As eleições municipais de 2024 no Ceará registraram um salto preocupante na atuação de facções criminosas em relação ao pleito de 2020. A presença de grupos organizados cresceu em número de municípios, formas de atuação e grau de influência sobre o processo eleitoral. Segundo levantamento do O POVO, ao menos 12 cidades cearenses foram alvo de investigações por coação a eleitores, financiamento ilícito de campanhas, extorsões a candidatos e ameaças a adversários políticos.
Essa escalada levou o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) a colocar a atuação de faccionados como uma das principais ameaças ao processo democrático, ao lado da disseminação de fake news. O alerta foi reforçado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), do Ministério Público do Ceará (MPCE), que estruturou redes de investigação para rastrear candidaturas suspeitas de envolvimento com o crime organizado.
Em comparação com 2020, quando já havia sinais do problema em cidades como Maranguape, Redenção, Santa Quitéria, Fortaleza e no Sertão Central, o cenário de 2024 foi significativamente mais grave. A ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), chegou a citar o Ceará como um dos estados que mais preocupavam a Corte por conta do avanço de facções na política.
Este ano, dois prefeitos foram presos: Braguinha (PSB), de Santa Quitéria, e Luan Dantas (PP), de Potiretama. Ambos negam as acusações e recorrem.
Roberto Filho (PSDB), de Iguatu, também teve contra ele decisão pela cassação, que foi revista pelo mesmo juiz nessa segunda-feira, 28.
Ameaças foram registradas em Sobral, onde ocorreu ainda cobrança de "pedágio", na qual candidatos tinham de pagar para fazer campanha em alguns lugares. Situação também observada em Fortaleza. Na Capital, candidatos que não pagaram foram ameaçados e houve até comitê que precisou mudar de enfereço. Em Caucaia, vários candidatos foram alvos e houve dezenas de prisões.
Nessa segunda-feira, O POVO+ lançou o documentário Guerra sem Fim: Facção e Política. A produção aborda a crescente influência do crime organizado na política do Ceará, explorando as conexões perigosas entre facções e o poder político.
A atuação da Justiça Eleitoral e dos órgãos de segurança foi intensificada em 2024, com ações coordenadas entre TRE-CE, MPCE, Polícia Civil, Polícia Federal e Gaeco. Diversos processos estão em andamento ou já resultaram em cassações e prisões, mas o avanço das facções sobre o território eleitoral cearense exige mecanismos mais robustos de prevenção, fiscalização e punição.
O histórico recente mostra que, além da violência física, os grupos criminosos vêm se sofisticando politicamente: interferem em campanhas, financiam candidaturas, cooptam servidores públicos e se infiltram em estruturas de poder. A preocupação com as eleições de 2026 já começa agora.
Casos emblemáticos de facções envolvidas com política no Ceará em 2024
Considerado por magistrado do TRE-CE como o “caso mais emblemático” da eleição de 2024, o município foi palco de uma operação que resultou na cassação do mandato de José Braga Barrozo, o Braguinha (PSB), reeleito prefeito.
O Ministério Público Eleitoral (MPE) acusou Braguinha e o vice-prefeito Gardel Padeiro de abuso de poder político e econômico, com suposta atuação em conjunto com uma facção criminosa. Segundo a denúncia, o objetivo era influenciar o voto dos eleitores e violar a normalidade do pleito.
Durante o julgamento, foi citada a delação de Daniel Claudino, o "DA30", que teria sido enviado do Rio de Janeiro ao Ceará com duas missões: tumultuar a campanha de Tomás Figueiredo (MDB) e "tomar" o município de Varjota da facção rival Guardiões do Estado (GDE). Segundo ele, o valor acordado pelo trabalho foi de “300 e poucos mil reais”.
A petição do MPE incluiu ainda:
Compra de veículo de luxo em Fortaleza para entrega a criminoso no Rio, junto com R$ 1,2 milhão — entregues por dois servidores da Prefeitura.
Braguinha foi preso preventivamente antes da posse. A Justiça também autorizou buscas em sua residência. Em março de 2025, foi autorizado a deixar a prisão domiciliar por motivos de saúde, mas segue afastado da função. Ao retornar a Santa Quitéria, foi recepcionado por apoiadores e declarou-se “inocente igual a um passarinho que foi preso na gaiola”.
