As big techs são dominantes não apenas na tecnologia, mas na capacidade de influenciar os rumos da política e da economia ao redor do mundo. Nas últimas semanas, o Brasil se viu imerso no tema devido, especialmente, ao confronto entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Donald Trump, dos Estados Unidos.
A Casa Branca anunciou que aplicará tarifas de 50% sobre produtos brasileiros exportado aos EUA a partir do próximo 1º de agosto. A decisão foi justificada pelo que foi apontado como perseguição judicial contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Um aspecto importante é a articulação do bloco dos Brics. E um pano de fundo fundamental é a atuação das plataformas digitais, chamadas big techs.
No início deste julho, Trump ameaçou com tarifas de 10% contra qualquer país que se alinhar a "políticas antiamericanas" do Brics. Isso se deu em meio à reunião de cúpula dos países do bloco no Rio de Janeiro, na qual foi aprovada sugestão para que Google, Meta e OpenAI paguem direitos autorais, no treinamento de modelos de inteligência, a conteúdos que são protegidos.
Já no primeiro ato da reciprocidade anunciada por Lula em relação à taxação de Trump, o chefe do Poder Executivo brasileiro informou que cobrará imposto das empresas americanas digitais.
No meio desse confronto, tem-se, de um lado, países e blocos econômicos buscando estabelecer limites ao poder, em constante ascensão, das gigantes da tecnologia. O Brasil, e especificamente o Supremo Tribunal Federal (STF), estão na vanguarda desse processo. Do outro lado, as plataformas resistem as tentativas de regulação, especialmente em mercados com instituições frágeis ou legislação ainda em desenvolvimento.
“Estamos falando de empresas com poder comparável ao de Estados-nação”, resume o advogado Alexander Coelho, especialista em Direito Digital, Inteligência Artificial e Cibersegurança. Conforme explica, elas dominam fluxos de informação, ditam regras econômicas e influenciam até comportamentos eleitorais. Não por acaso, reagem com força a qualquer tentativa de regulação que ameace seus modelos de negócio.
Na prática, o poder das bigs techs passa também pelo controle de infraestrutura. Helena Martins, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM-UFC), cita como exemplo a participação crescente de corporações como Amazon e Meta no setor de cabos submarinos.
“É muito perigoso que tenhamos toda a cadeia da internet sendo controlada por pouquíssimas corporações, e em todo o mundo”, alerta. A concentração, segundo explica a pós-doutora em Economia, cria barreiras para o surgimento de novos agentes e limita a concorrência.
Antes do embate Lula versus Trump, recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alterou o Marco Civil da Internet e reacendeu o debate sobre o quanto o Brasil está disposto a mergulhar nessa tema. Em suma, a Corte decidiu que redes sociais podem ser responsabilizadas por postagens ilegais feitas por seus usuários. Na ocasião, a maioria dos ministros julgou inconstitucional artigo que limitava a responsabilidade das plataformas a menos que houvesse decisão judicial.
Até então, as big techs não eram responsabilizadas civilmente no Brasil por mensagens com discurso de ódio, ofensas e outros conteúdos ilegais publicados por terceiros. Agora, as plataformas devem responder por conteúdos ilícitos que permaneçam no ar mesmo após notificação, sem necessidade de ordem judicial.
Se a plataforma for notificada e não remover o conteúdo, e a Justiça mais adiante entender que ele era ilegal, a rede poderá ser punida. Apesar do avanço, Martins aponta “lacunas que a decisão gera e que deveriam ser resolvidos por uma legislação mais abrangente, aprofundada e detalhada”. Um exemplo citado por ela é a desproporcionalidade de aplicar a mesma regra de moderação a redes sociais e a espaços como a Wikipédia.
“O mais interessante do Supremo é exatamente afirmar a necessidade de regulação de plataformas”, entende. Outra preocupação é a de que a decisão não gere uma retirada massiva, ainda mais no contexto de ausência de espaços para questionamento das opções de moderação das plataformas, de acompanhamento por meio da regulação.
O posicionamento do Brics, por sua vez, reflete sobre propriedade intelectual no ambiente digital. Para o advogado Iago Capistrano, secretário-geral da Comissão de Direito Digital, Inovação e Startups da seccional cearense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE), a sugestão do bloco é “viável”, contudo enfrenta dificuldades.
“Na prática, há desafios técnicos, como a identificação e rastreamento de uso de conteúdos; econômicos, na quantificação de royalties; e políticos, resistência de empresas globais. Mas, a iniciativa sinaliza um movimento global crescente por justiça digital”, avalia.
Capistrano indica ainda que a sinalização dos países do chamado Sul Global pode influenciar fóruns como G20 e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Coelho, por sua vez, pondera que a defesa do Brics não é novidade e carece de alguns respostas.
“Países como Austrália e Canadá já avançaram nesse sentido. O desafio está na implementação: quem define o valor? Qual será o critério de remuneração? Como evitar que a obrigação recaia apenas sobre as plataformas maiores, criando distorções no ecossistema?”, questiona. O especialista em IA também aponta que a ausência de limites às bigs techs "não é neutra”. “Ela consolida o poder das plataformas sobre os próprios mecanismos de informação e regulação”, diz Coelho.
