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Interrogatórios favorecem acusação
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Interrogatórios favorecem acusação

Embora o julgamento seja técnico, o fator político é inevitável. Além disso, o quadro de provas é considerado "muito forte" por especialistas
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Jair Bolsonaro durante sessão de interrogatórios no STF (Foto: Evaristo Sá/AFP)
Foto: Evaristo Sá/AFP Jair Bolsonaro durante sessão de interrogatórios no STF

Réu no Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ficou frente a frente com o ministro Alexandre de Moraes em um dos momentos mais emblemáticos da ação penal que investiga a tentativa de subverter o resultado das eleições de 2022.

Assistiu-se, na ocasião, um Bolsonaro conciliador. Ele se desculpou com ministros da Corte, pediu permissão para brincadeira, convidou o relator para ser seu vice em uma eventual chapa e chamou de “malucos” os defensores de intervenção militar. Além disso, negou ter participado de qualquer invenção que culminasse em um golpe de Estado.

Embora o ex-mandatário tenha adotado essa postura e a fase de instrução ainda esteja em curso, juristas avaliam que os testemunhos prestados até o momento fortalecem o conjunto probatório reunido pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Contudo, a definição sobre a culpa depende da análise de todas as evidências. Os interrogatórios são apenas uma parte do processo.

"Isoladamente, os depoimentos das testemunhas e dos réus não são elementos de prova com força probatória suficiente para descaracterizar os tipos penais imputados pela PGR. O peso dos relatos será valorado de acordo com sua confirmação ou contradição com os demais documentos e materiais apreendidos no curso da instrução para se firmar uma convicção motivada acerca da procedência ou não da denúncia", explica André Xerez, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

Mesmo com a ponderação, o processo parece avançar rumo à consolidação da denúncia. Para Raquel Machado, doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), a acusação saiu fortalecida, porque se percebeu contradições nas falas dos depoentes e desencontros entre as defesas. "Vamos caminhar para possíveis condenações", prevê.

Embora o julgamento seja técnico, o fator político é inevitável. "Não tem como negar, porque nós temos muitas autoridades envolvidas que continuam sendo relevantes e, de todo modo, o Supremo sabe do desgaste dele, então vai levar isso em consideração na hora de julgar", acrescenta Machado.

Além disso, por mais que os réus tenham negado as práticas apresentadas pela PGR, o quadro de provas é considerado "muito forte", conforme analisa o advogado criminalista Nestor Santiago, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza (Unifor). "Eles estão cantando aquela música Evidências: 'Negando as aparências e disfarçando as evidências’", associa.

Entre os depoentes, também chamou atenção o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens e delator no caso. Considerado peça-chave da engrenagem do plano, a oitiva dele foi marcada por hesitações. De acordo com Santiago, isso pode "enfraquecer" a argumentação do Ministério Público, embora os argumentos não se baseiem tão somente na delação.

“Tudo indica, se formos pensar do ponto de vista político, que o julgamento ali está muito desenhado. Vamos ver o que vai acontecer na situação concreta”, pondera Santiago. Xerez lembra que há fatos "incontroversos" no caso, como a existência da denominada minuta do golpe. "Inclusive confirmada, em alguma medida, nos depoimentos. A controvérsia agora se dá em torno da disputa de versões quanto à valoração jurídica do documento como suficiente ou não, por exemplo, para satisfazer os elementos do tipo penal".

Por outro lado, as hipóteses da acusação da PGR também estão sujeitas à prova. Isso é o que menciona Sérgio Rebouças, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC. "O processo não é para confirmar âmbitos da acusação, é para verificar se essa acusação procede ou não. Mas, pelas próprias perguntas formuladas aos acusados, já se tem uma convicção formada sobre o assunto", percebe.

Rebouças não vislumbra como os depoimentos podem beneficiar os réus, devido, atribui ele, ao clima instaurado no interrogatório e às posturas dos réus e do relator, Alexandre de Moraes. "Esse clima de piadas e ironias não favorece a credibilidade do próprio processo e nem a posição dos acusados. Dentro desse ambiente, verifica-se claramente que o que os acusados falaram não vai beneficiá-los de nenhuma forma e em diversos pontos vai prejudicá-los".

Ministro Alexandre de Moraes em Sessão da Primeira Turma do STF.

