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A liberdade está sob risco no Brasil?
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A liberdade está sob risco no Brasil?

Políticos foragidos no exterior, perfis bloqueados em redes sociais, plataforma fora do ar, regulação das big techs na pauta do Judiciário e ação penal por crimes contra a democracia alimentam discurso conservador sobre autoritarismo no Brasil. Há excessos ou apenas a aplicação da lei?
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Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em carreata na Avenida Alberto Craveiro, com gritos de ordem, faixas, pedindo o fim do STF. Com muita motos, carros, caminhōes, bicicletas e pessoas a pé. Em época de COVID-19 (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em carreata na Avenida Alberto Craveiro, com gritos de ordem, faixas, pedindo o fim do STF. Com muita motos, carros, caminhōes, bicicletas e pessoas a pé. Em época de COVID-19

O acirramento político no Brasil tem gerado ruídos entre os poderes da República e acusações de cerceamento à liberdades individuais. O alvo principal é o Judiciário, principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF). Até que ponto são apenas ritos sendo cumpridos ou há riscos à liberdade no Brasil?

O julgamento da trama golpista com a cúpula do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro; diversos foragidos em países da Europa e nos Estados Unidos para escapar de inquéritos e decisões judiciais; além de temas sensíveis, como o julgamento das big techs para responsabilizar plataformas pelos conteúdos, são parte de um pano de fundo complexo que envolve alegações de "perseguição" e "censura".

Diversos aliados do ex-presidente Bolsonaro deixaram o país (ver quadro), alegando um suposto autoritarismo em curso no Brasil e disseminando essa ideia para além das fronteiras. Entre os casos estão a deputada federal Carla Zambelli, foragida na Itália; o ex-blogueiro Oswaldo Eustáquio, que está na Espanha; Allan do Santos, que foi para os EUA; dentre outros.

Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, destaca que o discurso de bolsonaristas exilados é parte de uma “narrativa da extrema direita”, que pressupõe a liberdade de expressão como absoluta e que não possui respaldos. “Narrativa que trata foragidos como arautos da liberdade de expressão, mas na verdade, eles a usaram para cometer crimes: ataques ao Estado democrático, discurso de ódio, fake news. Não procede. Não passa pelo crivo da lógica ou da Constituição. A liberdade de expressão vem acompanhada de responsabilidades”, defende.

Fernandes Neto, advogado e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), destaca que há mecanismos legais para confrontar eventuais excessos de autoridades.

“Toda e qualquer autoridade deve atuar dentro dos limites constitucionais e legais. Isso inclui o Judiciário, que, eventualmente, pode cometer excessos e precisa ser constantemente fiscalizado”. Sobre o caso de bolsonaristas foragidos, o advogado destaca que é necessário se ater aos fatos antes de discutir uma suposta perseguição.

“Zambelli foi impedida de exercer sua liberdade de expressão parlamentar? Não. Ela foi condenada por invadir o sistema público do Conselho Nacional de Justiça para inserir documentos falsos. Além disso, responde por outros processos. Oswaldo Eustáquio possui mandados de prisão preventiva emitidos por crimes como ameaça, corrupção de menores e tentativa de abolir o Estado Democrático. São fatos concretos”, diz, acrescentando que embora acusem o Judiciário de autoritarismo, o contexto é relevante.

Para o advogado André Marsiglia, professor de Direito Constitucional, a liberdade de expressão está constantemente sob ameaças e a atuação de alguns juízes têm prejudicado essa garantia constitucional. “Os governantes, de forma geral, não a valorizam, mas nos últimos anos os juízes passaram a atacá-la, isso é um perigo relativamente novo”, opina.

Marsiglia reconhece não haver liberdade absoluta, mas defende critérios objetivos. “Não existe liberdade a todo custo, ela sempre terá algum limite, mas ele não pode ser subjetivo, do contrário sempre dependeremos da cabeça dos juízes e não do que determina objetivamente a lei", argumenta.

A solução, a curto prazo, para o advogado, é política. “O Congresso confrontar, advogados, a sociedade, a OAB, confrontarem decisões subjetivas e que atingem a liberdade de expressão. Já o caminho a longo prazo, creio que só seja possível após uma renovação do Congresso e com uma reforma do Judiciário, que devolva o STF para um lugar menos politizado e que os estimule a interpretar a Constituição como ela é, não tal como eles querem que ela seja”.

Rodrigo Prando reforça que os ministros não são imunes às críticas, mas questiona a motivação por trás de movimentos recentes. “Pode-se fazer críticas ao ministro, mas a pergunta por trás disso é: ‘Não houve, também, por parte do bolsonarismo, um tensionamento e ataques às instituições?’ Há direito de questionar na Justiça; há liberdade de fazer crítica no Parlamento, mas criticar e fazer incitação à violência são coisas diferentes”, explana.

