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Por que os Brics incomodam Donald Trump
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Por que os Brics incomodam Donald Trump

Presidente americano ameaça com tarifas nações que se alinharem aos planos do bloco para desafiar a hegemonia do dólar. Apesar do progresso limitado da iniciativa, dezenas de nações ainda estão ansiosas para participar
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Presidente Lula na reunião de cúpula dos Brics (Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP)
Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP Presidente Lula na reunião de cúpula dos Brics

Na carta em que anuncia a tarifa de 50% sobre produtos brasileiros, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dedica o primeiro parágrafo à defesa do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL). O segundo parágrafo trata da liberdade de expressão e plataformas de mídias sociais americanas. Cita também a relação comercial com o Brasil, que qualifica de injusta, ainda que superavitária para os Estados Unidos. Porém, um fator não foi mencionado explicitamente no texto, embora analistas sejam praticamente unânimes em apontar como determinante: o bloco dos Brics.

Trump está dobrando aposta na pressão contra o bloco de economias de rápido crescimento do Brics, incluindo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, alertando que as iniciativas do bloco para minar o domínio do dólar americano ameaça a supremacia econômica dos EUA.

Na véspera do anúncio da tributação sobre o Brasil, líderes do Brics se reuniram no Rio de Janeiro para a cúpula anual do bloco. Enquanto isso ocorria, Trump prometeu, em 6 de julho, impor uma tarifa adicional de 10% a qualquer nação que apoie as "políticas antiamericanas" do grupo, aumentando a pressão sobre as taxas comerciais existentes e as que ameaçou lançar.

A pausa de 90 dias do governo Trump nas tarifas mais altas expirou na quarta-feira passada, 9, e cartas foram enviadas para informar dezenas de países sobre a nova taxa de importação dos EUA. O Brasil teve o mais elevado índice. Embora seja mais comedida do que as tarifas de 100% prometidas em janeiro para os países que "brincam com o dólar", Trump continua inflexível quanto à necessidade de proteger a moeda de reserva mundial.

Em uma década, o Brics aumentou de tamanho, de cinco para 10 membros, incluindo a Indonésia, que aderiu em janeiro. A Arábia Saudita está listada como membro, mas ainda não confirmou o status. O bloco também tem nove países parceiros, enquanto dezenas de outros estão fazendo fila para entrar.

O bloco, apresentado como a alternativa da China para as nações ricas do G7 (Grupo dos Sete), agora representa um quarto da economia global e quase metade da população mundial. "Trump tem um motivo para se preocupar", diz Alicia Garcia-Herrero, pesquisadora sênior do think tank Bruegel, com sede em Bruxelas. "O Brics é claramente antiocidental. Parte de seu mantra é mudar a ordem global."

O Brics recentemente intensificou os esforços para reduzir a dependência do dólar, promovendo o comércio em moedas locais entre os membros. Atingidos pelas sanções e tarifas ocidentais, a Rússia e a China estão liderando o chamado movimento de desdolarização, fechando acordos de energia em rublos e yuans. A Índia, por sua vez, tem pago pelo petróleo russo barato desde 2023 em yuan, rublos e até mesmo no dirham dos Emirados Árabes Unidos.

Ambições maiores, como uma moeda comum lastreada em ouro, apelidada de "Unidade", até o momento foram paralisadas em meio a divergências internas entre os poderosos membros do Brics. A Índia, preocupada com o domínio do yuan da China, rejeitou o plano, enquanto o Brasil, anfitrião da cúpula de 2025, também quer priorizar o comércio em moeda local em vez de uma moeda unificada.

"A Índia, juntamente com o Brasil, está tentando equilibrar a mensagem antiocidental do Brics, que é dominado pela China e pela Rússia", afirma Garcia-Herrero, que também é economista-chefe (Ásia-Pacífico) do banco de investimentos francês Natixis.

De acordo com o site do Brics, dos cerca de 33 trilhões de dólares (R$ 180 trilhões) de comércio global realizado em 2024, o comércio intra-Brics representou apenas 3%, ou cerca de 1 trilhão de dólares. "A maior parte do comércio mundial ainda é liquidada em dólares e outras moedas tradicionais", explica o economista Herbert Poenisch. "Será preciso muito para destronar isso."

