Aos 68 anos, José Gonçalves da Silva relembra o caminho que trilhou, saindo das ruas do Crato, no Cariri cearense, para tentar a vida em Fortaleza. Antes pessoa em situação de rua, conhecido como “Já morreu”, hoje veste, com orgulho, o uniforme da Polícia Militar com patente e sobrenome estampados no peito: Capitão Silva.
Quando criança, José deixou o distrito de Baixão das Palmeiras, onde morava com o pai, a madrasta e quatro irmãos vivos. O que motivou a decisão de deixar o Cariri foi a relação conturbada com a segunda esposa do pai. Sair do município permitiu que ele fizesse de qualquer lugar um abrigo, desde o cemitério da cidade até a sede da Polícia Militar, anos depois.
O POVO - A decisão de sair de casa se deu quando você era muito jovem, o que te motivou a mudar de vida?
Capitão Silva - Cheguei na rua com 12 anos, tinha perdido a minha mãe com 4 anos e meu pai com 12. Fiquei dormindo nas calçadas, nas igrejas e no cemitério. Desses 12 anos, dois foram dormindo no cemitério, o que fez com que eu ganhasse o apelido de “Já morreu”. Fui construindo uma amizade grande com aqueles moradores de rua e fui saindo de lá. Comecei a vender jornais, a vender picolé. Fui crescendo e peguei a profissão de gari. Tive 14 profissões, desde gari a babá. Fui chamado várias vezes para entrar no mundo das drogas, mas eu dizia que a droga matava e eu não queria morrer. Tem muitos da minha turma de lá que hoje estão mortos. Aos 16 anos fui sair da cidade do Crato e fui para a Transamazônica, no Pará, tinha um caminhão atrás de gente pra trabalhar e eu fui, passei seis meses lá. Saí com uma roupa e cheguei com menos de uma roupa porque eu vendia no meio do caminho pra pagar a passagem, eu não tinha dinheiro.
O POVO - Você teve inúmeras oportunidades de seguir pelo caminho do crime, mas decidiu seguir carreira militar. Como começou nessa área?
Capitão Silva - Quando eu chegava nos cantos e diziam: “Já morreu, pega essa maconha e fuma aí”. E eu não tinha experiência com nada e mesmo assim Deus me deu aquele dom: “Não vá fumar se não você morre”. Eu não tinha quem me ajudasse, eu não tinha nada, mas eu não queria. Nessa mesma época eu fui servir no Tiro de Guerra e dormir na casa dos outros, isso tudo sem dizer ao meu chefe que eu era morador de rua. Quando faltavam dois meses para terminar o meu tempo lá, eu pedia comida no hotel lá. Quando cheguei no hotel para pedir comida, o sargento que era instrutor da tropa me viu pedindo esmola. Aí foi o momento da minha vida que mais me chocou porque ele chegou e disse: “Silva, o que tu tá fazendo aqui?”, e eu respondi que estava pedindo esmola pra almoçar e ele disse: “Rapaz, é o seguinte, amanhã você vai ser expulso, porque eu não quero um soldado de guerra sendo morador de rua”. Naquela época eu não tinha estudo, não tinha nada e não soube nem como responder o sargento. Aí, eu peguei e não comi. No outro dia eu peguei a farda e coloquei num saco e fui lá pro local (se emociona). Aí o sargento chamou a tropa todinha e contou a história, disse que estava criando uma cobra para morder o cidadão cearense. E eu sem falar nada. Aí um soldado foi e chamou o sargento e pediu para dar uma palavra com ele. Depois ele conversou comigo e disse que me daria a chance, mas eu teria que pisar em ovos. E aí eu terminei o Tiro de Guerra e fiquei dormindo na rua, mas depois encontrei um emprego em um hotel.
O POVO - Você teve algum apoio para vir a Fortaleza?
Capitão Silva - Depois de terminar o curso do Tiro de Guerra eu consegui um emprego em outro hotel. Lá encontrei um fiscal da Fazenda que me perguntou se eu teria coragem de vir para Fortaleza pra ser babá, eu aceitei. Isso em 1976. Depois eu voltei pro Crato e ele falou comigo outra vez, perguntando se eu trabalharia como trocador de ônibus em Fortaleza. Nessa época eu não sabia ler nem escrever, mas vim para Fortaleza. Ele me apresentou à cunhada dele, dona de uma empresa de ônibus, eu aprendi a passar o troco e fui ser trocador. Trabalhava o dia todo e de noite ia pro colégio, estudar. Em 1979 fiz um concurso para Polícia Militar e passei. Depois vieram as conquistas. Tirei minha carteira de motorista e fui dirigir a viatura da corporação. Em 1985 surgiu o concurso de cabo, fiz e passei. Depois virei sargento, subtenente, tenente. Em 2000 fui trabalhar no Crato, como cabo da polícia. Isso sem dizer nada pra ninguém pra não ser discriminado. Depois, em 2008, virei capitão, e em 2011 me formei em História. Se eu tivesse ficado no Crato tinha morrido.
O POVO - Você é pré-candidato a vereador de Fortaleza. Se eleito, quais pautas visa defender?
Capitão Silva - A minha candidatura vem para somar, essa é a ajuda que eu posso dar pra sociedade. Eu quero capacidade para ajudar as pessoas que mais precisam. Eu penso assim, que as creches para as crianças são uma pauta a ser defendida. Tem muitas mães novinhas, que arranjam, por uma vez ou outra, uma criancinha, e ela não pode trabalhar para cuidar das crianças. Às vezes, também, quem não tem colégio deixa (a criança) na mão da avó. Hoje o que é mais importante é a educação. Se você não criar a criança com educação desde pequeno, lá na frente você é dominado por ela. Além disso, pretendo lutar pelas causas dos moradores de rua.
O POVO - Nesse período que você passou nas ruas, você sofreu algum tipo de discriminação?
Capitão Silva - Ao retornar para o Crato eu fui ser porteiro de um hotel, e saí desse emprego depois de dois anos. Com um mês após eu ter saído, o hotel foi assaltado, e como eu tinha saído recentemente e por ter essa cor (aponta para o braço), ser preto, eu fui acusado. Fui castigado, passei meio dia preso. E aí eu fui, devagarinho, devagarinho, naquela época, com 21 anos, fui fazer o Tiro de Guerra. Tinha que servir sem ganhar nada. Nessa época eu era lavador de carro nas praças, eu não tinha roupa. Vestia uma bermuda que o pessoal me dava e ia pro canal, aí de manhã eu lavava a roupa, tirava a camisa, e lavava a calça e ficava só de cueca na beira do canal. Quando eram 20 horas ficava mais ou menos limpo e começava a vida.