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Como as emendas parlamentares se tornaram foco de crises no Ceará e no Brasil
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Como as emendas parlamentares se tornaram foco de crises no Ceará e no Brasil

Falta de controle sobre emendas parlamentares gera conflito entre STF e Congresso ao passo em que é mecanismo essencial para representação política. Operação da PF envolve deputados cearenses e expõe brechas
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Emendas são um dos corações da atividade parlamentar (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil Emendas são um dos corações da atividade parlamentar

Operação da Polícia Federal colocou o Ceará no centro de uma investigação sobre o desvio de emendas parlamentares. O mecanismo é parte importante do Orçamento da União. Por meio desses valores, deputados federais e senadores destinam verbas aos seus redutos eleitorais, geralmente para a execução de obras e projetos em prefeituras.

Mas foi no meio dessa destinação, que, ainda em 2024, uma apuração da PF apontou o deputado federal cearense Júnior Mano (PSB) como exercendo "papel central" em um esquema de manipulação de eleições municipais em 51 cidades cearenses, por meio da compra de votos e desvio de verbas de emendas parlamentares.

O desdobramento disso se deu na última terça-feira, 8, quando a chamada Operação Underhand cumpriu mandados de busca e apreensão no apartamento funcional do parlamentar em Brasília (DF), em sua residência no Ceará e no gabinete dele na Câmara dos Deputados, onde agentes permaneceram por cerca de seis horas.

No Estado, a ação percorreu Fortaleza, Nova Russas, Eusébio, Canindé e Baixio, e resultou no bloqueio de R$ 54,6 milhões das contas de investigados. Por se tratar de um parlamentar e, assim, ter foro privilegiado, a competência para a condução das investigações é do Supremo Tribunal Federal (STF), onde o caso tramita sob sigilo.

A operação foi autorizada pelo ministro Gilmar Mendes, que também deu aval, a pedido da PF, para a abertura de uma investigação específica voltada à apuração da possível participação de outros agentes políticos com prerrogativa de foro.

Entre os nomes citados na representação enviada à Suprema Corte estão os deputados federais eleitos pelo Ceará Eunício Oliveira e Yury do Paredão, ambos do MDB, e José Guimarães (PT), que é líder do governo Lula na Câmara. Todos negam envolvimento em irregularidades.

A professora Paula Vieira, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pontua que as emendas parlamentares são, historicamente, instrumento de conexão entre deputados e as bases eleitorais, mas que, com o tempo, passaram a operar numa zona de opacidade.

“Por mais que sejam importantes para as bases, a gente não sabe se estão sendo realmente destinadas para elas, por falta de transparência. Isso compromete a representação política e o accountability (responsabilidade do governante ou do gestor público de prestar contas de suas ações, sobre o
que faz, como faz e por que faz)”, afirma Paula, que também é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídias (Lepem-UFC).

O problema de mau uso das emendas é o desafio da forma como algumas são alocadas, especialmente as transferências especiais, conhecidas como "emendas Pix". Isso é o que entende o professor Marilson Dantas, doutor em Contabilidade pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Governança Pública.

"Elas entram no orçamento da prefeitura ou do órgão sem uma destinação específica, sem projeto definido. Então, seu controle fica muito difícil de ser acompanhado pelo governo federal", contextualiza ele, que é ex-integrante da equipe de custos da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).

Marilson também destaca que o crescimento do volume de recursos canalizados por emendas tem impactado diretamente a gestão do orçamento federal. “As emendas são uma ferramenta legítima, no entanto, o montante de recursos e a proporção delas no orçamento global se tornaram tão relevantes que estão, hoje, comprometendo um recurso discricionário", aponta.

O poder de que os parlamentares passaram a dispor, com o volume de dinheiro envolvido e sem precisar de aval do Executivo, está também no origem da atual crise na articulação política do governo, que sofre derrotas diante de um Congresso superpoderoso e que já não é dependente.

No Ceará, o caso reverbera ainda nas eleições de 2026. Mano, Guimarães e Eunício são cotados como pré-candidatos ao Senado. O primeiro tem o apoio de Cid Gomes (PSB), senador que não pretende permanecer na cadeira e cujo nome tem peso no arco de alianças que sustenta o Palácio da Abolição. Já o petista e o emedebista tentam ocupar a segunda vaga aberta no Estado.

