mas todos os acordos (do passado e do presente) foram ignorados na primeira oportunidade", afirma Jan Kallberg, pesquisador do programa de Segurança e Defesa Transatlântica do Centro de Análises Políticas Europeias (Cepa, da sigla em inglês).
"Isso cria uma incerteza significativa. Você vê, por exemplo, a Finlândia e a Suécia se juntando a Otan. E agora todo mundo diz que o potencial de uma guerra na Europa é uma realidade", acrescenta.
Putin avançou o sinal pela primeira vez em 2008 ao invadir a Georgia, ex-República Soviética, assim como a Ucrânia. Mais tarde, em 2014, tomou a Crimeia e foi a partir daí que os europeus passaram a se comprometer em gastar mais com a própria segurança. A questão é a velocidade.
"A Rússia está desafiando a lógica. O que aconteceu em 2022 parecia impossível. Precisamos estar preparados para qualquer cenário", disse em o ministro da Defesa da Polônia, Wladyslaw Kosiniak-Kamysz, em entrevista recente à imprensa local.
O país, que já esteve na zona de influência soviética, praticamente dobrou a meta e, em 2023, investiu 3,9% do PIB em defesa. Em termos proporcionais, supera os Estados Unidos, que gastaram 3,5% dos seus recursos na área.
Na esteira da declaração de Trump, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, informou este mês que 18 dos 31 países da aliança chegaram ao piso dos 2% do PIB. Mas reconheceu que "alguns aliados ainda tem um caminho a percorrer.
De fato, os investimentos tem aumentado. O "Balanço Militar" do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos publicado este mês mostrou que os gastos com defesa na Europa em 2023 chegaram a US$388 bilhões. Para comparação, no entanto, a Ásia gastou US$ 510 bilhões, sendo boa parte da China. Nos EUA, a cifra passa dos US$ 900 bilhões.
"A Europa está preocupada que possa, de repente, ficar por conta própria e não está preparada para isso. Porque a Europa depende dos EUA para segurança basicamente desde 1942", lembrou o historiador Niall Ferguson, em entrevista no fim de janeiro. "Não vejo como a Europa pode fazer sem os Estados Unidos pelo menos pelos próximos dez anos. E nesse período terá que gastar muito mais em segurança do que tem gastado", acrescentou.
Do verde para as armas
Como parte do esforço para aumentar as capacidades de segurança, a presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen prometeu lançar daqui a duas semanas uma estratégia industrial de defesa. O plano inclui a abertura de um escritório de inovação na Ucrânia.
"Precisamos gastar mais, sem dúvida. Estamos no caminho, mas sabemos que não é suficiente e que esses gastos precisam ser sustentados", disse na Conferência de Segurança de Munique. "Sou uma transatlântica convicta e, ao mesmo tempo, temos de construir uma Europa forte e isso anda de mãos dadas", acrescentou. Em outras palavras, não dá para depender apenas da aliança com os EUA.
A alemã está à frente da União Europeia desde 2019 - quando protestos de jovens inspirados pela ativista Greta Thunberg, eleita a pessoa daquele ano pela revista Time, impulsionaram o debate sobre as mudanças climáticas. Agora, no entanto, o mundo mudou. E as prioridades europeias também.
Negociadores do bloco europeu reduziram o plano de inovação de 10 bilhões de euros, propostos no meio do ano passado, para 1,5 bilhão no começo de 2024. E condicionaram os recursos a projetos de defesa e não tecnologia verde, como previa inicialmente a Plataforma de Tecnologias Estratégicas para Europa (STEP, da sigla em inglês). Os valores ainda estão em negociação, mas a discussão evidencia a mudança de foco do bloco.
Em paralelo, o Banco Europeu de Investimento, que descreve a transição verde como prioridade e destina mais da metade dos recursos para ações climáticas e desenvolvimento sustentável, prometeu 8 bilhões de euros para impulsionar a segurança na Europa. Isso apesar de projetos militares e de armamento estarem na lista de investimentos banidos do banco, o que tem sido motivo de discussões dentro do bloco.
