Disputas territoriais entre estados brasileiros, também conhecidas pelo termo "litígio de terras", são antigas e têm atravessado o histórico recente do Ceará. O Estado está no centro de contendas e contestações, envolvendo partes do seu território, com pelo menos três estados vizinhos: Piauí a oeste, Pernambuco a sul e Rio Grande do Norte a leste.
Há casos com acordos bem encaminhados até aqueles com conflito aberto na Justiça. São questões de décadas ou mesmo séculos. Aspectos políticos pesam pouco. Dos quatro estados, três são atualmente governados pelo PT. Mas as divergências vêm de muito antes e as respectivas populações não aceitariam que os políticos cedessem território por motivo partidário.
O termo litígio ganhou mais destaque no noticiário cearense de 2023 para cá, a partir de desdobramentos de uma disputa antiga entre Ceará e Piauí, o mais complexo dos casos, que remete à época do Império e envolve uma área que se estende por 13 municípios da região da Serra da Ibiapaba.
Ambos os estados reivindicam o território, atualmente pertencente ao Ceará, que está em ação que se arrasta no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2011.
Já com Pernambuco, o caso envolve pedaços de chão de municípios localizados na divisa dos dois estados e parece caminhar para uma resolução pacífica, com pré-acordo firmado entre os estados e que depende da conclusão de levantamentos para depois se tornarem leis aprovadas pelas respectivas assembleias legislativas.
A situação mais harmoniosa, curiosamente, é com o único estado cujo governo não é também do PT, do cearense Elmano de Freitas. A governadora de Pernambuco é Raquel Lyra, que recentemente saiu do PSDB para se filiar ao PSD.
Com o Rio Grande do Norte, trata-se do menor território, mas é a situação que se tornou mais extremada, com direito a placa arrancada e Polícia acionada.
Grupo de trabalho com membros dos dois estados foi criado para discutir a questão, que envolve uma faixa de 181 metros entre os municípios de Icapuí (CE) e Tibau (RN).
Ceará e Piauí: séculos de disputa pela Ibiapaba
O litígio entre Ceará e Piauí tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2011, mas a peleja remonta a mais de 300 anos atrás, no tempo do Brasil colônia. O repórter João Paulo Biage, correspondente do O POVO em Brasília, apurou que o processo continua no gabinete da ministra relatora Cármen Lúcia, do STF, e sem data de liberação para a pauta. Além disso, ainda não há relatório pronto sobre o tema, que ainda deve demandar mais tempo para ser finalizado.
Em 2024, o governo cearense fez diversos estudos e pesquisas para levantar serviços prestados na região da Serra da Ibiapaba e que tem cerca de 3 mil quilômetros de extensão. Além disso, foram atualizados registros sobre o número de equipamentos de educação, saúde e outras estruturas do Estado que atendem as populações dos 13 municípios.
Também foi feita pesquisa sobre a questão do sentimento de pertencimento dos moradores ao estado do Ceará, com ampla maioria identificando-se como cearense. Esse é, inclusive, um dos argumentos levados pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE-CE) ao STF. Em caso de ser necessário eleger, 87,5% dos entrevistados afirmaram que escolheriam o Ceará.
Os municípios cearenses afetados pelo litígio CE/PI são: Carnaubal, Crateús, Croatá, Granja, Guaraciaba do Norte, Ibiapina, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga, São Benedito, Tianguá, Ubajara e Viçosa do Ceará. Destes, o município de Poranga é quem perderia a maior parcela do território, em caso de decisão favorável ao Piauí, com 66,3% da área.
Um estudo do perfil socioeconômico da área de litígio divulgado no ano passado apontou que o Produto Interno Bruto (PIB) dos 13 municípios cearenses afetados pela disputa correspondia, em 2021, a R$ 6.9 bilhões, valor equivalente a 3,6% do total do PIB do Ceará à época.
A disputa envolve cerca de 25 mil cearenses que moram no território. A questão remonta ao século XVII. O império português se dividia em Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. A capitania do Ceará foi parte do Estado do Maranhão e Grão-Pará, mas, em 1656, foi transferido para o Estado do Brasil.
Já a capitania do Piauí seguiu como parte da outra divisão administrativa do império lusitano. E reivindicou terras da Missão da Ibiapaba, onde viviam indígenas da nação Tabajara, considerados habitantes do Ceará.
Em 1720, carta régia do rei João V reconheceu toda a Ibiapaba como parte da nação Tabajara na capitania do Ceará.
Já no século XIX, o Piauí reivindicou a posse da Freguesia de Amarração, que o Ceará considerava parte do próprio território. É a área correspondente aos atuais municípios piauienses de Luís Correia e Cajueiro da Praia. Para os piauienses, o local sempre pertenceu ao lado de lá da divisa.
Em 1870, Amarração foi elevada a vila da Província do Ceará. Em 22 de outubro de 1880, decreto do imperador dom Pedro II transferiu Amarração para o Piauí, em troca da comarca de Príncipe Imperial — atuais municípios de Crateús e Independência — incorporada ao Ceará. Diferenças de interpretação sobre o decreto explicam o litígio até hoje sem solução.
Em 1920, Piauí e Ceará assinaram acordo com a Presidência da República prevendo um estudo definitivo, mas esse trabalho de campo nunca foi realizado.