E complementa: “A gente pode e deve fazer a crítica. Mas muitos extrapolaram. Há problemas no Judiciário? Sim, mas se não houvesse Judiciário, estaríamos melhor? Se não houvesse uma atuação firme do ministro Moraes, teríamos conseguido barrar o plano golpista?”, indaga. Fernandes Neto avalia que, embora Moraes tome muitas das decisões, elas são referendadas por outros ministros.

“A desqualificação da figura do julgador é uma estratégia recorrente em defesas em casos judiciais. O que está em julgamento, no entanto, são situações excepcionais. Os processos têm sido conduzidos com transparência e seguem trâmites regulares. Isso não significa que questionamentos não sejam válidos, desde que feitos à luz de provas e do direito”, analisa.

Big Techs e responsabilização

Entre os temas que despertaram discussões sobre liberdade de expressão e responsabilização está o julgamento em curso, no Supremo Tribunal Federal (STF), envolvendo as chamadas big techs (plataformas e redes sociais). O STF já tem maioria para ampliar a responsabilização desses espaços por publicações feitas por seus usuários. A maioria dos ministros já expressou entendimento favorável a ampliar as obrigações dessas empresas na moderação de conteúdo. O tribunal ainda busca definir os critérios.

O advogado Fernandes Neto explica que a regulação de big techs é um desafio comum em países democráticos, especialmente porque essas empresas, além de transnacionais, muitas vezes se comportam como entidades "supraestatais", desafiando as legislações locais. Segundo Neto, a ideia de uma internet democrática e livre parece ter sido superada pela realidade e os algoritmos, aliados aos interesses comerciais dessas empresas, têm enorme influência sobre os consumidores e decisões em larga escala.

"Uma regulação que obrigue essas corporações a terem representação física nos territórios em que atuam, submetendo-se ao regime jurídico de cada Estado, é um primeiro passo essencial. Um segundo avanço seria exigir dessas empresas um nível mais elevado de autorregulação, considerando o volume de conteúdos que geram e os danos imediatos que podem causar. O Judiciário não tem condições de tratar esse volume de informações e, por isso, regulamentações específicas são imprescindíveis", diz.

Para o cientista político Rodrigo Prando, é "fundamental" a discussão e trazer à tona a responsabilidade das empresas. "As big techs operam a partir de interesses econômicos, a partir da lógica das redes sociais. Tudo que desperta sentimentos, como raiva, ódio, medo, gera engajamento e compartilhamento e quando gera isso, há monetização. Defendem a manutenção de um negócio, não da liberdade de expressão".

Outro ocorrido que chamou a atenção recentemente envolveu o  humorista Léo Lins, condenado a oito anos de prisão por piadas ofensivas contra grupos específicos. Neste mês, a escritora e jornalista Nina Lemos publicou texto na DW, reproduzido no O POVO, mencionando o ocorrido, que gerou repercussão internacional, com tradicionais veículos de imprensa dos EUA falando em "esforço do Judiciário brasileiro para impor limites à liberdade de expressão".

O tema motivou ainda divergências no Brasil sobre limites do humor e da liberdade. Em artigo, Nina descreve que não há tal risco. "Não existe censura no país, como muitos insistem. Existem leis e um processo legal (...) Prova disso é o fato de Léo Lins ter amplo direito à defesa", discorre.

"Ele não foi preso. Foi condenado por uma juíza, mas ainda tem o direito de recorrer em liberdade em todas as instâncias. E é assim mesmo que tem que ser em um Estado democrático de direito".

Fatos

"Zambelli foi impedida de exercer sua liberdade de expressão parlamentar? Não. Ela foi condenada por invadir o sistema público do Conselho Nacional de Justiça para inserir documentos falsos. Oswaldo Eustáquio possui mandados de prisão preventiva emitidos por crimes como ameaça, corrupção de menores e tentativa de abolir o Estado Democrático. São fatos concretos"

Fernandes Neto, advogado e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE)

Limite

"Não existe liberdade a todo custo, ela sempre terá algum limite, mas ele não pode ser subjetivo, do contrário sempre dependeremos da cabeça dos juízes e não do que determina objetivamente a lei"

André Marsiglia, advogado e professor de Direito Constitucional

Melhor?

"A gente pode e deve fazer a crítica. Mas muitos extrapolaram. Há problemas no Judiciário? Sim, mas se não houvesse Judiciário, estaríamos melhor? Se não houvesse uma atuação firme do ministro Moraes, teríamos conseguido barrar o plano golpista?"

Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo

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