“Quando a base governista aparece envolvida em escândalo de corrupção, há um desgaste que pode reverberar nas candidaturas e na hegemonia petista no Ceará”, analisa a cientista política Paula Vieira. Como consequência dessa investigação da PF a frente ampla da direita que tenta se formar no Estado deve explorar politicamente o caso, esgotando discursos de "antipetismo, anticorrupção e antissistema".

De ferramenta de representação a moeda de troca

Para entender como as emendas parlamentares passaram de um instrumento de aproximação com as bases para um espaço suscetível à corrupção e desvio, é preciso olhar para trás. A cientista política Paula Vieira aponta um momento-chave: o escândalo do mensalão, que completou 20 anos neste 2025.

Ela lembra que o caso levou o Congresso a buscar maior autonomia frente ao Executivo, e as emendas passaram a ser um canal para isso. "Ali o Legislativo se sentiu muito preso ao governo. A partir disso, se tornou mais propositivo, com a tentativa de criar um orçamento mais impositivo para garantir suas próprias pautas", elucida.

Esse movimento culminou, anos depois, na institucionalização das emendas impositivas, que obrigam o governo a executar as indicações dos parlamentares. Então, vieram os problemas: falta de transparência e principalmente a perda de controle sobre a aplicação das verbas.

Marilson Dantas, doutor em Contabilidade e professor da Universidade de Brasília (UnB), explica que a principal dificuldade em rastrear os recursos são quando não estão ligados à execução orçamentária, eles são transferidos direto da emenda para o órgão público, por exemplo, para uma prefeitura.

"Esse é o desafio de controle. Parte das emendas, quando são transitadas pelo orçamento, quando estão vinculadas a uma programação orçamentária, tem-se o controle, mas quando elas são feitas direto para o órgão sem uma destinação específica, você perde isso".

Por essa razão, a transparência é o principal passo indicado pelos especialistas para tentar contornar esse cenário.

"A transparência para verificar onde é que deve ser colocado o limite de gastos, porque a gente não tem ideia. Como não há essa transparência, fica complicado da gente observar se, de fato, está sendo encaminhado para um clientelismo ou se está sendo aplicado em conformidade com as demandas das bases eleitorais e das necessidades da população", diz Paula. "Um dos princípios da democracia está na transparência", lembra.

Congresso x STF

Problemas relacionados à transparência e à dificuldade de rastrear a destinação das emendas levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a determinar a suspensão temporária dos repasses no ano passado. A medida provocou um impasse com o Congresso Nacional e acabou afetando também o Executivo, que só conseguiu a aprovação do Orçamento de 2025 em março deste ano.

Para o professor Marilson Dantas, da Universidade de Brasília (UnB), o avanço do Judiciário nesse campo parte de dois pontos e se dá como resposta a uma falha das demais instituições. "Primeiro, ela é demandada pelos próprios atores do Legislativo que estão insatisfeitos. E, por outro espaço, pela sociedade que quer um maior controle. Em paralelo a isso, nós estamos vendo escândalos relacionados à transferência de recursos, investigação da Polícia Federal. Então, o Judiciário está atuando por uma ineficiência ou uma ineficácia do poderes Legislativo e Executivo em estabelecer um processo de controle das emendas", aponta.

O episódio mais recente dessa disputa foi protagonizado pelo ministro Flávio Dino, que determinou a paralisação de parte dos repasses até que regras mais claras de execução fossem estabelecidas. A decisão gerou reação imediata de líderes partidários, que acusaram o Supremo de extrapolar suas funções e "invadir prerrogativas" do Parlamento.

No entanto, para a socióloga Paula Vieira, da Universidade Federal do Ceará (UFC), o papel da Suprema Corte nesse contexto está diretamente ligado à sua função de guardiã da Constituição.

"O processo de envolver o STF na política tem sido cada vez mais intenso nos últimos tempos por conta dos manejos mesmo, se tornou uma estratégia política", inicia. "Agora, no termo das emendas, nós estamos falando de parâmetros constitucionais, parâmetros do Estado de Direito Democrático, que de alguma maneira envolve o STF", pondera.

Ela ressalta ainda que, diante do "conflito muito forte entre Executivo e Legislativo", o Supremo surge como instância de mediação. "O terceiro poder, na nossa divisão dos Poderes, entra para averiguar o que dentro da política, do que está sendo feito politicamente, dentro das disputas políticas, está saindo ou não da ideia de Estado democrático de direito brasileiro".

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