Em maio de 2025, a Polícia Civil prendeu mais de 40 pessoas por envolvimento em ameaças e tentativas de interferência na eleição de Caucaia. Ao todo, 98 foram denunciadas. Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSPDS), o inquérito foi concluído e encaminhado à Justiça.
A investigação apontou que um grupo criminoso atuava para intimidar eleitores e extorquir candidatos. Quase todos os postulantes à Prefeitura — entre eles Waldemir Catanho (PT), Naumi Amorim (PSD) e Emília Pessoa (PSDB) — sofreram ameaças diretas. Ao O POVO, o MPCE confirmou que todos os episódios estão sob investigação.
Na Capital, candidatos a vereador denunciaram ameaças diretas do crime organizado. O então vereador Márcio Cruz (PCdoB) chegou a registrar boletim de ocorrência após ser ameaçado por membros do Comando Vermelho, sendo forçado a mudar o local de seu comitê de campanha.
Em setembro e outubro de 2024, dois casos distintos de compra de votos resultaram em prisões em flagrante. Os acusados tinham ligação com o Comando Vermelho.
A candidata à Prefeitura e ex-governadora do Ceará, Izolda Cela (PSB), foi alvo de ameaças. Um homem com vínculos com facção foi preso em flagrante após postar vídeos intimidatórios contra ela. O MPCE informou ao O POVO que o processo está no 2º grau, com recurso da defesa do acusado. Em maio de 2025, o homem foi condenado a mais de 8 anos de prisão.
Também houve denúncias de cobrança de até R$ 60 mil por parte de facções para permitir campanhas em bairros sob seu domínio. Eventos diversos durante o período eleitoral foram interrompidos por queimas de fogos, usadas como forma de intimidação.
No município de Iguatu, as eleições de 2024 também foram marcadas por suspeitas de interferência direta do crime organizado no processo político. Logo após o pleito, foi deflagrada a Operação Integridade, com participação da Polícia Federal e da Polícia Civil do Ceará, com objetivo de investigar tentativas de manipulação eleitoral com o apoio de facções criminosas.
Durante as investigações, uma advogada foi presa temporariamente, suspeita de intermediar valores entre uma campanha e um dos líderes do Comando Vermelho em Iguatu.
Posteriormente, a Justiça concedeu à investigada o direito de cumprir a prisão em regime domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica.
Em abril de 2025, um suplente de vereador foi afastado da Câmara por suposto envolvimento com facção criminosa e abuso de poder econômico nas eleições de 2024.
Há ainda o caso do prefeito eleito, Roberto Filho (PSDB), e do vice, Antônio Ferreira de Souza, conhecido como Francisco das Frutas. Em julho de 2025, a Justiça Eleitoral decidiu cassá-los e declará-los inelegíveis por oito anos, por supostas práticas de abuso de poder econômico e captação ilícita de sufrágio. Segundo os autos, há indícios de que a chapa buscou "contratar os serviços" de uma organização criminosa para obter vantagens eleitorais. Roberto aguarda no cargo o julgamento de recurso apresentado.
Na segunda-feira, 26, o juiz decidiu rever a decisão e anulou a cassação. "Diante da insuficiência das provas de uma vinculação direta e dolosa dos candidatos com atos ilícitos eleitorais graves", justificou.
Dias antes da eleição de outubro de 2024, o MPE realizou operação no município de Canindé contra uma vereadora investigada por compra de votos. Durante o cumprimento dos mandados de busca, foram apreendidos cerca de R$ 76 mil em espécie, uma máquina de contar dinheiro, um caderno com nomes de eleitores e valores associados, além de armas de fogo e munições.
Segundo o MP, a suspeita é de que a parlamentar vinha distribuindo recursos financeiros para angariar votos, prática enquadrada como captação ilícita de sufrágio. Os investigadores apuram ainda o possível envolvimento de uma facção criminosa com atuação na região, que teria prestado apoio logístico à campanha da vereadora e de outros aliados políticos locais.
Ao O POVO, o MPE informou que segue sendo investigada a relação entre a campanha da vereadora e integrantes da facção. A promotoria investiga se houve coação de eleitores, financiamento ilegal e uso da estrutura do crime organizado para influenciar o resultado da eleição em Canindé.
