Logo O POVO+
O que impede a criação de dezenas de municípios no Ceará
Politica

O que impede a criação de dezenas de municípios no Ceará

GEOGRAFIA POLÍTICA | Há pedidos para criar pelo menos 19 municípios no Ceará. Há mais de 30 anos novos municípios não são criados. veja as consequências que as emancipações podem ter
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Areninha na Jurema, em Caucaia, considerada o maior distrito do Brasil
 (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Areninha na Jurema, em Caucaia, considerada o maior distrito do Brasil

Neste ano, os moradores da cidade de Boa Esperança do Norte, no Mato Grosso, irão pela primeira vez eleger prefeitos e vereadores do município mais novo do Brasil. Apesar de tentar a emancipação desde o ano 2000, a separação oficial de Sorriso e Nova Ubiratã (MT) ocorreu apenas em 2023.

No Ceará, há movimentos para criação de pelo menos 19 municípios. Os últimos foram criados no Estado há mais de 30 anos. Desde 1996, as legislações que tratam de emancipações tornaram-se mais restritivas. As discussões foram delegadas aoPoder Legislativo nos estados e ao Judiciário. Cada caso é analisado individualmente. Não há lei federal com critérios estabelecidos. A decisão não é apens geográfica. Tem impactos econômicos, políticos e na vida das pessoas.

Houve disparada no número de emancipações com a redemocratização, que deu autonomia de entes federativos aos municípios. Durante a ditadura militar (1964-1985) esse tipo de divisão era controlado rigidamente, pela centralização do poder do regime.

Ao final da ditadura, além de a separação ser permitida, ela não precisava cumprir critérios específicos. Os únicos pré-requisitos eram: a preservação da continuidade e da unidade histórico-cultural do ambiente urbano, de acordo com o previsto em lei complementar estadual, e a consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas.

Houve, então, um crescimento desenfreado. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 1984 a 2000, foram instalados 1.405 municípios, dos 5.568 que existem hoje no Brasil. Já no Ceará, dos 184 municípios, 43 foram criadas no ano final da ditadura, em 1985, até 1992. A partir desta data o território cearense não contou com novas emancipações de distritos. 

A interrupção se deveu à emenda constitucional Nº 15, de 1996, que impôs um período para criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, a ser determinado por lei federal. A matéria foi disciplinada em 2002 e suspendeu todas as novas instalações, com exceção das que já estavam em curso. A esperada regulamentação federal até hoje não foi promulgada.

Segundo estudo do Senado Federal, até o freio nas emancipações, houve a criação de inúmeras micro e pequenas municipalidades, gerando problemas na partilha do FPM. "Esses pequenos municípios, cuja emancipação foi em boa parte motivada por interesses políticos locais, não conseguem gerar receitas próprias para atenderem suas populações e passam a depender fortemente de transferências”, diz o texto, que defende a emenda de 1996 como maneira de mitigar a situação.

Influência de Tasso

A visão é compartilhada pelo empresário e político Tasso Jereissati. Ele foi três vezes governador, de 1987 a 1991 e de 1995 a 2002. Principalmente no primeiro período, foi um dos responsáveis por fazer com que o Ceará fosse um dos estados que menos criaram municípios.

Durante o mandato de senador, em 2008, ele foi o autor de uma das muitas propostas de lei federal para a emancipação de municípios. No texto, ele argumentou que a Constituição proporcionou "um abuso na criação de municípios".

Benefícios vislumbrados

Mas há, no meio político, quem defenda a emancipação. Dentre eles, o ex-deputado estadual Domingos Filho considera que a divisão permite “que o cidadão possa receber os serviços públicos mais próximos de si”. “Imagina que tivemos distritos maiores que muitas cidades já existentes. Isso não é razoável”, alega.

Sobre o fator econômico, ele também não vê complicações, já que “os gastos seriam retirados do conjunto dos outros municípios, que já existem”. “Se a Jurema, maior distrito do Brasil, se emancipa de Caucaia, todos os custos e os gastos públicos da Jurema também saiam de lá. Então nós estamos redestribuindo com muita legitimidade para aquele distrito que por si só se tornou maior do que muitos municípios já existentes.”

Domingos é contra uma lei federal, com critérios fixos de população, área ou potencial econômico igual para todo o Brasil. Segundo ele, é impossível que tal legislação contemple as características regionais que influenciam ou não a emancipação.

