Pessoas em situação de rua são parte cada vez mais comum na paisagem de grandes metrópoles, Fortaleza entre elas. Muitas vezes ignorados por transeuntes e até pelo poder público, elas estão entre os que mais dependem de ação governamental. Porém, entre os muitos direitos que deixam de acessar está o voto, instrumento de exercídio da cidadania e instrumento para pressionar as autoridades e influenciar a escolha das políticas das quais necessitam.
O voto é um direito para os cidadãos brasileiros com mais de 16 anos e obrigatório para quem tem entre 18 e 70 anos. Já foi exclusivo para quem comprovava determinado nível de renda. Foi ainda proibido às mulheres e aos analfabetos. Hoje é assegurado a todos os cidadãos, independentemente do nível educacional, de terem emprego ou casa.
Mas, embora tenha necessidades urgentes e demandas específicas, pessoas em situação de rua são muitas vezes ignoradas nas discussões e alijadas da própria participação política. O voto é mais um dos direitos obstruídos a um público que convive com a incerteza da fome, da insegurança, do acesso precário à saúde, e muitas vezes não tem sequer documento de identificação.
O quadro das pessoas em situação de rua em Fortaleza é subnotificado e está defasado em três anos. Dados mais recentes da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) datam de julho de 2021, época de pandemia, e apontam que 2.653 pessoas estavam nessa situação na Capital. O levantamento anterior foi feito em 2014, quando foram identificadas 1.718 pessoas em situação de rua na Capital.
Há estruturas de acolhimento para este público espalhadas pela Cidade. Pousadas sociais, casas de passagem, Centros Populares (CentroPop), Banhos sociais, dentre outros, mas são, visivelmente, insuficientes para uma demanda que em sete anos (2014-2021) registrou aumento de 54,4%, número que, possivelmente, foi expandido na pandemia de Covid-19.
O Censo da População de Rua mostrou ainda o perfil predominante da rua. A maioria das pessoas era do sexo masculino (81,5%) e com idades entre 31 e 49 anos (42,1%).
Quem não é visto como eleitor nem tem quem vote por eles acaba no fim da fila de prioridades políticas, um nem na fila entra. Em ano eleitoral, é raro haver propostas voltadas a esse público.
O trabalho de cadastramento eleitoral busca dar, além do documento, atenção dos candidatos para essas pessoas. Além do Poder Executivo, órgãos públicos como o Ministério Público do Ceará (MPCE), a Defensoria Pública e o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) desenvolvem trabalho para ampliar o acesso da população de rua aos muitos direitos por vezes inacessíveis para eles. Inclusive o voto.
Os obstáculos são vários, pois o segmento também enfrenta dificuldade para ter acesso à internet ou redes sociais, canais onde mais ocorre a divulgação das iniciativas.
O POVO percorreu espaços de Fortaleza e conversou com pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade social. Quase todos sem título de eleitor. Eles falam sobre desejos, dificuldades e fazem cobranças aos governos.
A reportagem ouviu também os órgãos públicos e mostra o que já é realidade no trabalho para transformar as realidades.
Sobressalta os olhos um traço comum observado nas falas de quem está em situação de rua: "Viver na rua não é fácil", foi um coro em uníssono das pessoas que conversaram com a reportagem. Algo que nós (eu e a maioria dos leitores), só podemos imaginar num exercício mental que, ainda assim, seria difícil.
Contrariando uma possível expectativa de serem fechados, de poucas palavras ou que não gostam de interagir, os entrevistados demonstraram abertura e interesse em ser ouvidos. O POVO esteve em um banho social, na Avenida Dom Manuel, por volta das 10h20min da manhã, quando já se formava fila de pessoas aguardando a abertura do espaço, que também serviria almoço a partir das 11 horas.
Na calçada, estavam sentadas pessoas de idades, cidades e gêneros distintos. A reportagem conversou primeiro com um homem. Outros se aproximaram, curiosos. Prontamente, dispuseram-se a contar suas histórias. Ficou a lição: A rua tem muito a dizer quando há disposição para ouvi-la.
Desejo de ser "livre" e cobranças à política
Israel da Rocha Lima, de 29 anos, é natural de Fortaleza e não tinha nenhum documento consigo no momento em que conversou com O POVO. Um retrato comum entre os que vivem nas ruas. Contou não ter título de eleitor. Os outros documentos, perdeu num acidente de trânsito, relatou.
Mostrando a mão enfaixada de maneira improvisada com uma camisa, revelou hastes de ferro de uma cirurgia feita há pouco tempo "no IJF" (Instituto Dr. José Frota). Disse estar em situação de rua há um ano. Foi usuário de drogas, mas considera o vício superado. Já trabalhou "no rodo", (limpando para-brisas de carros nos semáforos) em busca de renda.
"De tanto a gente receber conselhos, a gente acaba tendo atitudes que não agradam. Então a gente faz o quê? Vai para a rua. Porque a gente quer estar livre. Eu sou uma boa pessoa, mas a partir do momento que me sinto desprezado pela família, porque já fui usuário de crack, não sou mais, a gente quer estar livre. Estou me ajudando a lidar com o meu eu, renunciar àquilo que a carne pede, que não é fácil. Nós precisamos de ajuda", diz.