Foto: Gustavo Moreno/STF
Ministro Alexandre de Moraes em Sessão da Primeira Turma do STF. Foto: Gustavo Moreno/STF

Jurista critica "ambiente jocoso" e postura de Moraes

Dentre as situações que repercutiram nas redes sociais durante os depoimentos de Jair Bolsonaro (PL) e de membros do chamado "núcleo de comando" da trama golpista, chamou atenção a postura do ministro relator, Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

No primeiro dia de oitivas, o magistrado ironizou ao negar mudança no horário do interrogatório do dia seguinte. Moraes indicou que atrasaria em dois minutos o encontro para atender uma solicitação do advogado Matheus Milanez, defensor do general Augusto Heleno.

Já ao responder a pedido do ex-presidente para realizar uma brincadeira, o relator sugeriu que Bolsonaro consultasse os próprios advogados.

Para o professor Sérgio Rebouças, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha e coordenador da Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), o ambiente da audiência foi "muito diferente" em vários aspectos do devido processo legal.

Conforme o jurista, um "ambiente jocoso" pairou, comprometendo não apenas a seriedade do julgamento, mas também a credibilidade do processo. O ponto de maior preocupação levantado por Rebouças foi um "ativismo muito marcado" do ministro relator.

"Nos termos da lei e do devido processo legal, o juiz não deve ter essa postura ativa de fazer perguntas no sentido de verificar ou confirmar a hipótese da acusação. Isso é um papel do Ministério Público", explica.

Rebouças observa que o nível de intervenção de Moraes excedeu o esperado. "O juiz pergunta no final só a título de esclarecimento, se tiver restado alguma dúvida diante do que foi objeto ali de inquirição. Não foi isso que nós vimos".

Ele notou também que, pelas próprias perguntas, já se tinha uma "convicção formada". Mesmo sem os réus adotarem uma postura de confronto, a fragilidade de versões dos acusados ficou evidente, na avaliação do professor. "Optaram por falar, por prestar o depoimento, ficam expostos a diversas contradições e fragilidades".

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 30-05-2025: Ex-Presidente Jair Bolsonaro em Seminário do PL no Centro de Eventos. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 30-05-2025: Ex-Presidente Jair Bolsonaro em Seminário do PL no Centro de Eventos. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Efeitos políticos

Caso o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) seja condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na investigação sobre a tentativa de golpe, o bolsonarismo não tende a desaparecer. Ao contrário, a expectativa é de que esse campo da direita radical siga ativo, ainda que com uma eventual transição de protagonismo. A análise é da cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC).

O impacto político de uma possível condenação tende a ser sentido mais sobre a imagem pessoal do ex-mandatário do que sobre o movimento político no qual está inserido. "O bolsonarismo já extrapolou a figura do Bolsonaro, porque começa a ter outras lideranças", analisa Vieira.

Para a pesquisadora do Lepem, a liderança dele não está completamente enfraquecida, mas também não tem a mesma força. Está nesse meio termo. "Ainda não dá para a gente sentir esse impacto. Vimos só as sinalizações de desgaste".

Vieira aponta que durante o depoimento de Bolsonaro, houve uma série de circunstâncias ficaram "um pouco antipáticas" para os apoiadores dele, como quando chamou de "malucos" defensores de intervenção militar . "Talvez, a gente perceba, com o passar dos dias, um desgaste. Algumas bases aliadas já não receberam muito bem a postura do Bolsonaro na sua defesa".

Por outro lado, o Partido Liberal (PL) tem se organizado nos estados com o objetivo de ampliar competitividade e garantir palanques para 2026. Dessa forma, mesmo que a liderança do ex-presidente sofra desgaste, o campo político que ele inaugurou segue se reorganizando.

"Quando eu digo que o bolsonarismo extrapolou a figura em si do Bolsonaro é por conta dessas articulações que têm como um ponto de partida o bolsonarismo do Bolsonaro, mas que outras lideranças vão crescendo e aparecendo", explica.

Entre os nomes que emergem, é possível destacar o da a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) e do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que já aparecem como alternativas ao ex-mandatário em pesquisas eleitorais, visto que ele está inelegível.

"A base eleitoral dele continua consistente, inclusive as suas lideranças e apoiadores estão em pré-campanha pelos Estados. Michelle Bolsonaro está de fato articulando as estratégias do PL nos territórios", pontua Vieira.

É nesse cenário que se vislumbra um "espaço de recomposição". Enquanto Bolsonaro é alvo de uma ação penal na Suprema Corte, ocorre um jogo político estratégico, que, segundo a pesquisadora do Lepem, tem a competitividade do Executivo e o possível crescimento do Legislativo.

"Vemos que essas novas estratégias estão sendo pensadas, inclusive porque ao fortalecer um Congresso com novas lideranças, se fortalece também uma agenda política congressual, independentemente de quem seja o presidente".

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