"Uma mentalidade quase da Guerra Fria está voltando. E há na Europa uma geração de políticos muito jovens, que nunca pensou sobre a ameaça de armas nucleares porque isso não era discutido há 30 anos. Todos achavam que era algo muito distante", afirma Jan Kallberg. "A classe política estava muito concentrada na questão ambiental, que era uma discussão muito grande na Europa. E agora precisa discutir cenários terríveis em que não há opção boa", acrescenta.
Dificuldades do apoio à Ucrânia
Bruxelas já superou Washington em ajuda a Kiev, mas a distância entre o prometido e o entregue ainda é grande. A União Europeia se comprometeu com 144 bilhões de euros e alocou metade, 77 bilhões, segundo o monitor do Kiel Institute for the World Economy, com sede na Alemanha.
Acontece que a redução do investimento nas últimas décadas enfraqueceu a indústria e, agora, os europeus enfrentam dificuldades para produzir e fornecer ajuda militar na velocidade que a Ucrânia - arrastada para uma guerra de intensa artilharia - precisa.
Um exemplo disso são as munições: a promessa era de 1 milhão no prazo de um ano que se encerra em março mas, até novembro de 2023, só 300 mil haviam sido entregues. "Não vamos atingir 1 milhão, precisamos assumir isso", admitiu na época o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius - o mesmo que alertou para o risco de a Rússia atacar a Otan.
"Houve uma enorme redução das indústrias de defesa e, agora, o resultado é que a Europa está em uma posição ruim em termos de capacidade de produção e enfrenta desafios para atender os requisitos da Ucrânia", afirma o capitão aposentado da inteligência naval americana e pesquisador do Centro de Análise de Política Europeia, Steven Horrell.
Isso leva ao questionamento: e se realmente houvesse um conflito Otan versus Rússia? As bases industriais de defesa não estão preparadas para esses desafios em larga escala.
O exercício da Otan
Na tentativa de corrigir os erros estratégicos do passado e se preparar para esses desafios em larga escala, a Otan lançou o maior exercício militar desde o fim da Guerra Fria. Com 90 mil soldados mobilizados, o objetivo é testar como funcionariam na prática os novos planos de segurança da aliança militar.
O treinamento vai até maio com a participação dos 31 países da Otan mais a Suécia. E a justificativa é a ameaça da Rússia. "Será uma demonstração clara de nossa unidade, força e determinação em nos protegermos mutuamente", disse o general norte-americano Christopher Cavoli, chefe do Comando da Otan para a Europa quando o exercício foi anunciado.
Segundo analistas, o treinamento é a continuidade dos compromissos estabelecidos pela Otan nas últimas cúpulas, realizadas já no contexto de guerra - a de Madri, em 2022, e a de Vilna, em 2023.
"A grande questão não é nem mesmo o número de 90 mil soldados, mas o exercício dos planos. É a forma de garantir que não há erros de cálculo, que não ficou nada para trás. É levar o plano para prática e corrigir os erros", afirma Steven Horrell.
O alerta que vem do Báltico
Outra evidência da tensão na Europa veio dos países Bálticos, que estão entre os principais apoiadores da Ucrânia (na proporção do PIB) e tem sido há anos os mais vocais ao alertar para ameaça da Rússia, mesmo antes da guerra. Estônia, Letônia e Lituânia, concordaram em construir uma linha de defesa conjunta para proteger o flanco oriental da Otan. A ideia é dissuadir e, se preciso, se defender de potenciais ataques.
O monitor do Kiel Institute for the World Economy mostra que, desde o início da guerra, a Estônia destinou o equivalente a 3,5% do PIB para Kiev. Considerando o tamanho da sua economia, o país é aparece como o maior apoiador. Lituânia e Letônia também estão entre os cinco maiores doadores em termos proporcionais com 1,5% e 1,2% do PIB, respectivamente.
Além do dinheiro, os Bálticos também fornecem apoio político no momento em que a Ucrânia enfrenta a fadiga da guerra. Talvez por isso, a região tenha sido escolhida pelo presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, para a primeira viagem internacional do ano. "Putin não vai parar. Ele quer ocupar a todos nós", disse em Vilna, na Lituânia, ao ecoar os temores locais.