Israel é um perfil comum em Fortaleza, jovem que teve desentendimento com a família e foi parar nas ruas. Embora a relação com a família, que preferiu não detalhar, pareça ter turbulências, chama atenção a tatuagem no pescoço: "Mãe".
Sobre a situação de rua, Israel disse que o trato da sociedade é, geralmente, de descaso. "As pessoas julgam, não sabem da situação, do porquê. Estou há um ano nessa situação, andando para cima e para baixo, lutando. Não é fácil estar na rua, é muito arriscado". Conversa vai, conversa vem, Israel contou que utiliza as pousadas sociais e outras estruturas da Capital, mas cobra do poder público mais condições para uma população que aumenta ano a ano.
"A demanda é grande. Claro que não vamos reclamar do alimento que Deus está dando, mas precisamos de mais estrutura. Minha demanda para eles (políticos) é que da mesma forma que eles precisam do nosso voto, nós estamos precisando deles. De ajuda, de alimentação adequada, de atenção. De abrigos. A cidade é muito carente de abrigos", reforça.
Sobre a documentação, Israel reforçou a necessidade de tirá-la. "Preciso (dos documentos) para tentar pelo menos um auxílio para receber". Questionado se tiraria o título de eleitor e demais documentos, caso lhe fosse ofertado naquele momento, acenou positivamente: "Sem problema nenhum. agora", confirmou.
O POVO informou que naquele mesmo dia uma ação do MPCE, em parceria com outros órgãos, emitiria documentação e ofertaria consultas de saúde na Praça do Ferreira; Israel vibrou e disse: "Estou indo lá". Antes de se despedir da reportagem, fez mais uma demanda aos políticos e cobrou que além do alimento para o corpo, seja oferecido o "alimento para alma", como direito ao lazer e à cultura para pessoas em situação de rua.
"Da minha parte, a pessoa tem que priorizar a alimentação, sim, mas também tem que ter direito a um momento de alegria, entretenimento, para curtir. Sem maltratar ninguém. É direito da pessoa. A gente que vive na rua tem que pedir. Às vezes somos humilhados. Sou LGBT e respeito todas as pessoas. É uma questão de convivência. Dou respeito e quero ser respeitado".
(In)visíveis a olho nu
Naturais de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, Edson Almeida da Silva Nobre, 33, e Leonilia Nascimento Gomes, 37, vivem no coração da Capital, a Praça do Ferreira, com o filho menor de idade. Caminhar pela praça mais tradicional da cidade e não se deparar com pessoas em situação de rua é impossível, a não ser que se faça vista grossa.
Edson e Leonilia relataram estar em situação de rua há dois anos e se apegaram um no outro para superar as dificuldades. Ambos possuem documentos de identificação, como RG e CPF, mas não têm o título de eleitor regularizado. Repetindo uma realidade de pessoas alijadas de direitos básicos como a participação política, o casal é parte de um problema tão visível a olho nu quanto o afeto familiar que os une e que foi registrado pelo O POVO.
Embora não tenha título, Edson quer ter participação política e pediu uma solução para a invisibilidade que gera falta de oportunidades para a população em situação de rua. "Tenho todos os documentos, só falta mesmo o título. A gente é beneficiário do Bolsa Família, mas o valor não é suficiente, então trabalho no rodo e catando latinha para fazer uma renda extra quando tem festa", disse na praça que foi um dos palcos dos pré-carnavais da Capital.
Edson cobrou atenção de quem está no poder. "Atenção com a gente, porque passam por nós e parece que estão passando por uma árvore. Na Caucaia, uma vez eu pedi uma ajuda para um vereador, ele virou as costas para mim. Fingiu que não escutou", relata.
Sobre a vontade de regularizar o documento eleitoral, manifestou interesse e explicou sua situação. "No meu caso, não entendo muito, mas me informaram que o meu (título) estava cancelado. Depois eu perdi o documento também e acabei deixando para lá".
Edson segue a explicação: "No Centro Pop perguntaram se eu estava com o título em dia, eu disse não. Aí olharam no sistema e disseram que tinham um valor que eu teria que pagar de multa. Mas de onde que eu vou tirar dinheiro para isso, entendeu? As moças ficaram naquela situação de querer ajudar, mas sem ter como. O atendimento é sempre bom, foram elas (as atendentes) que tiraram todos meus documentos".
Leonilia, que também não tem título de eleitor, foi clara nas palavras. "Se me oferecessem o título de eleitor (gratuitamente) eu tiraria, sem problema. É a única coisa que a gente pode fazer, né? Para tentar mudar alguma coisa, o voto", disse. Aos políticos fez uma demanda específica de mãe em situação de rua.
"Seria bom se eles fizessem uma pousada social exclusiva para mães e filhos. As crianças eram para ser prioridade na frente dos adultos, né? Além de mim, tem muitas mães que têm criança pequena e são sozinhas. Precisamos dessa ajuda", cobrou, revelando que é preciso se apegar com a fé nos dia a dia. "Deus está na frente, né. Sou apegada a Deus, não a uma religião. A Deus. Tudo no tempo dele".