O ex-deputado cita que no Norte do Brasil, por exemplo, os municípios têm uma área maior, mas contam com população mediana. No Nordeste, há uma população bem maior nos distritos, além de alta estruturação urbana. “Você ter uma legislação federal é impossível. A não ser que você tenha um conjunto de anexos aplicando região por região, o que ficaria inadequado porque perderia o sentido de norma geral da União”, diz ele.

O nascimento de um município

Para o professor do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará, Alexandre Queiroz, a emancipação é a territorialização de um poder. Consiste em um grupo de atores que têm interesse em conduzir o destino dos habitantes de um território em específico.

“Você cria toda uma base legal que teria transferência, organização dos poderes e um orçamento. E nós sabemos, isso tá claro na Assembleia Legislativa e na Câmara dos Deputados. Controlar um orçamento público é ter poder”, afirma.

Ao ser emancipado, o antigo distrito é governado por uma subprefeitura até as primeiras eleições. Depois, é estabelecida uma Lei Orgânica, conforme a Constituição Federal e as leis estaduais, tratando dos salários dos servidores, parlamentares e gastos administrativos diversos. Cada município recebe transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que leva em conta a população, mas é definido por meio de faixas: 86,4% do montante vai para os municípios do interior, por exemplo. 

Conflitos políticos

O professor Alexandre Queiroz, contrário a novas emancipações, defende que a lei federal não veio por outros motivos: devido ao impacto dessas divisões no meio político local, provocando conflitos de interesses entre o grupo que detém o poder no município já existente e as novas forças que surgirão e reivindicam o comando do distrito emancipado.

“Sabemos muito bem que, a depender das situações, as tensões entre os grupos, os interesses locais e regionais, podem se sobrepor. Tanto que há tanto tempo essa lei federal não foi votada. Cria uma zona cinzenta. E convenhamos, sem dúvidas é uma vantagem enorme você se estabelecer politicamente em um território, ser a maior força política e se perpetuar por anos e anos, não?”, levanta o professor.

De fato, dos últimos seis municípios emancipados no Ceará, na leva de 1992, três contaram com primeiros gestores cujos parentes exerceram cargos públicos depois. Os outros três seguiram na vida política de alguma outra forma, apoiando chapas e até mesmo detendo aparelhos do município. Confira abaixo:

  • Ararendá: Vicente Mourão Carlos
    • A esposa, Tânia Mourão foi prefeita 
    • O filho, Alexandre Mourão foi vereador
    • O filho, Vicente Filho, é cotado para concorrer à Prefeitura em 2024, pelo PSD
  • Fortim: Caetano Guedes
    • O filho, Júnior Guedes, foi prefeito da cidade
  • Jijoca de Jericoacoara: Sérgio Herrera Gimenez
    • Foi prefeito por 3 mandatos
    • Grupo político esteve no poder por 20 anos
    • O filho,Alberto Herrera Garcia, era dono do imóvel onde funcionava a Secretaria de Saúde do
    • Município eproprietário do prédio que alugava à prefeitura.
    • Sua esposa, Ana Garcia, seria a dona do terreno que serve de aterro sanitário da prefeitura de Jijoca de Jericoacoara
  • Choró: Otácio Dantas Filho
    • A esposa, Iracy Duarte Dantas foi prefeita também
  • Itaitinga: Sebastião Cavalcante dos Santos
    • Empresário. Em 2020, articula a campanha de oposição contra o então prefeito Abel Cercelino Rangel Junior
  • Catunda: Regina Helena Magalhães
    • Após sua eleição, em 1992, - com exceção de 1996 - foi candidata à Prefeitura em todos os pleitos até 2008. Foi vereadora em Santa Quitéria

Últimos pedidos de emancipação no Ceará estão paralisados

Os últimos pedidos de emancipação do Ceará se deram em 2010, justamente por iniciativa de Domingos Filho, então presidente da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Na ocasião, houve pedidos aceitos de desmembramento em 19 municípios e, assim, de realização de plebiscitos. Em alguns casos, há a situação de quatro distritos querendo se separar da mesma cidade. Veja nos dados fornecidos pela Assembleia Legislativa, abaixo:

Nenhuma solicitação se concretizou devido à necessidade de judicialização. Segundo Domingos Filho, o assunto deverá ser retomado em breve, por meio de conversas na Assembleia e na Câmara dos Deputados, estimuladas pelo partido que preside em âmbito estadual, o PSD.