As repúblicas do Báltico foram as primeiras a romper com o Partido Comunista e deixar a antiga União Soviética ainda antes do bloco se desintegrar. Uma década depois, Lituânia, Estônia e Letônia deram entrada na Otan e na União Europeia. O movimento foi considerado uma traição por Vladimir Putin, que investe em campanhas de intimidação.
"Os Bálticos, assim como a Polônia, têm sido a exceção ao alertar, mesmo antes de 2014 (quando Crimeia foi anexada) que a Rússia era uma ameaça enquanto havia ainda esse otimismo com o fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética", aponta Steven Horrell. "Eles tiveram uma experiência direta e conhecem as ambições imperialistas da Rússia", acrescentou.
Conflitos atuais colocam mundo à beira da 'década mais perigosa', diz relatório
A guerra entre Israel e Hamas, o conflito na Ucrânia e as tensões crescentes entre China e Irã preveem "uma década mais perigosa" no mundo, alertou na última terça-feira, 13, o instituto especializado em defesa IISS.
A edição de 2024 do balanço militar do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), sediado em Londres, observa que o mundo entrou em um "ambiente de segurança altamente volátil" no ano passado.
Esta organização projeta que a situação de instabilidade continuará e cita também a vitória do Azerbaijão contra os separatistas armênios em Nagorno-Karabakh ou os golpes de Estado no Níger e no Gabão.
"A atual situação de segurança militar pressagia o que provavelmente será uma década mais perigosa, caracterizada pelo recurso acentuado por parte de alguns à força militar para fazer valer suas exigências", afirma o documento.
Soma-se a isto "o desejo entre as democracias que compartilham os mesmos valores de reforçar os laços bilaterais e multilaterais em questão de defesa, como resposta a esta situação".
Ao todo, os gastos militares no mundo aumentaram 9% no ano passado, chegando aos US$ 2,2 trilhões (quase R$ 11 trilhões na cotação da época), um valor sem precedentes, de acordo com o IISS, e que espera novo aumento em 2024.
A organização explica que este fenômeno se deu, principalmente, devido à guerra na Ucrânia e às tensões em torno da China.
O relatório foi publicado no momento em que o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, levantou a possibilidade de parar de defender os países da Otan que não pagassem suas dívidas.
De acordo com o IISS, apenas 10 dos 31 países-membros desta aliança atlântica estão cumprindo o objetivo de dedicar 2% do Produto Interno Bruto (PIB) ao gastos militares, embora 19 o tenham aumentado. (AFP)
Putin diz "é 'impossível' derrotar a Rússia na Ucrânia. "Nunca vai acontecer"
O presidente Vladimir Putin disse ao Ocidente que uma derrota da Rússia na Ucrânia é "impossível", em uma longa entrevista com o jornalista conservador americano Tucker Carlson, transmitida nesta quinta-feira (8).
Carlson, próximo ao candidato à Casa Branca e ex-presidente republicano Donald Trump, fez poucas perguntas difíceis e ouviu os pontos de vista de Putin sobre a história russa, retratando o país como vítima de traições ocidentais.
O presidente russo defendeu sua decisão de invadir a Ucrânia em fevereiro de 2022 e disse que o Ocidente agora percebe que a Rússia não será derrotada, apesar da ajuda dos Estados Unidos, Europa e Otan a Kiev.
"Houve alvoroço e clamor sobre infligir uma derrota estratégica à Rússia no campo de batalha, mas agora aparentemente estão percebendo que é difícil conseguir isso, se é que é possível. Na minha opinião, é impossível por definição", afirmou. "Nunca vai acontecer".
Ele também aproveitou para enviar uma mensagem ao Congresso dos Estados Unidos, onde os republicanos, sob a influência de Trump, estão cada vez mais relutantes em continuar apoiando a Ucrânia com armas e ajuda militar.
"Vou dizer o que estamos dizendo sobre este assunto e o que estamos transmitindo aos líderes americanos. Se realmente querem parar de lutar, devem parar de fornecer armas", disse.
Quando perguntado se Moscou consideraria invadir outros países da região como Polônia e Letônia, que são membros da Otan, Putin respondeu "não ter interesse".
"Você pode imaginar um cenário em que envie tropas russas para a Polônia?", perguntou Carlson. "Apenas em um caso, se a Polônia atacar a Rússia", respondeu Putin. E acrescentou: "Não temos interesse na Polônia, Letônia ou qualquer outro lugar. Por que faríamos isso? Simplesmente não temos interesse".
