A presença de facções criminosas afeta o cotidiano das populações no Ceará e a influência chega à política, de diferentes maneiras. O POVO já mostrou que os grupos criminosos organizados atuam para conseguir contratos e licitações dentro das prefeituras. A presença política também está presente nas eleições. Em anos anteriores, já houve ocorrências de eleitores que tiveram acesso impedido a locais de votação. Além disso, ocorreram pressões contra o voto em determinados candidatos. Especialistas e autoridades temem que haja ainda mais tentativas de cercear a escolha da população.
Ao lado do combate às fakes news, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) elencou a atuação de faccionados no período eleitoral entre as principais preocupações da Justiça Eleitoral do Ceará para o pleito de 2024. Conforme o presidente do TRE-CE, desembargador Raimundo Nonato da Silva Santos, a pressão é maior que em 2022, data de eleições gerais, pois as disputas municipais, com suas dinâmicas mais próximas e pulverizadas, são consideradas mais "acirradas".
“Estamos apurando a questão das facções. Estamos muito preocupados porque essas eleições são diferentes das gerais. A eleição municipal é muito acirrada e ficamos preocupados com a interferências de facções. Estamos trabalhando nisso”, disse.
A preocupação aparece também no radar do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), braço do Ministério Público (MPCE). A organização se prepara fortalecendo uma rede para investigação de pessoas que podem se candidatar com apoio de facções ou sendo financiadas com recursos dos grupos criminosos.
Há também a hipótese de que as organizações trabalhem para pressionar a população a votar em determinado candidato, como houve suspeitas nas últimas eleições municipais.
“A nossa preocupação com relação à eleição, ela é grande, mas nada concreto. O Gaeco tem feito e vai continuar com um trabalho de prevenção para que isso não venha a ocorrer, tendo esses promotores eleitorais, que vão estar na cidade e nas comarcas. Eles têm todas as informações e vão ficar passando isso pra gente desde o início do nascedouro até a eleição”, explicou representante do Gaeco ao O POVO.
A atuação deve ser para, inclusive, impedir que sejam concretizados os registros de candidaturas de pessoa já na mira do MPCE. O procedimento é a ocasião em que partidos e coligações pedem à Justiça Eleitoral a inscrição das pessoas que concorrerão aos cargos eletivos. Lá, devem constar informações como declaração de bens, certidões criminais da Justiça (Eleitoral, Federal e Estadual), entre outros.
"Vamos estar trabalhando no Estado todo também com informações de inteligência para ver se a gente identifica algumas dessas pessoas passaram pelo registro de candidatura e são candidatos vinculados à facções criminosas”, apontou ainda.
"Vai ter todo esse trabalho de inteligência para identificar se realmente está existindo nessa questão de exigir que as pessoas votem no candidato candidato Y, porque ele faz parte de uma facção criminosa”, seguiu. O representante cita que a frente deve envolver ainda a Polícia Civil que, com a indícios concretos por parte do MPCE, será acionada para cumprir as medidas judiciais pedidas pelo Gaeco.
A iniciativa tenta mitigar a ação dos grupos que avançam para cercear o direito ao voto, a concretização do princípio democrático.
No Brasil, o sufrágio é universal, com voto direto e secreto, sendo facultativo para os maiores de 16 anos e menores de 18, assim como para os maiores de 70 anos e analfabetos.
Ceará "importa" práticas de estados com facções mais enraizadas
Com a entrada maciça de chefes e células de facções advindas de São Paulo e Rio de Janeiro, o Ceará passa a “importar” métodos consolidados em outras regiões em que o avanço dos grupos já está em outro estágio. Relatório do Disque-Denúncia mostrou que, na última eleição, contando também o período de campanha eleitoral, foram feitas 13 denúncias relacionadas à atuação de traficantes de drogas e 24 de milicianos na cidade do Rio de Janeiro. Os grupos avançaram e influenciam a campanha eleitoral em 14 municípios daquele estado.
Chamou atenção também no levantamento o surgimento de candidatos do tráfico, o que era considerado raro. Era mais comum que os nomes fossem ligados a milicianos. Além disso, as denúncias de crimes incluíram também o desvio de material de candidatos adversários para garantir mais votos para os ligados à milícia e ao tráfico, bem como os moradores serem ameaçados, caso os candidatos dos criminosos não fossem eleitos.
O Disque-Denúncia é iniciativa do Instituto MovRio, entidade privada e sem fins lucrativos, e que funciona em parceria com as secretarias de estado de Polícia Militar e de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, recebendo as denúncias, segmentando-as por tipo de ocorrência, difundindo-as para as autoridades responsáveis. O instrumento não existe no Ceará.
Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e doutor em Ciência Política, explica que a dinâmica da cidade do Rio de Janeiro já tem internalizadas “divisões” entre os grupos de facções e de milícias. Determinados bairros ou regiões do Estado são controlados e “repartidos” entre eles. O "esquema" soa muito o que já se vê em Fortaleza, em que determinado bairros já tem explícito quem tem o domínio.
Pelo histórico da presença dos grupos, o processo acaba se tornando simbiótico com lideranças comunitárias que ou são alvo de violências ou acabam encontrando algum tipo de troca.
