“Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte”, começa a primeira versão da carta de Getúlio Vargas, escrita para ser divulgada após o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954, há 70 anos. Apesar de retirada da versão oficial, a frase se provou verdadeira e, até hoje, historiadores e cientistas sociais discutem quando, ou se, a Era Vargas realmente acabou.
Oficialmente, a denominação do governo de Getúlio abrange até 1945, quando o mandatário saiu do poder após 15 anos seguidos, divididos em Governo Provisório, Constitucional e ditadura do Estado Novo. No entanto, o próprio Getúlio retornou à Presidência na década seguinte. Depois, deixou sucessores diretos, com influência de forma indireta nas políticas econômicas, sociais e no modo de governar das gestões posteriores.
Assim, ele segue citado até hoje por representantes no poder público, pela imprensa e pela população brasileira, que se inspiram ou repelem sua figura, com divergências sobre o legado do ex-presidente, definido desde um ditador cruel até sinônimo do próprio Estado brasileiro.
Presidente mais longevo no poder, Getúlio governou o Brasil, ao todo, por 19 anos. Começou a vida política como deputado estadual no Rio Grande do Sul. Ficou no cargo, dentre idas e vindas, de 1909 até 1924, quando foi eleito deputado federal (1924-1926). Foi ainda ministro da Fazenda (1926-1927), na gestão do ex-presidente Washington Luís, e governador do Rio Grande do Sul (1928-1930).
Ele assumiu a Presidência da República na Revolução de 1930, golpe de Estado que depôs o presidente ao qual Getúlio foi ministro e encerrou o ciclo da política Café com Leite. Começava, então, a Era Vargas, marcada por avanços em direitos trabalhistas, políticas de saúde, industrialização, mas também por perseguições, em uma ditadura que começou em 1937 e se estendeu por oito anos.
A dualidade, de um líder autoritário e, ao mesmo tempo, promotor de uma política de aproximação do governo com diferentes classes sociais, gerou variados rótulos que circulam o legado de Vargas: o revolucionário, o ditador, o autoritário, o populista e o estadista. Para o pesquisador Fábio Gentile, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), “todos os conceitos juntos ajudam a entender” o ex-presidente.
Na Revolução de 1930, o então governador do RS alcança a Presidência em um cenário de fervor na cultura e na política brasileira, que não aceitavam mais a alternância das políticas do “Café com Leite”. “Fiz-me chefe de uma revolução e venci”, elenca-se o próprio Getúlio, na carta testamento. Na época, houve a semana de arte moderna, o início da formação de partidos, mas, ao mesmo tempo, a expansão do nacionalismo e do pensamento autoritário em países da Europa, o que incentivou o cenário brasileiro.
O Estado Novo foi um reflexo disso, sendo um período de centralização do poder em Getúlio, cujo Governo perseguiu e torturou opositores. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a ditadura varguista prendeu 4.099 pessoas no Brasil. Ao mesmo tempo, no entanto, o presidente promoveu avanços em direitos sociais que, de acordo com Fábio Gentile, também consistem em medidas inspiradas em regimes autoritários da Europa.
O professor afirma que a legislação trabalhista de Vargas é uma “elaboração original do que é a carta do trabalho fascista”, o que influencia na contradição do legado do ex-presidente: criadas por um ditador e inspiradas no regime fascista, as leis do trabalho tornaram-se base da democracia brasileira.
Getúlio é obrigado a renunciar em 1945, muito pela força de militares brasileiros que, ao ajudarem a derrubar regimes autoritários na Europa, deparam-se com um nos mesmos moldes, no retorno para casa. O presidente utiliza, então, das medidas sociais para aproximar-se da classe trabalhadora e retornar à Presidência, sob voto popular, em 1951.
Neste momento, intensifica-se a imagem do Vargas “populista”, do “pai dos pobres” que “apesar de tudo”, gerou direitos sociais. “Uma imagem que ele constrói na década de 1930 e depois utiliza para pensar esse projeto populista da década de 50. [..] Embora a classe trabalhadora não tenha tido papel ativo na formação de direitos trabalhistas, eles argumentam que, pela primeira vez, receberam direitos”, diz o professor Fábio Gentile.
O governo de 1951-1954 foi marcado por uma crise político-militar e críticas de veículos de imprensa, agravadas pela tentativa de assassinado do jornalista Carlos Lacerda. O escalonamento culmina na morte de Vargas. A carta de suicídio é publicada como um último ato político, reforçando a imagem do presidente como defensor do povo. “Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado”, diz trecho do documento.
Hoje, o nome de Getúlio está por toda parte, em praças, escolas, avenidas, estádios de futebol, dentre outros. As homenagens provocam a curiosidade do professor Fábio, natural da Itália. “Lá nós não temos a praça Benito Mussolini, mas, no Brasil, temos avenidas Getúlio Vargas”, diz, citando o ditador fascista, líder do regime autoritário na Itália, em comparação ao ditador brasileiro.