Além disso, o presidente russo descartou que as relações entre Washington e Moscou vão mudar com a eleição de um novo presidente americano em 5 de novembro, provavelmente em um confronto entre o democrata Joe Biden e Trump.
"Você acabou de me perguntar se vem outro líder e muda alguma coisa? Não se trata do líder. Não se trata da personalidade de uma pessoa em particular", respondeu na entrevista, gravada na terça-feira.
Carlson não fez perguntas a Putin sobre sua relação com Trump.
Quando era presidente e desde que foi derrotado por Biden nas eleições de 2020, Trump elogiou repetidamente Putin.
O magnata republicano não condenou a invasão da Ucrânia e afirma em seus comícios que, se fosse reeleito, poderia resolver a guerra em "24 horas", embora sem dizer como.
Por outro lado, Biden chamou Putin de "criminoso de guerra" e tornou o apoio ao governo ucraniano uma das prioridades de sua administração.
Na entrevista de mais de duas horas com o ex-apresentador da Fox News, Putin também estimou que "pode ser alcançado um acordo" sobre o jornalista americano Evan Gershkovich, detido há quase um ano.
"Não há tabus para resolver este assunto. Estamos dispostos a resolvê-lo, mas há certas condições que estão sendo discutidas através dos canais dos serviços especiais. Acredito que um acordo pode ser alcançado", declarou Putin.
Após dois anos de guerra, Ucrânia volta à defensiva
Prestes a entrar no terceiro ano de guerra, o Exército ucraniano, exausto após a sua contraofensiva fracassada em 2023, está mais uma vez na defensiva face a um front estagnado e aos ataques das tropas russas, mais numerosas e melhor armadas.
Há duas semanas, o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, substituiu o comandante-em-chefe das suas Forças Armadas, Valeri Zaluzhni, pelo general Oleksander Sirski.
Ciente de que a situação poderia tornar-se crítica, Zelensky confiou-lhe a reconstrução das suas legiões para eventualmente libertar as regiões sob controle russo e não perder outras enquanto isso.
"A hora da renovação é agora", disse Zelensky, que pediu ao seu novo comandante-em-chefe "um plano de ação realista e detalhado" para 2024 com a ambição de recuperar 20% do território ucraniano ocupado.
"2024 não pode ser um sucesso para a Ucrânia a menos que haja mudanças", acrescentou.
Mas no front, a chuva e a neve do inverno desgastam o físico e a moral das tropas.
"Os meninos estão muito cansados. Moralmente, fisicamente, eles não aguentam mais. Porque depois de dois anos, não vimos o fim do túnel", disse à AFP em janeiro um soldado perto de Kupiansk, no nordeste, uma das áreas atacadas incansavelmente pelos russos durante meses.
No final de 2022, a moral foi reforçadas por ofensivas bem-sucedidas em Kharkiv, no nordeste, e em Kherson, no sul. Mas 2023 e o início de 2024 foram marcados por uma série de contratempos.
A cidade de Bakhmut caiu nas mãos dos russos em maio, após meses de batalha sangrenta. Posteriormente, a contraofensiva de verão de Kiev permitiu somente a recuperação de algumas cidades às custas de enormes perdas.
As tropas ucranianas encontraram uma sólida defesa do Exército russo, que agora parte para a ofensiva com ataques constantes, especialmente em Avdiivka, no front oriental.
Esta cidade da classe trabalhadora tornou-se um novo símbolo da resistência ucraniana.
Desde outubro, as forças russas têm atacado e bombardeado massivamente a cidade onde, no meio de uma destruição generalizada, ainda vivem cerca de 900 civis dos 30 mil de antes da guerra.
O cerco russo está se apertando e a retirada não está descartada. O prefeito, Vitali Barabash, falou recentemente de uma situação "crítica" em alguns bairros e admitiu que os combates chegaram às ruas.
Já em novembro, o Exército russo enviava os seus homens "em ondas", sofrendo perdas massivas, com "campos cobertos de cadáveres" descritos pelos soldados que defendiam a cidade, para onde a AFP se deslocou naquele momento.
