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Fome por inanição se alastra em Gaza e pressiona Israel, que nega responsabilidade
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Fome por inanição se alastra em Gaza e pressiona Israel, que nega responsabilidade

ONU, ONGs. Vaticano e vários países, principalmente a França, aumentam pressão contra israel, no momento em as negociações não avançam
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Pessoas carregam sacos de farinha retirados de um caminhão que transportava alimentos, em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, em 22 de julho de 2025 (Foto: AFP)
Foto: AFP Pessoas carregam sacos de farinha retirados de um caminhão que transportava alimentos, em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, em 22 de julho de 2025

O agravamento da situação de fome em massa, escassez de água e falta de medicamentos na Faixa de Gaza aumentou a pressão sobre Israel ao longo desta semana. As Nações Unidas, países da União Europeia, o governo brasileiro, organizações internacionais e até o Vaticano cobraram o governo de Benjamin Netanyahu, em momento de problemas políticos também internos.

Israel enfrenta pressão internacional crescente devido à situação humanitária catastrófica no território palestino, onde mais de 2 milhões de pessoas enfrentam as consequências de mais de 21 meses de um conflito devastador.

Entidades como o Comitê Internacional de Resgate e o Programa Mundial de Alimentos apontam que aproximadamente de 500 mil palestinos, de uma população de 2 milhões, estão em insegurança alimentar e outros 100 mil apresentam inanição. Um em cada três habitantes chega a ficar vários dias sem comer e teme-se o agravamento do quadro.

Diversos países da União Europeia insistiram por "medidas concretas" do bloco para a situação humanitária classificada como "intolerável", disseram fontes diplomáticas. Em carta aberta, cerca de 40 embaixadores da UE pediram "sanções seletivas" contra "ministros, funcionários, comandantes militares" e "colonos israelenses violentos" acusados de "crimes de guerra".

O golpe mais duro para Israel foi o anúncio pela França de que reconhecerá o Estado palestino durante a Assembleia Geral da ONU, marcada para setembro em Nova York. Até o momento, pelo menos 142 países reconheceram o Estado palestino. Estados Unidos e Israel se opõem firmemente a essas iniciativas diplomáticas.

O vice-primeiro-ministro israelense, Yariv Levin, classificou a decisão como "uma mancha negra na história francesa e uma ajuda direta ao terrorismo". Levin, que também é ministro da Justiça, afirmou que a "decisão vergonhosa" da França significa que agora é "o momento de aplicar a soberania israelense" na Cisjordânia, território palestino ocupado por Israel desde 1967.

Em maio de 2024, Irlanda, Noruega e Espanha anunciaram o reconhecimento, seguidas pela Eslovênia em junho. A França, como membro do Conselho de Segurança da ONU, tem peso diplomático especial. Mas entre as grandes potências europeias não há consenso: a Alemanha, por exemplo, considera que um reconhecimento neste momento seria um "mau sinal".

No Brasil, o governo anunciou que se unirá à demanda da África do Sul contra Israel por genocídio perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), ao lado de países como Bolívia, Colômbia, Líbia, Espanha e México.

Também nesta semana, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, condenou  o "horror" na Faixa de Gaza, devastada pela guerra. "Basta olhar para o horror que se desenrola em Gaza, com um nível de morte e destruição sem precedentes na história recente. A desnutrição está aumentando. A fome está batendo em todas as portas", disse ele em uma reunião do Conselho de Segurança.

"E agora estamos testemunhando a agonia de um sistema humanitário baseado em princípios humanitários", continuou, sem mencionar a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), apoiada pelos Estados Unidos e por Israel, com a qual a ONU se recusa a trabalhar e cujas distribuições levaram a cenas caóticas e mortais.

Além disso, mais de 100 ONGs alertaram nesta semana que um cenário de "fome em massa" se propaga na Faixa de Gaza e ressaltaram que os próprios colegas sofrem com a escassez de suprimentos.

As 111 organizações signatárias do comunicado, incluindo Médicos Sem Fronteiras (MSF), Save the Children e Oxfam, alertaram: "Nossos colegas e aqueles a quem servimos estão morrendo lentamente. Enquanto o cerco do governo israelense causa fome entre a população da Faixa de Gaza, os colaboradores se somam às mesmas filas para receber alimentos, correndo o risco de serem baleados apenas por tentarem alimentar suas famílias."