O prefeito de Potiretama, Luan Dantas (PP), encontra-se preso preventivamente desde abril de 2025, suspeito de ser o autor intelectual de um incêndio criminoso ocorrido em Alto Santo, município vizinho a Potiretama. De acordo com o MPCE, o incêndio teria sido praticado por integrantes de uma facção criminosa, supostamente a mando do então prefeito.
Em junho passado, o TRE-CE decidiu pela cassação do mandato de Luan Dantas (PP) e da vice-prefeita Solange Campelo (PT), por abuso de poder político, em acusação diferente da que resultou na prisão.
Segundo a ação no TRE-CE, Luan e Solange realizaram diversas publicações em redes sociais divulgando ações da Prefeitura Municipal de Potiretama, “enaltecendo sua campanha, bem como a manutenção, em período vedado, de propaganda institucional na rede social do referido Governo Municipal”.
No início de outubro de 2024, a Secretaria de Segurança de Tamboril recebeu denúncias anônimas de que supostos integrantes de facção criminosa estariam abordando moradores de um distrito do Município. Os dois acusados afirmavam serem integrantes de facção criminosa, questionavam sobre as preferências políticas dos eleitores na eleição para prefeito dacidade e apontavam estarem"fechados" com um candidato.
De acordo com a denúncia, os indivíduos teriam ido até as casas de populares e fizeram chamada de vídeo com um homem identificado por eles como "chefe". Esta pessoa teria ordenado que os moradores votassem em um candidato a prefeito. O caso foi denunciado ao Ministério Público.
No município de Graça, a Polícia Civil abriu investigação contra uma candidatura após denúncias de que grupos criminosos estariam proibindo a entrada de um candidato a prefeito em determinados locais da cidade, durante a eleição de outubro de 2024.
Em Jijoca de Jericoacora, a Justiça chegou a suspender eventos de campanha por dois dias após mensagens de Whatsapp e redes sociais tentando coagir o candidato Márcio Aldigueri (PSD), irmão do presidente da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), deputado estadual Romeu Aldigueri (PSB).
Operação deflagrada na antivéspera da eleição visou desarticular supostos esquema de compra de votos em Acarape, que contaria ainda com a participação de membros de uma facção criminosa. Foram cumpridos cinco mandados de busca e apreensão na cidade, sendo apreendidos valores em dinheiro vivo, além de diversos extratos de Pix e títulos eleitorais.
A ação dos suspeitos envolvia pagamento de valores em dinheiro a eleitores e retenção de documento eleitoral para beneficiar determinadas candidaturas. A operação foi uma parceria da PF com o Gaeco/MPE e a Polícia Civil do Ceará.
O município de Martinópole também teve caso de suspeita de envolvimento de facção criminosa durante o período eleitoral de 2024. No início de outubro, o Ministério Públicos Eleitoral pediu à PF que investigasse um vereador por suspeita de integrar facção e de compra de votos. A denúncia anônima que iniciou a investigação cita ainda uma mulher que teria relação com o parlamentar, sendo o casal líderes do tráfico na região e integrantes do Comando Vermelho. O nome do vereador não foi revelado.
Relembre as temporadas de Guerra Sem Fim
A série Guerra Sem Fim estreou em 2020 na plataforma O POVO . Foi a primeira produção audiovisual de fôlego a retratar os impactos das organizações criminosas sobre a população cearense.
A 1ª temporada, lançada em 2020, teve três episódios:
Episódio 1:
A onda de violência
Com fortes imagens das ações do terror criminoso de janeiro de 2019, o episódio detalha os bastidores que levaram à eclosão criminosa, as estratégias das facções (PCC, CV e GDE) e a reação do Estado para conter a onda de violência. O objetivo dos criminosos era declarado: colocar o Estado do Ceará
em calamidade pública.
Episódio 2:
Tribunais do Crime
O funcionamento interno das facções criminosas no Ceará: como punem seus próprios integrantes?
Episódio 3:
Caminhos do Crime
A entrada em organizações como as facções é um dos caminhos trilhados pelo crime. O que influencia esse cenário? Como é possível fugir do crime?
