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Desinformação vira arma política na tragédia climática do RS
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Desinformação vira arma política na tragédia climática do RS

Rede organizada de disparo de notícias falsas por influenciadores e parlamentares da extrema direita explora discurso "anti-Estado" de olho nas eleições, apontam especialistas
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Vista aérea de Cruzeiro do Sul após as enchentes devastadoras que atingiram a região, no Rio Grande do Sul, Brasil (Foto: Nelson ALMEIDA/AFP)
Foto: Nelson ALMEIDA/AFP Vista aérea de Cruzeiro do Sul após as enchentes devastadoras que atingiram a região, no Rio Grande do Sul, Brasil

Em meio ao desastre climático no Rio Grande do Sul, aumentou a disseminação de desinformação sobre as enchentes por influenciadores e parlamentares de extrema direita, cujas postagens nas redes sociais estão sob investigação da Polícia Federal. Nas publicações, eles exaltam o trabalho de voluntários e atacam a ação de governos e Forças Armadas.

"A desinformação no Brasil é um fenômeno político. Dependendo da ideologia que a pessoa segue, escolhe certas fontes. A mediação dos algoritmos sugere outros conteúdos e outras pessoas para seguir nessa linha. Então, cai no buraco de uma teoria da conspiração ou desinformação não por ignorância, mas pelos seus valores", analisa o professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Yurij Castelfranchi. A catástrofe ambiental, diz, agravou esse fenômeno.

Castelfranchi é coautor de uma pesquisa recém-lançada que avaliou o consumo de informações pelos brasileiros. O estudo, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, constatou que o meio ambiente e as mudanças climáticas estão entre os temas de maior interesse do público (76,2%).

No entanto, metade dos entrevistados disse já ter se deparado com fake news, e 9% admitiram compartilhar esses conteúdos mesmo sabendo disso.

Discurso de omissão é falso, mas governos contribuíram para a catástrofe climática

A narrativa de omissão por parte das autoridades é falsa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nomeou o ministro Paulo Pimenta para a secretaria extraordinária de reconstrução do Rio Grande do Sul, e anunciou um pacote de R$ 50 bilhões que prevê, entre outras medidas, o pagamento de benefícios e auxílios às pessoas afetadas pelas enchentes.

O resgate e medidas de infraestrutura demandam um grande aparato. Segundo balanço do Exército, mais de 33 mil militares, policiais e agentes estão envolvidos nas ações de socorro ao estado, que teve 461 cidades atingidas pelas enchentes. Para isso, foram destinadas à operação 5,1 mil viaturas e 90 equipamentos de engenharia, além de 80 aviões, 410 embarcações, seis navios multitarefas e nove hospitais de campanha.

O governador Eduardo Leite (PSDB) estima em R$ 19 bilhões os custos da reconstrução do estado. O governo reagiu à campanha de fake news sobre a tragédia denunciando o caso à PF.

Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), o objetivo é "evitar que o esforço de enfrentamento da calamidade seja prejudicado pela desinformação". O inquérito tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sob relatoria da ministra Cármen Lúcia.

Apesar de os governos estarem reagindo ao desastre climático, eles ignoraram alertas de pesquisadores do clima e contribuíram para o desmonte de políticas ambientais. A ONG Observatório do Clima mapeou 25 projetos de lei e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que enfraquecem a proteção ao meio ambiente.

As medidas preveem a redução da reserva legal na Amazônia, obras de irrigação em áreas de proteção permanente e relaxamento das regras de licenciamento ambiental, dentre outras mudanças. (DW)

Voluntários x governo: o antagonismo construído

Entre as postagens falsas compartilhadas estão a que relatava que a entrada de caminhões com doações para as vítimas tinha sido barrada pela Receita Federal e que voluntários foram impedidos de realizar resgates. Outra dizia que a cantora Madonna doou R$ 10 milhões. Em comum, as publicações exaltam a solidariedade de voluntários em oposição a uma suposta falência estatal.