A moeda americana é usada em 90% das transações globais e em 59% das reservas cambiais, o que leva vários economistas a argumentar que a desdolarização continua sendo uma ameaça distante. Eles acreditam que qualquer alternativa do Brics será prejudicada pelos controles de capital do yuan, pela volatilidade do rublo e pela relutância de alguns membros em abandonar o dólar.

Com a recente adesão do Egito, da Etiópia, do Irã, dos Emirados Árabes Unidos e da Indonésia, e com novas nações parceiras ou afiliadas, como a Argélia e a Malásia, o Brics está claramente em um caminho de rápido crescimento. Muitos países são atraídos para o bloco por motivos pragmáticos, buscando uma ordem mundial multipolar menos dominada pelo Ocidente. Eles acreditam que o Brics ampliará a voz do Sul Global no cenário mundial.

Aqueles que temem as sanções ocidentais, como o Irã e a Rússia, contam com o Brics para ajudar a proteger suas economias por meio do Brics Pay e do Brics Bridge — alternativas planejadas para o sistema de mensagens de pagamento ocidental, o SWIFT. Outros, incluindo a Etiópia e o Egito, buscam financiamento para o desenvolvimento sem as amarras políticas que geralmente acompanham a ajuda ocidental. Mas a última ameaça de Trump pode fazê-los pensar duas vezes.

"De repente, fazer parte do Brics passa a ter um custo", diz Garcia-Herrero. "Isso provavelmente desencorajará alguns, especialmente os países mais pobres."

No entanto, apesar de seu crescente número de membros e de suas promessas grandiosas, o Brics tem tido dificuldade para transformar a ambição em ação. O bloco carece de coesão institucional e sofre com profundas divisões geopolíticas, principalmente entre a Índia e a China.

Os esforços para criar instituições financeiras alternativas também têm sido cautelosos e de escopo limitado. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), apresentado como um rival do Banco Mundial, aprovou até o momento 39 bilhões de dólares em empréstimos, em comparação com os mais de 1 trilhão de dólares do Banco Mundial.

Os líderes do Brics estão percebendo rapidamente que expansão não é igual a influência. Sem visão estratégica clara, uma coordenação mais forte e alternativas tangíveis, alguns observadores acreditam que o bloco corre o risco de se tornar um clube simbólico em vez de uma força transformadora.

"Trump não deveria se preocupar", avalia o economista Herbert Poenisch. "O Brics ainda está nos estágios iniciais, e superar as muitas diferenças de prioridade será uma tarefa difícil."

Apesar das muitas diferenças, os líderes do Brics assumiram posição firme sobre as tarifas de Trump durante a cúpula no Brasil. Em declaração publicada na segunda-feira, 7, os líderes criticaram as sanções unilaterais e as tarifas protecionistas, sem citar Trump diretamente.

O bloco alertou que tais medidas "distorcem o comércio global" e violam as regras da OMC. Expandindo a partir de um fórum principalmente econômico, os líderes enfatizaram a cooperação em governança de inteligência artificial (IA), mudanças climáticas e saúde global, além de denunciar conflitos globais.

Os líderes do Brics disseram que os ataques ao Irã do mês passado foram uma "violação do direito internacional", sem mencionar os EUA ou Israel. Também reafirmaram o apoio à criação de um Estado palestino e denunciaram o uso da "fome como arma" em Gaza.

A declaração evitou criticar a Rússia diretamente, refletindo uma abordagem cautelosa devido à participação da Rússia no bloco, entretanto condenou os ataques da Ucrânia à infraestrutura russa e pediu um "acordo de paz sustentável".

Os líderes do Brics também reafirmaram compromisso com o multilateralismo, o direito internacional e as reformas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluindo assentos permanentes para o Brasil, a Índia e uma nação africana. (DW)

Trump entrou em acordo sobre tarifas para China
Trump entrou em acordo sobre tarifas para China

O que Trump realmente pretende ao mirar o Brasil com tarifas

As tarifas anunciadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a produtos brasileiros envolvem mais do razões econômicas. O movimento revela a transformação do comércio internacional em ferramenta de punição ou recompensa para governos alinhados à doutrina da Casa Branca.

