O Brasil sofre com a magnitude da tragédia no Rio Grande do Sul. O cenário deste mês de maio é o da maior catrástofe meteorológica da história do Estado, atrelada a imagens de cidades inteiras submersas, barragens rompendo, milhares de desabrigados e mais de uma centena de mortos. Por todo o País, formou-se uma onda de solidariedade, permeada por campanhas de arrecadação de suprimentos às vítimas das inundações.
No entanto, esse tipo de evento extremo tem se tornado cada vez mais frequente. É uma tendência que pode se intensificar ainda mais, por estar relacionada às mudanças climáticas, constantemente menosprezadas, dentre outros atores, pelo cenário político mundial.
Os registros de desastres cresceram consideravelmente no Brasil, nos últimos 30 anos. Em toda a década de 1990, foram registradas pouco mais de 7 mil ocorrências de desastres climáticos, de pequeno, médio e grande porte. Agora, somente o ano de 2021 totalizou 3.660 registros.
O recorte brasileiro reflete o cenário global. O relatório da Organização Meteorológica Mundial, referente a 2023, informou: "Condições meteorológicas extremas continuam a causar graves impactos socioeconômicos. O calor extremo afetou muitas partes do mundo.” No texto, são elencados desastres como incêndios no Havaí, no Canadá e na Europa, além de inundações associadas às chuvas extremas da tempestade Daniel no Mediterrâneo.
A origem desses eventos varia, mas, segundo a meteorologista Morgana Almeida, praticamente todos os desastres climáticos decorrem de eventos meteorológicos como as chuvas ou a falta delas. “Existem fenômenos de escala local, influenciados por bloqueio atmosférico e potencializados por fenômenos, como ocorre no Brasil, com o El Niño. Além disso, existem fatores maiores. É inegável que o planeta tem sofrido aquecimento”, afirma a pesquisadora do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Essas características não são naturais, mas provocadas pela ação humana e pela utilização excessiva dos sistemas ambientais como matriz econômica. O ambientalista, geógrafo e pesquisador Jeovah Meireles elenca o agronegócio, a especulação imobiliária e a carcinicultura como alguns contribuintes para esse cenário de emissão de gases tóxicos e colapso da biodiversidade. “É uma produção de escassez. Estamos exportando o modo de vida das populações, nossa qualidade da água”, lamenta.
As consequências deste sistema econômico são captadas e informadas pelas precisas tecnologias atuais de previsão climática. Morgana Almeida descreve as ferramentas brasileiras como “robustas”, monitoradas por profissionais capacitados e em diálogo direto com as instâncias do Governo. “Temos instituições no âmbito federal, estadual e municipal, que trabalham em conjunto. Até pela premissa do estado brasileiro ser um estado federativo”, explica.
Assim, os representantes tendem a estar sempre cientes das condições climáticas nacionais - podendo atenuá-las, especialmente para a população mais pobre, que é a mais afetada pelas mudanças climáticas. “Todas as questões têm soluções sistematizadas. O que ocorre é uma assimetria com o poder”, explica Jeovah Meireles.
Já a nível global, ao longo dos anos, foram incontáveis os encontros com foco nas mudanças climáticas. Desde o primeiro deles — a Conferência de Estocolmo (1972) —, somam-se 27 Conferências das Partes, além de outros encontros como o Rio-92, o RIO+10 e o Rio+20, no Brasil. São mais de 50 anos de discussão e, mesmo assim, os índices de emissão de gases poluentes seguem em aumento.
Meireles esclarece que a pouca efetividade no combate ao aquecimento global se dá pela falta de adesão de grandes países industrializados, como os Estados Unidos, segundo maior emissor de gás carbônico do mundo. “O que vem regendo esses acordos é que as potências vão pagar por essas ações tão exageradas dos sistemas ambientais. Os EUA colocava o pé na porta, não diminuíram as emissões”, diz.
De fato, os EUA destacam-se pela resistência com acordos climáticos. O País abandonou o Protocolo de Kyoto em 2001 e chegou a sair do Acordo de Paris por 4 anos, durante o governo de Donald Trump, por exemplo. Além disso, outros países como a China, apesar de mais favoráveis a adesões, nunca diminuíram, em grande escala, os índices de emissão. O País asiático, inclusive, passou os EUA e hoje é o que mais emite gás carbônico em números absolutos.