Os grupos pediram a negociação imediata de uma trégua, a abertura dos postos fronteiriços e o livre fluxo de ajuda por meio dos mecanismos da ONU, e não pela GHF.

"É um sofrimento alimentar meus filhos. Tenho que arriscar minha vida para levar um saco de farinha para eles", disse Mohamed Abu Jabal, um palestino deslocado em Beit Lahia, que bateu a cabeça na roda de um caminhão enquanto coletava a ajuda.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou na quarta-feira que "grande parte" da população de Gaza sofre de fome.

Um hospital de Gaza informou na terça-feira que 21 crianças morreram de desnutrição ou fome no intervalo de 72 horas. No Hospital Naser, no sul de Gaza, imagens da AFP mostraram pais chorando sobre o corpo do filho de 14 anos, Abdul Jawad al Ghalban, morto de fome. Seu corpo esquelético acabava de ser enrolado em um saco branco para cadáveres.

"As crianças caem ao caminhar por falta de comida", afirmou Salma Al Qadumi, cinegrafista da AFP, ao falar de três sobrinhos, de entre quatro e 12 anos.

As agências de notícias AFP, AP e Reuters e a emissora britânica BBC instaram Israel a "autorizar a entrada e saída de jornalistas em Gaza", ao mesmo tempo que se disseram "profundamente preocupadas pelo fato de que, agora, a fome ameaça sua sobrevivência".

Na quinta-feira, 24, o enviado dos Estados Unidos Steve Witkoff reconheceu que as negociações em Doha para um cessar-fogo na Faixa de Gaza fracassaram, e culpou o movimento palestino Hamas por sua "postura egoísta".

O porta-voz do governo israelense, David Mencer, disse não haver fome causada por Israel. "Trata-se de uma escassez provocada pelo Hamas".

O Exército israelense nega ter bloqueado o fornecimento de alimentos. "Não identificamos um momento de fome, mas entendemos que algo precisa ser feito para estabilizar a situação humanitária", disse um alto funcionário de segurança ao jornal Times of Israel sob condição de anonimato.

No comunicado, as organizações humanitárias indicaram que toneladas de ajuda humanitária intacta estão em armazéns fora do território e até mesmo dentro dele, mas que estão sendo impedidas de entregá-la.

"Os palestinos estão presos em um ciclo de esperança e dor, esperando por assistência e tréguas, apenas para acordar em condições piores", observaram os signatários. (AFP)

Contexto

Israel e Hamas participam desde 6 de julho em negociações indiretas em Doha para tentar acabar com quase dois anos de conflito.

O conflito eclodiu em 7 de outubro de 2023 com o ataque do Hamas contra Israel, que resultou na morte de 1.219 pessoas, a maioria civis, segundo levantamento baseado em dados oficiais.

A campanha militar israelense no território palestino matou mais de 59,1 mil palestinos, a maioria civis, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas. (AFP)

Vaticano muda o tom com Israel após ataque contra igreja em Gaza

O ataque do Exército israelense contra a única igreja católica de Gaza levou o Vaticano a mudar seu tom em relação a Israel, denunciando diretamente sua responsabilidade, em contraste com a tradicional reserva diplomática da Santa Sé.

Três pessoas morreram em um ataque de um tanque israelense contra a igreja da Sagrada Família na cidade de Gaza, em 17 de julho, provocando forte indignação da comunidade internacional e comoção entre líderes religiosos de diferentes denominações.

No domingo, o papa Leão XIV pediu o fim da "barbárie" da guerra em Gaza e do "uso cego da força", denunciando o "ataque do exército israelense" e marcando um ponto de inflexão após mais de dois anos de constantes apelos à paz.

Além da "consciência do que está acontecendo em Gaza, para os cristãos há também o fato de que isso está acontecendo em uma terra santa", analisa François Mabille, diretor do Observatório Geopolítico de Religião, apontando uma mudança da opinião católica em geral.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, telefonou para o papa e disse que "lamenta profundamente" esse "disparo indireto", reconhecendo um "erro". Netanyahu anunciou que Israel abrirá investigação.

Na sexta-feira, em uma entrevista para a televisão pública italiana Rai 2, o cardeal Pietro Parolin, número dois do Vaticano, sugeriu que este ataque poderia ter sido intencional, e pediu a Israel que leve a público as conclusões da investigação.