A juventude quer votar
O cabelo "na régua", a corrente no pescoço e o brinco na orelha reforçaram o estilo e a juventude de Josivan dos Santos Ribeiro, de 23 anos, um entre tantos rostos jovens nas ruas da Capital. Natural de Beberibe, a 82 km de Fortaleza, ele disse ao O POVO estar em situação de rua desde os 18 anos de idade e que faz o "corre" vendendo amendoins pelas vias e nos coletivos.
"Tenho mãe e tenho pai vivos ainda. Eles têm casa, mas como as condições são poucas, preferi sair. Até para amenizar as dificuldades para eles. Já fiz o rodo e ainda trabalho vendendo amendoim", contou. Mostrando o RG, o jovem disse que não tem e nunca teve título de eleitor. "Eu tiraria o título de eleitor se me fosse oferecido. Já tentei algumas vezes, indo em ações, no caminhão do cidadão, e não deu certo", conta, expressando a vontade de votar nas eleições e demandando melhorias na dinâmica de equipamentos e programas sociais que lhe atendem.
"Sou beneficiário do Bolsa Família. O que eu quero (da política) é que as coisas sejam mais organizadas nesses pontos que nós usamos. Melhorar a entrada das pessoas, a distribuição (de benefícios). Até a estrutura poderia melhorar também", cobra.
Josivan falou ainda sobre uma questão envolvendo atendimento em estruturas específicas para a população de rua e na relação de confiança que essas pessoas mantêm com determinados funcionários. Os Centros Pop, equipamentos de atendimento à população em situação de rua em Fortaleza, são alvo de cobrança. Ele pede mais estrutura para esses locais ao passo em que elogia a atuação de profissionais que estão no atendimento.
"Tem dias que a gente vai lá, e quer falar com um assistente social e ele não está. Aí a gente tem que conversar com outra pessoa e nem sempre são pessoas que conhecemos e assim, muitas vezes, não queremos conversar. Só quero falar com uma pessoa que está lá, porque ela sabe a minha situação. Ela ajuda todo mundo. Poderia ter mais profissionais", diz, ressaltando a importância de um vínculo de confiança com os profissionais atuantes.
Andarilho e conselheiro
Aos 65 anos, Adrovando da Silva Rosales estava bem longe do lugar que primeiro chamou de lar na vida: o Rio Grande do Sul. Natural de Canoas, na grande Porto Alegre, ele estava sentado numa calçada do Ceará, ao lado de uma estrutura da Prefeitura de Fortaleza que atende pessoas em situação de rua, num dia de forte calor. Havia sido informado por colegas que o local serviria almoço.
Abordado pela reportagem, prontificou-se a contar sua história. Torcedor do Internacional de Porto Alegre, contou ter rodado por diversos estados do Brasil nos últimos anos. Mostrando uma visão ampla da situação na qual se encontra e um conhecimento político intrínseco, Adrovando estava com todos os documentos, inclusive o título de eleitor, que mostrou orgulhoso ao O POVO. "Tem que mostrar mesmo, botar a cara".
Com os documentos em mãos, realidade diferente da de muitas pessoas na mesma situação, Adrovando revelou-se ainda um conselheiro para os mais novos. Disse alertá-los da importância de buscar todos os direitos que lhe são devidos pelo Estado. "Sou da terra de Getúlio Vargas e de Leonel Brizola. Viver na rua não é fácil. Eu falo para essa galera mais nova, que a vida não é só isso aqui, de vir buscar comida, tomar um banho, usar os espaços. Tem que ir atrás de tudo que o Estado pode oferecer, tem que ir para cima, porque é direito nosso. Temos que ir atrás daquilo que nos dá alguma vantagem, algum retorno".
Enquanto falava, puxou de dentro do calção uma sacola onde guardava toda a sua documentação; a maioria dos papéis em ótimo estado de conservação. Adrovando relatou ter tirado o título de eleitor em Brasília, ainda no ano passado, e mostrou outros documentos de uso diário, como o Passe Livre, benefício do governo federal que garante a pessoas com deficiência ou comprovadamente carentes o acesso gratuito ao transporte coletivo interestadual por diversos modais, como rodovia, ferrovia e barco.
Fortaleza tornou-se mais uma das passagens desse andarilho-conselheiro, que listou ainda Brasilia, Bahia, Minas Gerais e um par de estados do Centro-Oeste como pontos por onde já transitou. Adrovando mencionou que sairia de Fortaleza e passaria por Salvador e Natal. Posteriormente, disse que o plano era retornar à Capital federal, que lhe pareceu a cidade mais apropriada para viver de todas as que já passou.
No campo das demandas políticas, o torcedor do colorado disse que "o povo gaúcho não aceita coisa pouca" e, embora ressalte que os serviços de assistência às pessoas em situação de rua sejam "bons de Norte a Sul", é preciso incentivo para mudar a realidade. "Não podemos aceitar pouco, temos de cobrar a quem cabe, por uma solução", disse encaminhando-se para o almoço.
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