"O que a gente observa, principalmente desde o primeiro mandato do Trump, é um uso mais temático dessa ferramenta, tanto da pressão comercial, quanto da restrição às relações de investimento dos Estados Unidos", diz Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV.

"Claro que, formalmente, não se trata de uma sanção, mas a gente poderia colocar essas tarifas no mesmo patamar de efeitos das sanções, que tentam gerar pressão política. Então, elas são ferramentas, de fato, políticas, mais do que ferramentas econômicas. E essa transformação vem ocorrendo paulatinamente à medida que os Estados Unidos vão tendo mais espaços de resistência à sua hegemonia na política internacional", afirma.

Se o aumento das tarifas passa a ser utilizado como arma geopolítica, há dúvidas se o mundo continuará a valorizar a diplomacia comercial — ações coordenadas por um Estado, por meio de seus órgãos diplomáticos e comerciais, para promover seus interesses econômicos no exterior.

Essas ações envolviam negociações de acordos bilaterais e multilaterais, abertura de mercados, proteção de empresas nacionais, atração de investimentos estrangeiros e defesa de exportadores diante de barreiras tarifárias e regulatórias, além de órgão reguladores, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo.

De acordo com Carolina Silva Pedroso, professora de relações internacionais da Unifesp, esses instrumentos surgiram no passado por iniciativa dos Estados Unidos, em contexto de bipolaridade com a União Soviética, como forma de fazer prevalecer a sua visão mais liberal sobre a economia mundial, com a expectativa de quanto mais livre o comércio, os países estariam menos propensos a sucumbir ao bloco socialista.

"O regime de comércio internacional construído no pós-2ª Guerra Mundial e que teve o seu ápice na criação da OMC, cujo objetivo era derrubar as barreiras ao livre-comércio, está fortemente prejudicado", diz.

Trump também usou as redes sociais, palco onde a extrema direita é forte nos dois países, para reclamar do suposto cerceamento da liberdade das big techs. Esse estímulo ao engajamento virtual representa o vínculo do governo Trump com as redes sociais, como um dos pilares de sustentação do governo, e o debate que o Brasil vem tentando sobre a atuação dessas empresas.

"O movimento brasileiro de discutir esses limites atinge diretamente o núcleo do governo Trump. E, tendo conhecimento do ativismo brasileiro em tais plataformas, sem dúvidas a articulação da extrema direita nas redes era um efeito colateral desejado, sobretudo em um contexto maior de desempenho sofrível do governo brasileiro e das esquerdas, no geral, nesse mesmo ambiente", diz Carolina Silva Pedroso.

Além disso, além do alinhamento ideológico com o bolsonarismo e do movimento das big techs, o anúncio tarifário ecoa a disputa dos Estados Unidos com a China pela hegemonia da influência na América Latina, região onde o Brasil exerce presença importante.

"A zona de influência 'natural' dos Estados Unidos tem se tornado cada vez mais porosa a potências externas à região, o que, na lógica geopolítica, também indica esse declínio da hegemonia estadunidense", afirma Pedroso.

O governo Trump, porém, deverá encontrar dificuldades para retomar espaço. "É muito difícil pensar que, mesmo com toda essa pressão que os Estados Unidos possam exercer, você consiga substituir de fato a China. Então, por isso que eu sou um pouco cético da capacidade dos Estados Unidos de retomarem plenamente essa liderança que um dia já tiveram aqui na região", afirma Pedro Brites, da FGV. (DW)

O governo de Trump se recusou a apoiar a proposta de ingresso do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
O governo de Trump se recusou a apoiar a proposta de ingresso do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

Cronologia dos laços entre o trumpismo e o bolsonarismo

Desde o princípio, o bolsonarismo buscou não apenas inspiração no trumpismo, mas também sua aprovação, convergindo uma agenda conservadora, estratégias de comunicação e ecoando narrativas comuns, como o antiglobalismo. Para o cientista político e professor da FGV Guilherme Casarões, a conexão entre o bolsonarismo e a contraparte americana acontece em três movimentos: emulação, articulação e internalização.