"As consequências políticas desse tipo de disseminação são enormes, são danosas, podem custar vidas. Estamos gastando o dobro de energia para alertar sobre notícias falsas ao invés de orientar as pessoas sobre como devem deixar suas casas", alerta Fabrício Pontin, professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas.

Segundo eles, os grupos que espalham fake news testaram vários tipos de notícias falsas. As mais bem sucedidas não promoviam o negacionismo climático, mas sim o discurso de que a atuação do governo está atrapalhando o trabalho dos voluntários. "Tem um interesse muito claro de agentes políticos em fazer circular informação que ataque o grupo político oposto", afirma o jornalista Alisson Coelho, que atua desmentindo boatos em Novo Hamburgo (RS).

Coelho diz que esse tipo de conteúdo começou a ser compartilhado em perfis pequenos, com até 2 mil seguidores, mas explodiu quando foi amplificado por influenciadores e políticos, reforçando a polarização entre direita e esquerda. (DW)

Tragédia climática como estratégia de campanha

Para especialistas, a mobilização da desinformação sobre a tragédia climática pela extrema direita é uma estratégia para ganhar espaço nas eleições municipais de outubro. Essa tendência de compartilhamento organizado de notícias falsas é observada no Brasil desde 2016, e se intensificou nas campanhas eleitorais.

Doutor em comunicação e professor da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), Christian Gonzatti explica que a performance digital dos políticos visa manter o eleitorado engajado. "Precisam desse diálogo com o público para ter poder. Apelam à ideia de um perigo que precisa ser denunciado para ganhar visibilidade e depois convertê-la em outras formas de poder."

Segundo Pontin, esses grupos por onde a desinformação circula amplificam perfis de possíveis candidatos que defendem pautas neoliberais de redução do Estado e negacionismo climático. O discurso cola no público "não porque são contra o meio ambiente, mas porque têm medo das consequências de ter que mudar o paradigma". "Assim, criam-se lideranças que podem ser candidatas na eleição", diz. (DW)

Por que as plataformas alimentam essa dinâmica

Segundo Christian Gonzatti, doutor em comunicação e professor da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), a própria arquitetura da informação das redes sociais favorece a circulação de notícias falsas. "As redes são construídas para manter os usuários o máximo de tempo possível consumindo conteúdo em sequência. Por isso não vão confrontá-las na sua visão de mundo, porque precisam desse ambiente que prende a atenção. Isso dá retorno financeiro para as plataformas", afirma.

Fabrício Pontin, professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas, explica que a reprodução de fake news em grupos de mensagem ajuda a manter os participantes coesos. "Quando o conteúdo começa a se propagar e viralizar dentro dessas comunidades, a opinião se consolida. E isso tem consequências enormes, pois se isso se dá em cima de uma notícia falsa, fica muito difícil reverter isso."

Ele aponta que a disseminação de notícias falsas, além de estratégia política, é também um modelo de negócios. "As plataformas recompensam a atenção, só que não fazem distinção entre atenção ruim e boa. O conteúdo que gera atenção é recompensado, e as plataformas o mantém em circulação. Por mais que tentem fazer uma checagem, algumas com maior ou menor boa vontade, há um incentivo para que produtores façam esse tipo de conteúdo e recebam valores por isso." (DW)

Desinformação para propagar visão "anti-Estado"

Segundo especialistas, catástrofes climáticas como a enfrentada pelo Rio Grande do Sul favorecem a circulação de desinformação, propagada por perfis alinhados à extrema direita. "Pegam no imaginário de uma população extremamente carente, que já tem péssimas experiências com o setor público e que vai acreditar que há essa sabotagem do Estado. Isso cria uma má vontade em relação ao trabalho da polícia, do Exército, e fortalece os amadores e influenciadores", explica Fabrício Pontin, professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas (RS), região atingida pelas chuvas.

O aumento na disseminação de fake news sobre a tragédia climática foi constatado pelo grupo de pesquisa da USP Monitor Político, que analisa a polarização do debate político. Em nota técnica, eles apontam que "a profusão de mensagens indicava que o fenômeno era muito significativo", com praticamente uma em cada três mensagens publicadas no X (antigo Twitter) adotando um tom "anti-Estado".

 

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