Gentile considera que a imagem que prevalece na memória não é apenas uma distante do Vargas ditador, mas do ex-presidente como símbolo da própria política brasileira. “Hoje no Brasil prevalece o Vargas estadista, criador do Estado brasileiro, criador da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ele é visto como um pai da nação, mas é um grande debate", afirma.
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“Qualquer conjuntura pretende criar a sua memória de Vargas. Elaborar o passado dele de acordo com a ideologia do governo que estiver vigente”, explica o professor Fábio Gentile sobre a preservação da memória do ex-presidente na política brasileira.
Isso porque Vargas segue presente, sendo citado no meio político. Em documento disponibilizado pela Câmara dos Deputados, somente na Casa Baixa, Getúlio foi mencionado diretamente em 771 sessões, de 1946 a 2014, ou seja, até 60 anos após a morte. Somente de 2000 ao último ano coletado, foram 115 menções.
Além da referência direta na Câmara, a influência do ex-presidente seguiu em governos muito posteriores ao dele, com ações de aproximação da imagem dos então mandatários com a figura de Getúlio, ou o contrário, de afastamento.
A influência mais explícita de Getúlio se dá em governos logo após o suicídio de Vargas, como os de Juscelino Kubischeck e João Goulart, com grandes traços do projeto nacional desenvolvimentista e de reformas sociais.
O golpe militar de 1964 representou, ao menos no discurso, uma quebra no varguismo, empurrando as práticas do ex-presidente ao espectro político da esquerda. No entanto, o autoritarismo seguia. “A ditadura tenta cancelar a imagem de Vargas como pai do Estado brasileiro, mas incorpora toda a estrutura corporativista e trabalhista dentro da Ditadura, do Estado autoritário. Mantém uma continuidade com o Estado, mas quer cancelar a imagem de Vargas, que era carismática”, diz o pesquisador da UFC.
Na redemocratização, as políticas econômicas de Getúlio foram repelidas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso(PSDB), mas gestores como José Sarney (MDB), Lula (PT) e Dilma (PT) seguiram citando o ex-presidente como exemplo político e grande estadista, com tentativas de atrelar a imagem deles a Vargas.
O cenário leva a questão do início deste material, sobre o verdadeiro fim da Era Vargas que, mesmo após 70 anos da morte do ex-presidente, parece seguir presente. “Há muitos pesquisadores e cientistas que falam que a Era Vargas ainda não acabou. Fica difícil dizer veementemente o quanto dura. É uma época que vai até o fim do Estado Novo, 1945? Vai até o sucidío de Vargas? Até o golpe militar? Até a década de 1990? Ou até hoje? Eu diria que é um debate aberto”, diz Fábio Gentile.
O POVO buscou entender, ainda, o legado das políticas econômicas implementadas no Governo Vargas no modelo usado hoje no Brasil. Para o professor Samuel Pessoa, o nacional desenvolvimentismo, marco de Vargas, perdeu espaço para o Estado de bem-estar social, devido ao baixo investimento em educação do modelo econômico varguista.
O pesquisador é associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, iniciativa de ensino criada, inclusive, pelo ex-presidente, visando desenvolvimento socioeconômico nacional. Ele elenca como principal característica da política varguista a intervenção do Estado no funcionamento dos diversos mercados econômicos, com criação de estatais e interferência nos contratos de utilidade pública.
Este seria o marco do nacional desenvolvimentismo que se estendeu, no geral, de 1930 a 1980. Nessa época, o pesquisador considera que o Brasil era “praticamente autossuficiente” na economia. No entanto, o alto crescimento populacional e o baixo investimento educacional chocaram com o progresso tecnológico. “Não tinha mão de obra preparada para enfrentar os desafios das mudanças técnicas. O padrão exigia a escolaridade da mão de obra”, diz Samuel Pessoa.
Além disso, houve uma mudança nas prioridades do Governo Federal, com foco em investimentos sociais e de áreas como educação, saúde e previdência. Demandas, segundo Pessoa, que não deixam espaço para o nacional desenvolvimentismo. A população, por meio do voto, optou que a prioridade era o bem-estar social.
Hoje, o nacional desenvolvimentismo segue vivo na memória da elite brasileira, na visão do pesquisador, que a enxerga, pelo contrário, como causadora de alguns problemas econômicos e sociais da atualidade. “Até hoje avaliam que foi um momento dourado da economia brasileira e da sociedade, o que, no meu entender, é uma total miopia das próprias elites, de dourado não tinha nada. Problemas de pobreza, violência, degradação do espaço urbano são um legado do nacional desenvolvimentismo.”