O ex-parlamentar defende que o procedimento é justo, isento e necessário no Ceará, tendo em vista os longos anos sem emancipação. “Não há conflito político algum. Se há emancipação, há autonomia. Quem vai definir a liberação é o conjunto das populações envolvidas, no caso um plebiscito. Como os outros estados continuaram (com emancipações), e nós não, temos distritos absurdamente estruturados e que podem se emancipar.”

Já para o pesquisador da UFC Alexandre Queiroz, o assunto deve ser encerrado pois dispersa das “reais necessidades de debate”. O ideal, defende, seria uma maior cooperação entre os governos das cidades já existentes, especialmente em tópicos que ultrapassam os limites municipais, como o ambiental.

“A fragmentação excessiva não contribui porque ela tende a gerar interesses tão específicos que bloqueiam agendas comuns. Precisamos pensar no todo. As pessoas e os problemas se movimentam além dos territórios”, afirma

Agronegócio é incentivo para a criação de novas cidades no Centro-Oeste

Com tantas proibições no Ceará, o que levou à criação de um município em pleno 2023, no Mato Grosso, foi especialmente um fator: o agronegócio. Se separando de Sorriso e (uma pequena parte) de Nova Ubiratã, a cidade herda áreas da primeira e sexta posições entre os municípios mais ricos do agro no país.

O aval partiu de uma divergência aberta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que é do Mato Grosso. Ele argumentou que “houve equívoco ao declarar inconstitucional a lei que criou o município” pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Para as eleições deste ano, Calebe Francio (PSDB) atual subprefeito trabalha para lançar uma candidatura única, baseada no apoio das famílias mais tradicionais do local, do qual ele faz parte. "Famílias que ajudaram a transformar Boa Esperança no que ela é, que está trabalhando num consenso de união para soltar uma candidatura única”, disse o político, cujo pai Alberto Francio, foi um dos “fundadores” do antigo distrito, vindo de Santa Catarina para a região.

Segundo Alexandre Queiroz, pesquisador da UFC, esse tipo de migração é comum no Centro-Oeste e visa à exploração das commodities, da plantação de milho e de soja. Assim, a região tornou-se uma que mais cresceram economicamente e no número de cidades de porte médio.

“Você tem uma zona aberta, vastos espaços baixamente ocupados que começam a ser incorporados ao território nacional pela atividade agrícola e agronegócio moderna. Então, surgem esses movimentos de emancipação de municípios”, explica o professor.

Índice de Desenvolvimento Humano dos últimos municípios emancipados no Ceará

A última leva de municípios emancipados ocorreu entre 1990 e 1992, pouco antes das restrições da emenda de 1996. Dos 6 municípios, três estão entre os 100 melhores IDH do Estado. Em relação ao Produto Interno Bruto, o mesmo índice, com destaque para Itaitinga, na RMF, em 20º no PIB. Confira abaixo:

  • Ararendá, emancipado de Nova Russas (1990)
    • IDH (2010): 0,590 (153º no Ceará)
    • PIB: R$ 88.736.850 - 2020 - 168º
  • Catunda, emancipado de Santa Quitéria (1990)
    • IDH (2010): 0,609 (103º no Ceará)
    • PIB (2019): R$ 113.119.000 - 143º do Ceará
  • Jijoca de Jericoacoara, emancipação de Cruz (1991)
    • IDH (2010): 0,652 (22º no Ceará)
    • PIB (2020): R$ 425.671.180 - 56º
  • Choró, emancipado de Quixadá (1992)
    • IDH (2010): 0,586 (158º no Ceará)
    • PIB (2019): R$ 124.592.000 - 155º
  • Itaitinga, emancipado de Pacatuba (1992)
    • IDH (2010): 0,626 (56º no Ceará)
    • PIB (2020): R$ 894.151.560 - 28º
  • Fortim, emancipado de Aracati (1992)
    • IDH (2010): 0,624 (61º no Ceará)
    • PIB (2020): R$ 238.015.600 - 90º

Fonte: Anuário do Ceará e Prefeituras Municipais

O que você achou desse conteúdo?