“A gente tem uma relação histórica entre alguns representantes comunitários, alguns, por exemplo, associação de moradores com esse tipo de relação que, muitas vezes, é por meio da violência ou também por outras relações que são construídas durante um tempo. Algumas favelas históricas conhecidas que já tem o domínio do tráfico há muitos anos. Existe sim uma simbiose entre algumas associações de moradores — algumas, não vou generalizar —, com grupos de tráfico”, ressaltou.
O impacto já é sentido durante o período de campanha, quando determinados candidatos são barrados de entrar e fazer campanhas em determinadas localidades. Para milicianos, a intensidade da influência escalona para que eles mesmo sejam os candidatos e garantam prefeituras e assentos como deputados.
“Essa relação supera a relação com associações de moradores com tráfico e políticos e já une o agente que domina o território junto com o político. Na área milícia, é algo intenso, violento e quase que taxativo o voto no candidato que é o miliciano da região”, disse ainda o cientista político.
No Ceará, o professor do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luiz Fábio Paiva, analisa que os grupos não formam um Estado paralelo, mas atuam nos espaços que o poder público “negligenciou” e o possibilitou que as facções atuassem.
“Observamos que existem fragilidades sobretudo quando você necessita não só da presença de forças ostensivas, mas você necessita de um trabalho de investigação mais intenso de responsabilização dessas pessoas que controlam territórios”, ressalta.
A movimentação acontece “conquistando espaços e atuando de acordo com as possibilidades que vão surgindo”. “Você tem um controle territorial, você tem um controle inclusive de políticas públicas, como são a política de moradia onde a gente observa que determinadas pessoas não conseguem acessar as unidades habitacionais porque recebe ameaças, são proibidas, expulsas do seu local de moradia”, pontua ainda.
Ele afirma ainda que há uma interferência na vida comunitária e “portanto, na dinâmica política dos territórios”. Sua visão é que é não é possível cravar uma associação entre lideranças comunitárias, mas a presença dos grupos pode inviabilizar a presença determinados nomes e abrir espaço para o surgimentos de outros que, em uma nova configuração, pode haver uma troca de favores.
O coordenador destaca ainda a “capilaridade” dessa dinâmica e o impacto justamente nos votos da população. E é uma crescente, na visão do pesquisador: quanto mais os grupos conseguem se organizar e movimentar recursos, mais se abre espaço para enxergarem como proveitoso a eleição de determinados candidatos que, futuramente, irão “retribuir” esse apoio.
“Nós sabemos que, no nosso país, muitos negócios circulam em torno do voto, em torno das eleições. Na medida em que eu tenho uma força atuando dentro dos bairros com possibilidade de mando com capilaridade, com articulação, com movimentação de dinheiro e de recursos financeiros, porque as facções hoje elas são uma força econômica, elas têm impactos socioeconômico significativo dentro dos territórios das periferias urbanas tanto de Fortaleza, zona metropolitana como de outras cidades e do interior”, analisa.
E segue: “Na medida em que elas (as facções) se consolidam como essa força, obviamente, elas têm influência, elas conseguem mobilizar recursos e isso pode ser interessante para a eleição de determinadas figuras que estejam ali dispostos a favorecer determinados grupos criminosos em uma eventual disputa eleitoral”.
“Na medida que as facções expandem sua influência, expandem sua capacidade de controlar territórios, elas vão se tornando relevantes em diversos cenários tanto no comunitário, na política comunitária, como, obviamente, também na política institucional com fins eleitorais”, finaliza.
Facções nas prefeituras
Em 3 de março, O POVO mostrou que há investigações em curso sobre a presença de facções criminosas em prefeituras
O Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) investiga vereadores e secretários municipais por suposto envolvimento com facções criminosas
A Procuradoria de Justiça dos Crimes contra a Administração Pública (Procap) investiga até prefeitos por possível relação com grupos criminosos
Conforme o Gaeco, as facções atuariam em fraudes de procedimentos licitatórios das prefeituras.
Haveria direcionamento da concorrência para favorecer empresas que teriam relação com os esquenmas e os grupos.
Em 2023, o Ministério Público realizou 21 operações, em pelo menos 13 municípios do Estado, a maioria, justamente com problemas contratação de empresas.
Como e onde denunciar
Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco)
O Ministério Público do Estado do Ceará, por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas, atua no combate e repressão às ações desenvolvidas pelo crime organizado, estabelecendo políticas e estratégias no enfrentamento às ações delituosas de responsabilidade dessas organizações
Denúncias podem ser feitas pelo email gaeco@mpce.mp.br e no número (85) 3452-3529
Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE)
O sistema Pardal - Denúncias Eleitorais permite o envio de denúncias com indícios de práticas indevidas ou ilegais no âmbito da Justiça Eleitoral. Tais denúncias devem conter informações e evidências que ajudem a Justiça Eleitoral no combate às ilegalidades.
Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco)
Para combater a atuação de grupos criminosos no Estado, a população pode repassar informações que auxiliem os trabalhos investigativos. As denúncias podem ser feitas via 181, ou enviando mensagem para o WhatsApp (85) 3101 0181 do Disque-Denúncia da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
A Draco, unidade especializada da PCCE, também mantém um número de WhatsApp para receber denúncias de ações criminosas em todo o Estado. A população pode enviar mensagens de texto, áudios, fotos e vídeos para o número (85) 98969 0182. O sigilo e o anonimato são garantidos.