Eleição de Trump em 2016 abre elo com Brasil

O vínculo tem início em 2016, quando Trump é eleito presidente pela primeira vez, avalia Casarões. Na campanha, o americano começa a defender um conjunto de pautas que passam a ser incorporadas no repertório de Bolsonaro, cuja futura candidatura à época ainda era incipiente.

Olavo de Carvalho

Naquele momento, o guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho passou a despontar como ponto de contato entre a agenda política trumpista e a realidade brasileira, além de fomentar teorias da conspiração online que imitavam aquelas que circulavam nos EUA.

"Trump dos trópicos"

"(Bolsonaro) vai aos Estados Unidos em 2017, não se encontra com Trump, mas já começa a surgir aquela narrativa de que Bolsonaro é o 'Trump dos trópicos'", afirma Casarões.

Estratégia articulada entre movimentos

Em novembro de 2018, o deputado Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins emergem como elo central da ponte entre o bolsonarismo e o trumpismo. Os brasileiros foram aos EUA para articular conexões entre o governo Trump e a futura gestão de Bolsonaro na chefia do Palácio do Planalto. Do lado americano, o estrategista trumpista Steve Bannon, que mantinha relações amistosas com Olavo de Carvalho, declarou apoio a Bolsonaro e se tornou o elo dos brasileiros com movimentos conservadores nos EUA. "Aí começa a aparecer muito claramente uma estratégia mais articulada", diz Casarões.

Cúpula conservadora

Parte desta mobilização, por exemplo, resultou na realização da Cúpula Conservadora das Américas, em Foz do Iguaçu, com a presença de Eduardo Bolsonaro, e o consequente lançamento do Prosul, uma alternativa conservadora à Unasul.

Visita após a posse

A eleição de Bolsonaro e Trump sob as mesmas bandeiras também ajudou a consolidar a ligação entre os movimentos. Em 2019, Bolsonaro foi aos EUA como primeiro destino após eleito e passou a fazer um governo alinhado e elogioso ao do americano. Um vídeo da visita em que presta continência à bandeira americana viralizou e foi defendido por seus apoiadores, também entusiastas das políticas de Trump.

A tática de transnacionalização do bolsonarismo

A posterior pandemia da Covid-19 contribui para sedimentar a reótica comum entre trumpistas e bolsonaristas, muitas alimentadas pelos próprios líderes, como o ataque à vacinação contra a doença, ao lockdown e a defesa de medicamentos sem comprovação científica.

Capitólio 6/1 e Praça dos Três Poderes 8/1

O ex-presidente brasileiro chegou a ir aos Estados Unidos, onde discursou em eventos conservadores. O espelho brasileiro do movimento americano chega ao seu auge quando bolsonaristas invadem a sede do governo em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Quando o mesmo ocorreu em Washington, em 6 de janeiro de 2021, Bolsonaro chegou a apoiar Trump e dizer que o sistema eleitoral dos EUA era fraudado. Na ocasião, disse ser "ligado" ao americano.

Retaliações

Nos anos seguintes, Eduardo Bolsonaro liderou diversas delegações bolsonaristas para discutir abordagens junto a congressistas americanos e participar de eventos conservadores. Dois deles, Maria Elvira Salazar e Rich McCormick chegaram a pedir que Trump sancione o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, reforçando a agenda bolsonarista anti-Judiciário.

"Depois que Lula foi eleito, havia uma percepção de que se o bolsonarismo conseguisse manter viva essas associações com Trump, e Trump fosse eleito de novo, isso poderia ser um caminho para que Bolsonaro pudesse voltar para o jogo político eleitoral", avalia Casarões.

Estratégias casadas

No Brasil, a importação de práticas trumpistas também foi internalizada por parlamentares, que passaram a defender uma agenda pautada nas fileiras do partido Republicano dos EUA. A liberdade de expressão virou fio condutor entre os movimentos, que também rejeitam a responsabilização das big techs, por exemplo.

A articulação bolsonarista culminou em uma publicação de Trump na segunda-feira da semana passada, que atacou o "terrível tratamento" dado pelo Brasil a Jair Bolsonaro e, na quarta-feira, aplicou tarifas de 50% sobre o país.

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