Com o caso já no Supremo, houve tentativa de acordo. Em 2012, a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) da Advocacia Geral da União (AGU) pediu ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que coordenasse trabalho técnico para definir metodologia, em conjunto com os dois estados, a fim de identificar as divisas entre os dois estados.
Foi demarcada área piloto de aproximadamente 30 quilômetros quadrados, entre os municípios de Poranga (CE) e Pedro II (PI). Técnicos de ambos os estados participaram e o local foi definido em comum acordo para se chegar a uma metodologia a ser aplicada em toda a zona de litígio.
Porém quando se chegou a uma proposta de divisa entre Pedro II e Poranga, o Piauí, que havia participado da definição da metodologia, não aceitou os resultados do trabalho técnico e se retirou, encerrando a tentativa de conciliação. Desde então, a questão tem prosseguimento no Supremo, sem previsão de solução.
Ceará e Rio Grande do Norte: placa derrubada e polícia envolvida em disputa de mais de 100 anos
O caso entre Ceará e Rio Grande do Norte envolve área de 181 metros e compreende as cidades de Icapuí (CE) e Tibau (RN). O problema voltou à tona a partir da instalação e posterior derrubada de uma placa que sinaliza a divisa entre os estados.
O Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) apontou que estaria errado o local e a posição da sinalização que demarcava a divisa entre os dois estados. Assim, o Governo do Ceará aproveitou obra na rodovia CE 261 e, em 24 de abril de 2025, instalou a placa em outro local, que considera o correto.
No dia 2 de maio, a Prefeitura de Tibau colocou a nova sizalização abaixo, com uso de escavadeira, por ordem da prefeita Lidiane Marques (União Brasil), que assinou decreto. O município potiguar entendeu que a placa avançou sobre os limites do território.
Em 8 de maio, o Governo do Ceará mandou equipe reinstalar a placa, e colocou a Polícia para acompanhar o trabalho.
O lado cearense aponta que a posição anterior da placa estava em território pertencente ao município de Icapuí, e segundo o governo cearense, deveria ser colocada exatamente no limite entre os dois municípios estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) informou que solicitou ao Ipece a realização de um estudo na área em questão. “O relatório técnico identificou, com base em dados georreferenciados pelo IBGE, a existência de loteamento e infraestrutura urbana do município de Tibau (RN) em território cearense”, informou a PGE ao O POVO em maio.
O Diário Oficial do Estado (DOE) do Ceará do dia 6 de junho voltou a tratar da questão, ao trazer ato interfederativo, entre os estados do Ceará e Rio Grande do Norte, para estudo e encaminhamento de solução da questão relativa à divisa supracitada.
Os governadores Elmano de Freitas (CE) e Fátima Bezerra (RN), ambos do PT, determinaram a criação de uma Comissão Interfederativa para estudo e encaminhamento de proposições sobre a divisa e determinou os objetivos a partir da criação do grupo.
Dentre eles: “realizar e compartilhar estudos técnicos sobre a divisa territorial; reunir, analisar e sistematizar informações geográficas, históricas, administrativas e urbanísticas relacionadas à faixa limítrofe em estudo; promover o diálogo entre os entes federativos e os representantes dos municípios envolvidos, com vistas à construção de entendimentos; elaborar propostas de encaminhamento baseadas nas informações obtidas e nos estudos".
O ato especifica ainda que sempre que necessário, a Comissão poderá solicitar a colaboração de especialistas, técnicos e representantes de instituições públicas ou privadas, com vistas a apoiar os estudos e subsidiar as análises desenvolvidas.
Divergências na divisa vêm desde o fim do século XIX. O Ceará reivindicava o território do município de Grossos, do qual Tibau era parte. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). O jurista Rui Barbosa assumiu a defesa potiguar e saiu vitorioso naquela disputa.
Ceará e Pernambuco: expectativa de solução sem conflito
Diferentemente dos conflitos a oeste e leste do Ceará, na divisa sul, com Pernambuco, ambos os estados organizam estudo de campo para subsidiar uma proposta que deverá ser analisada por suas respectivas casas legislativas. A expectativa é de entendimento.
A questão envolve municípios na região da Serra dos Nogueiras e tem raízes numa mudança feita pelo IBGE no início dos anos 2000, mas que só foi identificada durante o processo eleitoral de 2022, quando a Justiça Eleitoral notificou o município cearense de Salitre sobre alteração em seções de votação, que passaram a ser associadas a Ipubi (PE).
O mesmo acontece com equipamentos de saúde. Foram mapeadas 28 localidades no trecho da divisa, todas vinculadas até aquele momento como sendo do Ceará. Do total, 21 passaram para Pernambuco no mapa do IBGE quando houve alteração.
Na época, foram mapeadas 44 casas de farinha no trecho da divisa, todas vinculadas ao município de Salitre. Considerando a mudança, 25 passaram para Pernambuco.
Ao que tudo indica, Ceará e Pernambuco trabalham conjuntamente para evitar que a questão se torne, de fato, um litígio de terras e trabalham a partir da lógica de adequar as linhas ao que já ocorre na realidade, mantendo escolas, postos de saúde e equipamentos historicamente ligados a um estado, sob a administração desse mesmo estado.