Essa falta de comprometimento contrasta com uma corrida contra o tempo, cada vez mais extrema. Muitos destes encontros foram realizados em ocasiões urgentes para a época, mas com níveis de emissão de carbono bem menores que os de hoje. Os debates eram cercados de levantamentos e propostas que poderiam ter atenuado o cenário atual mas não o fizeram, provocando a sensação de oportunidades perdidas.
O Protocolo de Kyoto (1997), por exemplo, estabelecia a diminuição de 5,2% na emissão de poluentes em relação a 1990. Nesta data, a emissão de carbono consistia em 22,75 bilhões de toneladas métricas, já preocupante para a época. O protocolo foi adotado apenas em 2005 - ainda com relutância -, quando já constavam 29 bilhões de toneladas métricas de gás carbônico na atmosfera.
Assim, o mundo não sentiu os impactos de uma grande diminuição nos índices porque isso nunca ocorreu. O máximo de redução na emissão ocorreu de 2019 para 2020 (ano pandêmico), quando passou-se de 37.04 para 35.01 BTM. Hoje, apesar de todas as consequências, o cenário ainda não se refere a um “teto” e a linha segue crescente. O diferencial, no entanto, pode estar na possibilidade de se evitar erros passados.
O que ainda dá tempo de ser feito
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, ainda é possível atenuar os efeitos das mudanças climáticas. A meteorologista Morgana Almeida defende que "em termos de emissões, se o Brasil for bem rígido, consegue frear um pouco mais". "Mas é preciso ver o problema de forma sistêmica, e olhando com carinho para a meteorologia. Precisamos de recursos para manter nossa rede. Se a gente não tivesse os mecanismos tão aprimorados, o número de vítimas poderia ter sido maior [no RS]. Nosso trabalho salva vidas", completa.
O geógrafo Jeovah Meireles fala em uma "grande mobilização planetária". "Para exigir reflorestamento em massa, com participação de Universidades, dos políticos, além da população que deve eleger políticos com essa responsabilidade, por exemplo. Pleno 2024 e ouvimos políticos falando que aquecimento global não existe", diz.
Questionado se esse tipo de mobilização realmente pode chegar a acontecer, o pesquisador reafirmou, categórico: "Vai. Precisa, não? Estamos nos últimos minutos…" (Ludmyla Barros/especial para O POVO)
O que cada cabe a cada instância governamental em relação às mudanças climáticas
O ambientalista Jeovah Meireles elencou pontos, em conformidade com a comunidade científica, que seriam de competência de cada instância governamental, no combate aos avanços climáticos.
Prefeituras municipais: não apenas os municípios, mas assentamentos, territórios indígenas devem se voltar para um Plano de Ação de Enfrentamento às Mudanças Climáticas. Do poder público, deve haver investimento em pesquisa e adaptação de cidades. Além disso, é preciso um atenuamento de negociações de áreas verdes em espaços como a Câmara Municipal.
Estados e Governo Federal: necessária gestão eficaz das unidades de conservação, além da recuperação da mata das bacias hidrográficas, regida por um plano dividido por municípios, com políticas públicas e recursos adequados. Investimento na formação de jovens com uma educação ambiental desde o ensino básico. Incentivo à participação ampla da sociedade, pressionando para as políticas públicas, com investimentos em moradia, saneamento básico, acessibilidade, dentre outros.
Ademais, é necessário o financiamento de ações já sistematizadas, por meio da rede de meteorologia e prevenção de desastres ambientais brasileira. “No entanto, defende-se que essa ampla rede que existe no Brasil, apesar de forte, precisa de maior participação, especialmente dos atingidos das manifestações”, defende o ambientalista.
Cenário internacional: estudar maneiras de maior adesão da agricultura familiar como forma de sustento da população, ao invés do agronegócio. A médio prazo, mudar a matriz energética do planeta, investindo em energia renovável.
Número
R$ 423.045.984.389,22
foi o prejuízo provocado por desastres climáticos no Brasil desde 1995
Fonte: Atlas Digital de Desastres Naturais, com base nos relatórios do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD). Valores corrigidos.