A única boa notícia nos últimos meses foi a situação no Mar Negro. A Ucrânia pode se orgulhar de ter repelido a poderosa frota russa com a ajuda de mísseis e drones marítimos e de ter aberto uma rota crucial para a exportação de cereais ucranianos.
Em dois anos, o Exército ucraniano também sofreu perdas, cuja magnitude não foi revelada, mas que segundo os Estados Unidos ascenderiam a cerca de 70 mil mortos e até 120 mil feridos.
Atualmente, mal encontra voluntários para o front, o que torna urgente a reposição das perdas. Além disso, alguns veteranos começam a exigir o direito à desmobilização.
A Rússia, o país mais populoso, mais rico e mais autoritário, parece reforçar as suas fileiras graças a uma mistura de propaganda patriótica, coerção e incentivos econômicos.
Na Ucrânia, o debate sobre a mobilização causa controvérsias e o governo teve que repensar o seu projeto de lei sobre esta questão.
"Nossas unidades não têm pessoal suficiente. Precisamos de jovens, com menos de 40 anos. E o mais importante é estar motivado", disse à AFP no final de dezembro um comandante de um batalhão perto de Bakhmut.
O Exército queria mais 500 mil mobilizados, mas o presidente Zelensky não autorizou.
No domínio do armamento, a situação é incerta porque os Estados Unidos, no contexto de uma campanha eleitoral, hesitam em continuar a enviar ajuda à Ucrânia. Um pacote de ajuda de 60 bilhões de dólares está bloqueado há meses.
Por sua vez, os europeus desbloquearam, com dificuldades, uma nova ajuda de cerca de 54 bilhões de dólares, mas estão atrasados no que diz respeito às entregas de projéteis de artilharia.
Contudo, sem ajuda e com uma indústria militar incipiente, a Ucrânia não será capaz de responder ao potencial de uma Rússia cuja economia está completamente orientada para o esforço de guerra.
No entanto, Kiev poderá contar este ano com os caças F-16, que exigiu durante meses e que foram finalmente entregues pelos aliados ocidentais.
Com esta nova arma poderá compensar a escassez de artilharia, essencial para conter os ataques russos e realizar ofensivas.
A Ucrânia deve também multiplicar a sua produção de drones, que se tornaram uma arma indispensável.
Finalmente, para resistir, Kiev exige meios de defesa aérea dos seus aliados. Em novembro, Volodimir Zelensky destacou que se os russos "controlarem todo o céu, não poderemos avançar".
"Em 2024, a prioridade é expulsar a Rússia do céu porque quem controla o céu determinará quando e como a guerra terminará", insistiu em janeiro o chefe da diplomacia ucraniana, Dmitro Kuleba.
Guerra causou danos ao patrimônio cultural da Ucrânia de US$ 3,5 bi
A guerra com a Rússia causou danos ao patrimônio cultural da Ucrânia no valor de US$ 3,5 bilhões (R$ 17,4 bilhões) e gerou perdas de receitas de US$ 19 bilhões (R$ 94,5 bilhões) no setor de entretenimento, arte e turismo, estimou a Unesco nesta terça-feira (13).
Em abril de 2023, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - com sede em Paris - havia estimado os danos em US$ 2,6 bilhões (R$ 12,9 bilhões) e as perdas no turismo, arte e entretenimento em US$ 14,6 bilhões (R$ 72,5 bilhões).
Para chegar a esses valores, a Unesco identificou cerca de 5.000 locais destruídos desde a invasão russa de fevereiro de 2022, dos quais 341 são locais culturais danificados.
Dois locais pertencentes ao patrimônio mundial da Unesco, o centro histórico de Lviv (oeste) e o de Odessa (sul), foram alvo de bombardeios russos.
Chiara Dezzi Bardeschi, representante da Unesco na Ucrânia, citou a Catedral da Transfiguração de Odessa, um "símbolo para toda a comunidade", gravemente danificada por um ataque russo em julho.
Fundada há mais de 200 anos e destruída pelos soviéticos em 1936, foi reconstruída no início dos anos 2000 graças a doações.
Foi consagrada em 2010 pelo patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Kirill.