A 2ª temporada foi lançada em 2021 e se voltou para os impactos das facções sobre a vida das pessoas, principalmente os moradores da periferia:
Episódio 1:
Refugiados urbanos
As famílias expulsas de suas casas por facções criminosas
Episódio 2: GDE:
como nasce uma facção
A origem de um grupo armado nascido na periferia de Fortaleza
Episódio 3:
Juventude sobrevivente
Jovens que conseguem sobreviver nesses territórios dominados pelo terror por meio da arte
Assista: Guerra Sem Fim: Facções e Política
Uma investigação jornalística revela as conexões perigosas entre o crime organizado e o poder político no estado do Ceará. O POVO+ narra como prefeito e candidatos a vereadores foram presos, acusados por envolvimento com as facções criminosas e como elas ameaçam a campanha eleitoral
QR CODE: https://mais.opovo.com.br/webdocs/guerra-sem-fim-faccoes-politica/2025/07/27/guerra-sem-fim-faccoes-e-politica.html
Grupos querem deixar de ser poder paralelo e tomar o poder político
Facções criminosas têm atuação eleitoral há várias eleições, mas se trata de uma presença crescente. Nas eleições municipais de 2024 no Ceará, o impacto foi muito mais direto que dois anos antes, em 2022, aponta Adriano Saraiva, promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco).
"Se não houver uma reação à altura, (a tendência) é de crescimento. E é o que estamos tentando fazer aqui, reagir para impedir esse crescimento, que é muito perigoso. O Estado, que era paralelo, vai se transformar em um Estado formal, porque eles vão fazer parte da política", explica Saraiva, em depoimento para o documentário Guerra sem Fim: Facção e Política, spinoff da série Guerra Sem Fim que estreou segunda-feira, 28, na plataforma O POVO .
O caso mais destacado é o do município de Santa Quitéria, distante 223 km de Fortaleza. Lá, o prefeito reeleito, José Braga Barrozo (Braguinha), do PSB, foi preso e cassado por vínculo com facção.
A produção audiovisual conta com depoimentos de autoridades, advogados e jornalistas, que discutem como as organizações criminosas buscam controlar territórios e influenciar eleições em municípios cearenses, com o objetivo de infiltrar-se e formalizar o poder no sistema político.
O documentário narra desde o início da investigação, a partir da denúncia de que um membro da facção Comando Vermelho estaria se deslocando do Rio de Janeiro para o Ceará, em meados de 2024, para a região de Santa Quitéria e Varjota, com a intenção de coagir eleitores de um candidato, tumultuar o pleito.
Na antevéspera da eleição, em outubro, foi feita uma operação da Polícia Federal com busca e apreensão e a prisão deste faccionado. A apreensão mostrou ligação com prefeito que acabara de ser reeleito, Braguinha.
Segundo as investigações, foram detectadas ações por parte da facção criminosa com o intuito de garantir a vitória de Braguinha na eleição. Dentre elas, a entrega, no Rio de Janeiro, de um veículo Eclipse Cross cheio de dinheiro, feita por servidores municipais a um traficante, chefe do CV em diversos municípios da região Norte do Estado.
"Quem manda mesmo tá lá no Rio. Quem manda mesmo é uma pessoa chamada Doze", conta Saraiva. Doze é o apelido de Anastácio Paiva Pereira, 36 anos. Ele é um dos chefes da facção.
Ele teria se envolvido na eleição de Santa Quitéria em troca da promessa de um pagamento de R$ 350 mil. Porém, conforme a investigação, ele não recebeu o dinheiro, que teria sido pago a outro membro da facção. "Ele ficou revoltado", narra o promotor.
O promotor Emanuel Girão Pinto, do Ministério Público do Ceará (MPCE), conta no filme que foi disponibilizado quatro vezes o contingente normal para atuar na eleição de Santa Quitéria, com reforço de juiz, promotor e trabalho conjunto de inteligência dos órgãos públicos.
A defesa nega qualquer envolvimento de Braguinha com o Comando Vermelho. "De plano, eu posso dizer que não há envolvimento delitivo do nosso cliente em relação à facção criminosa. Não, inclusive, nada nos autos que o vincule, seja por ação, seja por omissão, ao resultado finalístico criminal", afirma Valdir Xavier, um dos advogados de defesa.
O também advogado de defesa, Fernandes Neto, no documentário, levanta ainda um questionamento: "Quem garante que algum órgão público, do Judiciário, do Executivo, do Legislativo, não tenha pessoa de alguma forma ligada, indireta ou diretamente, com facções criminosas hoje?"