Pix como alvo dos EUA
Na investigação comercial aberta pelos Estados Unidos na terça-feira, 15, contra o Brasil, são citadas práticas potencialmente "desleais" em relação a redes sociais. Outro alvo são "meios de pagamentos eletrônicos criados pelo governo" – a única ferramenta do tipo é o Pix. Isso também passa pelas plataformas digitais.
O Pix avançou sobre fatia de mercado dominado por gigantes dos cartões de crédito como Visa e Mastercard, e porsistemas de pagamento eletrônico como Google Pay, Apple Pay e WhatsApp Pay — todos dos Estados Unidos.
O Brasil foi o primeiro país do mundo em que o serviço de pagamento WhatsApp Pay, da Meta, foi lançado, em junho de 2020. A ferramenta permite pagamentos por meio dom aplicativo de mensagens. Na semana seguinte, o Banco Central e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) suspenderam o serviço. Houve entendimento de que poderia ameaçar a concorrência e ampliar o domínio de mercado da Cielo, responsável pela operação técnica.
O WhatsApp Pay foi autorizado em março de 2021. Àquela altura, o Banco Central havia lançado o Pix, em novembro de 2020, e o serviço já estava consolidado. No fim de 2024, era usado por 76,4% dos brasileiros. Tudo isso ocorreu quando Bolsonaro era presidente.
Dessa forma, como motivação para a guerra comercial de Trump, nos possíveis próximos passos dos Estados Unidos e na resposta brasileira, as plataformas digitais são protagonistas.
E o Congresso?
Mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que alterou o Marco Civil da Internet, o Congresso Nacional não conseguiu retomar a discussão com profundidade. Para especialistas ouvidos pelo O POVO, isso se deve não apenas à complexidade técnica do tema, mas ao peso político e econômico das próprias plataformas.
"O desafio não é técnico, é político", resume Alexander Coelho, especialista em Direito Digital, IA e Cibersegurança. "Já temos capacidade jurídica e tecnológica para impor obrigações, garantir transparência algorítmica, exigir moderação de conteúdo. O que falta é vontade política", observa.
Helena Martins, professora do PPGCOM-UFC, pondera que, de fato, o STF não teria condições de regular com toda a complexidade que esse setor demanda e que, portanto, cabe ao Congresso fazer isso.
A pesquisadora lembra que o projeto de lei nº 2630, conhecido como PL das Fake News, foi engavetado e nenhuma proposta avançou desde então. "Há uma série de entraves que refletem, inclusive, a força das big techs atuando contra a regulação".
Na prática, a ausência de regras específicas coloca o Brasil em uma posição vulnerável. Enquanto isso, o poder das plataformas se mantém. "Se a gente quiser promover inovação, liberdade de expressão e concorrência, é fundamental que tenhamos políticas públicas que sejam capazes de prover esses grandes serviços infraestruturais, para que outros agentes possam utilizá-los de forma compartilhada", explica Martins.
Para ela, que é doutora em Comunicação, "não basta apenas conter o poder e a forma de atuação das big techs, é preciso propor alternativas tecnológicas que sejam baseadas em código livre, que não sejam coletoras de dados pessoais, nem baseadas apenas na publicidade".
"São necessárias alternativas públicas comunitárias que ofereçam à população brasileira um outro modelo de plataformas", considera.
Soberania digital
A concentração de dados nas mãos de grandes plataformas não representa apenas um problema concorrencial ou econômico. É, sobretudo, uma questão de soberania. Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pelo O POVO, que notam uma forma de influência política, por parte das gigantes da tecnologia, cada vez mais sofisticada e difícil de conter.
“Quem controla os dados controla o comportamento. E quem controla o comportamento influencia o consumo, a decisão política e até mesmo o imaginário coletivo. A concentração extrema de dados nas mãos de poucas empresas estrangeiras torna os países reféns, tanto no plano econômico quanto no geopolítico. É um risco de soberania digital”, elucida o advogado Alexander Coelho, especialista em Direito Digital, IA e Cibersegurança.
Iago Capistrano, secretário-geral da Comissão de Direito Digital, Inovação e Startups da OAB-CE, explica as big techs exercem “poder significativo” por controlarem fluxos de informação (moderação e algoritmos); disputarem publicidade online (essencial para comunicação política); oferecerem produtos e serviços core (e-commerce, pagamentos, comunicações).
“Além disso, dispõem de dados em larga escala, que reforçam seu poder econômico, tornando-se atores industriais com capacidade de moldar debates públicos e estruturas mercadológicas”.
Ele também aponta que a acumulação de dados pelas big techs pode reduzir a autonomia econômica, tendo em vista a dependência de infraestrutura estrangeira; distorcer debates internos com a manipulação de algoritmos ou priorização de conteúdo; aumentar vulnerabilidades geoeconômicas com uso político dos dados, e interferência eleitoral.
"Balancear inovação com direitos requer normatização equilibrada, fiscalização qualificada e participação multissetorial, garantindo que o futuro digital seja democrático, competitivo e justo", considera Capistrano.
Limites possíveis para big techs