A catedral tem "um valor religioso e espiritual para a cidade e para a comunidade", mas já não é útil para a comunidade, lamentou Bardeschi.
Ucrânia reconhece situação 'extremamente complexa' no front
O novo comandante das Forças Armadas ucranianas, general Oleksandr Syrskyi, reconheceu nesta quarta-feira (14), após uma visita à linha de frente, que a situação é "extremamente complexa" e que a Ucrânia não tem os homens e as armas necessárias para enfrentar a invasão russa.
Essas dificuldades podem ser exacerbadas se um novo pacote de ajuda dos Estados Unidos, crucial para o arsenal de Kiev, continuar bloqueado por divisões entre congressistas democratas e republicanos.
"Os ocupantes russos continuam a aumentar seus esforços e superam em número" as forças ucranianas, disse o general Syrskyi no Telegram. "A situação operacional é extremamente complexa e estressante", acrescentou.
"Estamos fazendo tudo o que é possível para impedir que o inimigo avance em nosso território e para manter nossas posições", enfatizou o novo comandante-chefe, reconhecendo que suas forças estão lutando para conter os múltiplos ataques russos no leste.
O conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, disse ter recebido "relatos crescentes de tropas ucranianas racionando ou até mesmo ficando sem munição nas linhas de frente", e pediu ao Congresso que acabe com a "inação" dos Estados Unidos.
No entanto, o governo ucraniano continua causando estragos na frota russa no Mar Negro, como aconteceu nesta quarta-feira, quando anunciou a destruição de mais um navio de guerra de Moscou.
Na frente terrestre, a meta de recapturar os quase 20% de território ucraniano ocupado pelas forças russas ainda parece muito distante.
Syrskyi, há muito tempo comandante das operações militares de Kiev no leste, foi promovido a chefe do Exército na semana passada, com o presidente Volodimir Zelensky exigindo "mudanças" após o fracasso da contraofensiva ucraniana em meados de 2023.
Em sua primeira visita à linha de frente como comandante-chefe, o general foi acompanhado pelo ministro da Defesa, Rustem Umerov, e passou pelas cidades de Avdiivka e Kupiansk, dois dos pontos críticos.
"Estamos tomando todas as medidas possíveis para minimizar nossas perdas", disse.
- Navio destruído -
Desde outubro, as forças russas vêm realizando ataques maciços e bombardeios para conquistar Avdiivka, uma cidade industrial em grande parte destruída.
A posição dos defensores ucranianos tem se deteriorado desde janeiro e o prefeito da cidade, Vitaly Barabach, falou recentemente de uma situação "crítica" em alguns bairros.
Por outro lado, no Mar Negro, onde a Ucrânia conseguiu, em 2023, empurrar para trás a poderosa frota russa com a ajuda de mísseis e drones, Kiev anunciou hoje a destruição de outro navio inimigo.
"As Forças Armadas ucranianas, com unidades de inteligência militar, destruíram um grande navio de desembarque, o 'Caesar Kunikov'", disse o Estado-Maior do Exército em seu canal no Telegram.
O Departamento de Inteligência Militar da Ucrânia (GUR) explicou que havia usado drones navais Magura V5 para destruir o navio na altura da cidade de Alupka, no litoral do Mar Negro, causando "buracos críticos" que levaram a seu afundamento.
Zelensky elogiou o ataque, que "fortalece a segurança no Mar Negro e a motivação de nosso povo".
De acordo com os militares ucranianos, desde o início da guerra há dois anos, 24 navios e um submarino foram "desativados", o que representaria um terço dos navios russos no Mar Negro.
A Rússia raramente reconhece suas perdas e, nesta quarta, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, se recusou a comentar as alegações ucranianas.
Paralelamente, o Exército russo continua seus ataques às cidades ucranianas próximas à linha de frente no leste.
Na madrugada desta quarta-feira, uma mãe e seu filho de nove anos e uma mulher grávida de 38 anos foram mortos em um bombardeio que atingiu um hospital na cidade de Selydove, no leste do país, de acordo com as autoridades ucranianas.
Poucas horas depois, outro ataque russo matou duas mulheres, de 62 e 74 anos, no vilarejo de Mykolaivka, 80 quilômetros a nordeste de Selydove, na província de Donetsk, de acordo com o governador regional.