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Como América Latina ficou livre de armas nucleares
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Como América Latina ficou livre de armas nucleares

|CONTINENTE| América Latina foi a primeira região a ser declarada livre de armas nucleares. Brasil e Argentina, no entanto, tiveram papel ambíguo
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SOLDADOS argentinos em 1982, após a tomada das Ilhas Malvinas (Foto: DANIEL GARCIA/AFP)
Foto: DANIEL GARCIA/AFP SOLDADOS argentinos em 1982, após a tomada das Ilhas Malvinas

Em meio a conflitos que podem culminar com uma guerra nuclear, chama a atenção como a América Latina ficou alheia ao desenvolvimento desse tipo de armamento. A não proliferação nuclear no continente foi obra de esforços diplomáticos, que fizeram da região a primeira densamente povoada do mundo a ser declarada livre destas armas em 1967. Neste contexto, dois países tiveram, porém, um papel ambíguo: Brasil e Argentina, que defendiam avanços nessa área.

A ideia de proibir as armas nucleares na região existia desde os anos 1950. Dois fatores contribuíram para essa postura pacifista: a ausência de grandes disputas internas entre os países latino-americanos, e o fato de nenhuma nação ter desenvolvido estes armamentos até então, aponta Ryan Musto, diretor de fóruns e iniciativas de pesquisa do Instituto Global de Pesquisa (GRI).

Neste momento inicial, Musto conta que houve um interesse da Costa Rica e do Brasil, visando especialmente não desperdiçar recursos. O tema ganhou urgência com a crise dos mísseis de Cuba em 1962, um dos momentos mais tensos da Guerra Fria, quando o mundo ficou próximo de uma escalada nuclear entre Estados Unidos e União Soviética. Foi quando os defensores da não proliferação na região ganharam grande impulso.

"A grande ideia de desnuclearização era brasileira, e foi impulsionada pelo país no contexto da Crise dos Mísseis", afirma o diretor técnico da Associação Brasileira para Desenvolvimento de Atividades Nucleares (ABDAM), Leonam Guimarães.

Após o golpe de 1964, que instaurou a ditadura militar, divergências passaram a dominar a postura brasileira com relação às propostas de não proliferação. O país alegava que certos termos das negociações poderiam violar a soberania.

O Brasil era, por exemplo, a favor da permissão para testes para fins pacíficos, algo defendido para uso na engenharia por certos setores na época, aponta Guimarães. "Foi então que veio o México, buscando impulsionar o seu nome internacional", conta Musto. O vácuo deixado pela postura brasileira foi ocupado pelo governo mexicano, que atuou ativamente para promover os termos do que viria a ser o Tratado de Tlatelolco, assinado na Cidade do México em 1967.

Como resultado dos esforços, o então secretário das Relações Exteriores do país, Alfonso García Robles, foi laureado com o Nobel da Paz em 1982 "por seu trabalho pelo desarmamento e as zonas livres de armas nucleares".

Uma das justificativas para a hesitação brasileira foi justamente seu principal vizinho. "Brasil e Argentina queriam manter suas opções nucleares em aberto por conta um do outro", aponta Musto.

Durante o governo de Juan Domingo Perón, que comandou a Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974, o país investiu numa série de desenvolvimentos nucleares.

Havia a ideia de que garantir a autonomia energética do país era essencial para o processo de industrialização por substituição de importações, enquanto o governo peronista da época cogitava uma possível Terceira Guerra Mundial, explica Nevia Vera, integrante do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre Questões Internacionais e Locais (CEIPIL) da Província de Buenos Aires.

Guimarães lembra que, a partir deste momento, se "estabeleceu uma corrida entre os dois países", e que os estágios tecnológicos que a Argentina estabeleceu para a energia nuclear foram grandes motivadores para o complexo de Angra, no Brasil.

Outro país que não queria ter suas operações restringidas na região era a França. Sob o comando de Charles De Gaulle (1959-1969), Paris adotou uma postura fortemente nuclearizada, e resistiu que seus territórios ultramarinos no continente americano fizessem parte dos esforços de não proliferação.

Brasil e Argentina se mantiveram reticentes em adotar plenamente o tratado. Com uma postura ambígua, em que cumpriram com grande parte das determinações, mas que deixou margem para novos desenvolvimentos, os dois países somente adotaram de maneira plena a postura da não proliferação após suas transições democráticas.

Em 1994, ambos os países ratificaram plenamente Tlatelolco. Na visão de Vera, o tratado não afetou diretamente o desenvolvimento nuclear da Argentina, embora tenha causado "várias dores de cabeça diplomáticas", pois o país foi pressionado por grandes potências, especialmente os Estados Unidos, e gerou desconfiança global.

Neste contexto, foi frequente a acusação de que a Argentina tivesse fins bélicos em seus desenvolvimentos nucleares, o que Vera rechaça. "Na verdade, a confusão pode advir da compreensão que os militares tinham da segurança na época, que diferia daquela das grandes potências", aponta.

"Para governos desenvolvimentistas e alguns militares, a segurança estava frequentemente ligada à autonomia energética, como foi dito, e a energia nuclear era essencial para garantir isso, mas apenas em seu aspecto pacífico", afirma a especialista.

Um questionamento que os planos voluntários de desarmamento nucleares sempre sofreram foi sobre as contrapartidas por abrir mão da capacidade bélica. "Os tratados de não proliferação são assimétricos, e geram resistência entre os que não possuem os armamentos para sua assinatura", afirma Guimarães.

Naquele momento, o mundo passava por algumas iniciativas que visavam contrapartidas para os países que se abstivessem de seus desenvolvimentos nucleares belicistas. Em 1953, o presidente americano Dwight Eisenhower lançou o programa conhecido como Átomos para a Paz, que visava cooperação para o uso nuclear com fins pacíficos para reduzir a ameaça do desenvolvimento de armas atômicas.

Pouco depois, em 1957, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) foi criada, e um ano após a assinatura de Tlatelolco, em 1968, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) foi firmado, ainda que com inúmeras ausências importantes.

O TNP reforçou os princípios de colaboração para fins pacíficos com quem abdicasse das armas. Foi neste contexto, em 1975, que a Alemanha Ocidental firmou seu acordo com o Brasil, que previa a transferência de tecnologia alemã para o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro, com a construção de oito usinas. Apenas uma saiu do papel, Angra 2, que entrou em operação em 2001.

O desenvolvimento de programas de energia nuclear na região acabou sendo limitado, e, hoje, além do Brasil, apenas Argentina e México usam esta fonte em sua matriz energética.

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