O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros réus no Supremo Tribunal Federal (STF) tem provocado análises diversas, e nas mais variadas camadas da sociedade. Há, no entanto, uma distinção bem demarcada entre avaliações que são carregadas de teor político e as avaliações mais jurídicas e técnicas que se fazem de um julgamento de grande repercussão como esse.
No campo político, há quem rebata ou celebre a condução do julgamento, ambos os lados estão imbuídos de um viés. Já na parte jurídica, fundamental para as decisões dos ministros, a avaliação é baseada na análise dos elementos que se sobressaem nos autos do inquérito.
Embora os julgadores estejam inseridos no mesmo contexto social e político de todos nós, os ministros têm o dever constitucional de se ater a uma análise fundamentada em provas. Em conversa com O POVO, Thiago Bottino, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio e doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), analisou o andamento do processo no STF e traçou um caminho entre o que é visto e falado à realidade de um julgamento.
O POVO - O julgamento é midiático, gera interesse e, consequentemente, avaliações sobre o desenrolar e o desempenho dos envolvidos. Quais diferenças podemos verificar entre a avaliação política e popular, e o que foram, até agora, essas oitivas do ponto de vista jurídico? Até que ponto, essa avaliação política ou leiga coincide com o aspecto jurídico?
Thiago Bottino - Para responder de forma bem direta à sua pergunta, a avaliação política ou jornalística pode até existir na cabeça do julgador, mas ele não vai poder usar nada disso na hora de fundamentar a decisão. Então, o que os ministros da primeira turma do Supremo terão que ver (são) quais elementos foram provados nos autos e qual a avaliação que eles fazem dessa prova. Por exemplo, houve uma reunião onde se discutiu caminhos alternativos caso não se quisesse respeitar o resultado das eleições. Isso é um fato, está provado. Nos interrogatórios, reconheceram que essa reunião existiu. A questão é saber se essa reunião, por si só, é o início de uma ação para praticar um golpe ou estava meramente na etapa de cogitação? Essa é uma análise jurídica, não é uma análise política, não é uma análise jornalística. Por mais que esses elementos existam, na hora de decidir, o que os ministros têm que fazer é uma análise jurídica sobre quais as consequências desse fato provado. Qual a leitura que eles fazem desses fatos. Esse é mais ou menos o trabalho do julgador, pegar depoimentos de testemunhas, documentos, perícias feitas no computador ou celular e, uma vez provados esses fatos, extrair consequências jurídicas desses fatos.
OP - Há também muitas avaliações e repercussões nas redes sociais. Na sua visão, isso não gera nenhum tipo de pressão na parte jurídica?
Thiago - Não. Na verdade, assim, não tem como fingir ou pretender que essas pessoas não estão sujeitas a essa influência. Estão. Mas o trabalho do julgador é justamente se blindar dessas influências e fundamentar a decisão é o que permite esse controle. Se você ver uma decisão de um juiz onde ele está escrevendo as razões de decidir e ver que ali tem um argumento que não é jurídico, você pode contestar, você pode recorrer. Então, o exercício de fundamentar decisões é o que permite que o juiz proteja, a ele próprio, dessas influências que existem porque ele mora num país chamado Brasil, no ano de 2025. A pessoa está aqui, não é alguém que veio de Marte e está imune a todas essas influências.
OP - Sobre os interrogatórios em si, qual a relevância principal desse momento para o processo em questão e para o desenrolar? O que de importante devemos assimilar dos interrogatórios?
Thiago B. - Acho que o peso dos interrogatórios é muito baixo. As pessoas devem ter reparado que, no momento em que o ministro Alexandre de Moraes começa cada um dos interrogatórios, ele não fala que o interrogado tem apenas o direito de ficar calado. Ele falou assim: ‘Você não tem o dever de falar a verdade’. Significa que o acusado pode até mentir. Isso não é um problema, porque aquilo ali se trata de um momento de defesa, de autodefesa daquela pessoa. Então, como aquela pessoa não tem o compromisso de dizer a verdade, como a pessoa pode omitir fatos, como ela pode, inclusive, mentir, o peso que você dá para o interrogatório é menor, por exemplo, do que o peso que se dá para o depoimento de uma testemunha. Da mesma forma, o depoimento de um réu colaborador tem um peso diferente do depoimento de uma testemunha, porque o réu tem um interesse direto. Ele vai ganhar benefícios se aquela versão dele for confirmada. Tanto o interrogatório, como o depoimento de um réu colaborador, são provas importantes. Eles estão ali no processo, fazem parte desse todo, mas têm um peso isolado menor. É necessário sempre buscar outras provas que corroborem, que tenham base e que confirmem aquelas coisas que foram faladas no interrogatório, por exemplo.
OP - Nessa etapa dos interrogatórios, apontaria algum destaque? No sentido de avaliar em que eles foram bons ou ruins para alguma parte envolvida, ou então para o processo em si?
Thiago - O que eu destacaria foi o clima ameno e agradável desses interrogatórios. Você vê que as pessoas estão confortáveis, que se sentem confortáveis ali nesse momento. Não é um interrogatório em que você vê que as pessoas estão reativas, vemos até brincadeiras. O que as defesas vão usar desses depoimentos e o que acusação vai usar desses depoimentos, só saberemos lá na frente. Esse é o momento em que as peças ainda estão sendo colocadas no tabuleiro, a gente não viu ainda o jogo começando. Essas oitivas todas vão ser usadas, tanto pela acusação como pela defesa, para construir as suas alegações finais, onde eles vão dizer: ‘Olha, isso somado com isso, somado com aquilo, prova tal coisa’, acredito que ocorra assim.
OP - Nessa perspectiva de diferença do político e do jurídico, queria lhe ouvir sobre a opção do general Heleno, por exemplo, que usou seu direito ao silêncio durante o interrogatório. Politicamente isso gera reações negativas, mas e juridicamente? Tem algum ônus relevante?
Thiago - Nenhum. Politicamente ou jornalisticamente pode pegar mal, e para muita gente nem pega. Mas juridicamente isso não tem nenhum efeito. O sujeito entra no processo inocente, se a acusação não consegue provar, além de qualquer coisa, que ele praticou o crime, ele permanece no seu estado original, que é inocente. A verdade é que a defesa não tem que provar nada, quem tem que provar é quem acusa. Ficar em silêncio é dizer o seguinte: ‘Olha, cadê a sua prova? Não vou ficar aqui me preocupando em apresentar versões e elementos, porque acho que você não tem prova nenhuma do que você está alegando e eu não vou dar mais espaço para essa discussão e me preocupar'. Juridicamente, é como funciona. Midiaticamente pode ser um problema, mas no processo o fato de estar em silêncio jamais poderia ser usado de forma negativa contra ele.
OP - Quais os próximos passos a partir da conclusão dessa etapa? Na sua opinião, quem acompanha o julgamento deve ficar mais atento a algum ponto específico?
Thiago B. - Encerrados os interrogatórios, o que a gente pode ter, assim eventualmente, é uma fase de diligências. Caso tenha surgido algo durante esse processo, tanto a acusação quanto a defesa podem solicitar a complementação de documentações. Pode ocorrer algum tipo de junta de documentos, mas superada essa fase, caso não haja novos documentos a serem apresentados, a gente vai ter as alegações finais. Depois a defesa do réu colaborador e, por fim, as demais defesas. É importante destacar que a defesa do réu colaborador é feita separadamente e antes das outras, não é feita com as dos demais.