O cardeal Pierbattista Pizzaballa, patriarca latino de Jerusalém, realizou, na sexta-feira, uma rara visita a Gaza para acompanhar os feridos e presidiu, no domingo, a missa para a igreja da Sagrada Família, como sinal da determinação das autoridades cristãs de permanecer no local.

"Dizem que foi um erro, ainda que todos aqui acreditem que não", disse o cardeal ao jornal italiano Corriere della Sera.

De acordo com Mabille, a evolução da posição da Santa Sé está em "respostas mais coordenadas e organizadas" entre os diferentes níveis, do local ao internacional.

No domingo, o papa americano instou a comunidade internacional a "respeitar o direito humanitário e a obrigação de proteger os civis, assim como a proibição da punição coletiva e do uso indiscriminado da força e do deslocamento forçado das populações".

"Ele lista quatro direitos humanitários fundamentais, apontando-os como violados pelo governo de Netanyahu", detalha Mabille, destacando o vocabulário do novo papa "baseado em categorias jurídicas".

Embora pareça prematuro descrever esse episódio como um ponto de virada, ele faz parte de "relações difíceis, tanto conjunturais quanto estruturais" entre os dois Estados, insiste.

O Vaticano, que reconhece desde 2015 o Estado da Palestina, apoia a solução de dois Estados e defende um status internacional especial para Jerusalém, com acesso livre e seguro aos locais sagrados.

A relação bilateral com Israel se deteriorou desde 7 de outubro de 2023, com pronunciamentos do papa Francisco, que criticou "a arrogância do invasor na Palestina" e mencionou acusações de "genocídio" em Gaza.

Cenário

No terreno, continuam os bombardeios e disparos israelenses, e a Defesa Civil de Gaza relatou pelo menos 40 mortos, incluindo crianças e pessoas que aguardavam a distribuição de ajuda. Após impor à Gaza um cerco total em outubro de 2023, Israel impôs novamente um bloqueio ao território costeiro palestino no início de março, que aliviou parcialmente no fim de maio

Jornalista da AFP conta rotina diante do risco de fome enquanto cobre a guerra

"Todos os dias caminho entre 14 e 15 quilômetros" sob um calor sufocante para coletar informações na Faixa de Gaza, em guerra, onde conseguir alimentos se tornou extremamente difícil, conta Youssef Hassouna, jornalista de vídeo da AFP.

"Esta manhã percorri cerca de 25 quilômetros ida e volta para fazer reportagem", relata.

Mais de 21 meses de guerra entre Israel e o movimento islamista palestino Hamas deixaram a Faixa de Gaza em ruínas, provocaram o deslocamento de quase toda a população, que também sofre graves carências de alimentos e outros produtos básicos.

Para Hassouna, de 48 anos, esses árduos périplos se tornaram "muito, muito difíceis".

"Eu costumava trocar de sapatos a cada seis meses, mas agora gasto um par por mês", afirma.

Quer esteja filmando um caótico tumulto em um ponto de ajuda humanitária ou as consequências sangrentas de um bombardeio, Hassouna explica que as privações de alimentos, água potável e atendimento médico complicam ainda mais seu trabalho para cobrir este conflito devastador.

Hassouna, que vive na Cidade de Gaza, ressalta que a principal dificuldade é conseguir comida suficiente para ele e sua família.

Em quase dois anos de guerra, perdi mais de 40 quilos. "Pesava cerca de 110 quilos, hoje entre 65 e 70 quilos", relata.

O agravamento da crise alimentar fez com que os preços dos poucos alimentos disponíveis disparassem, tornando os produtos básicos inacessíveis para muitos habitantes.

"É extremamente difícil conseguir comida em Gaza. E quando está disponível, os preços se multiplicam por 100", conta.

O quilo das lentilhas passou de três shekels (5,01 reais) para 80 shekels (cerca de 133 reais), e o preço do arroz multiplicou por 20, disse.

"O acesso à água é igualmente complicado, seja doce ou salgada", acrescenta. "As crianças têm que fazer fila durante quatro, cinco, seis ou até sete horas para conseguir", afirma.

Além disso, observe que o trabalho jornalístico em meio à guerra às vezes gera tensões com outros palestinos em Gaza, que temem ser alvo de represálias israelenses contra os jornalistas. (AFP)

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