Mesmo com Jair Bolsonaro (PL) preso em casa e impedido de se manifestar publicamente, ele segue no centro do jogo político da direita brasileira. A prisão domiciliar impôs silêncio a ele, mas não reduziu o peso simbólico que carrega. Especialistas ouvidos pelo O POVO indicam que o bolsonarismo, mais do que uma líder, consolidou-se como um sentimento capaz de sobreviver a ele próprio
"Claro que perde fôlego. Não vai ser aquele fenômeno de massa de alguns anos atrás, mas vai ser bastante expressivo na área da direita", resume Fábio Gentile, que tem pós-doutorado em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP).
Segundo o pesquisador, desde o resultado da corrida presidencial de 2022, parte "muito significativa" desse espectro já se organiza em busca de saídas para além de Bolsonaro e do bolsonarismo. O que não quer dizer que perderam o "papel central" dentro da direita.
"Ele continua sendo uma referência fundamental da direita no Brasil, e isso estava acontecendo há tempo. Não é um fenômeno de agora, mas já com a derrota eleitoral e com tudo que aconteceu depois. É preciso entender que a direita é um espaço muito flexível e fragmentado", elucida Gentile, acrescentando que "a gente pode falar de direitas, no plural".
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídias (Lepem-UFC), a professora Paula Vieira cita “uma base muito fiel ao Bolsonaro e que não pode ser ignorada”.
Essa fidelidade, conforme Vieira, reverbera numa frente institucional quando parlamentares e lideranças do campo bolsonarista, explorando as redes sociais, manifestam confrontos no Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal (STF), tensionado as instituições democráticas e mantendo o protagonismo de Bolsonaro.
"Quando a gente fala em termos das instituições, a base bolsonarista está explorando os cortes de vídeos, as manifestações, num processo que está passando tanto por uma reorganização como também por uma radicalização; dobrando a aposta", diz, referindo-se à obstrução na Câmara dos Deputados e no Senado feita por congressistas apoiadores do ex-presidente.
Gentile, por sua vez, afirma que Bolsonaro sustenta essa relevância ao se apresentar como "vítima de um complô” articulado pelo poder político e judiciário. "É uma estratégia bastante consolidada e que também encontra nas redes sociais um espaço muito favorável", complementa.
Ele também explica que, historicamente, a direita transita entre estar "dentro e fora da democracia", adotando discursos radicais em momentos favoráveis e compondo com setores moderados em outros.
"Pode até ficar fora do sistema, mas, ao mesmo tempo, se apresentando nas eleições. Aquele discurso que a gente já acompanhou, bastante populista e antipolítico, de recusa da política tradicional e também se apresentando como vítima do sistema", menciona Gentile.
Juliana Fratini, doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz que o "curioso" do bolsonarismo é ser "disruptivo" por meio da valorização de aspectos tradicionais da vida social como a família, a igreja e as Forças Armadas. "Defende a tradição com a mesma rebeldia que correntes da esquerda defendiam e defendem comportamentos liberais e alternativos", compara.
Para ela, esse modelo "carismático e popular" garante sobrevida ao movimento, mesmo sem Bolsonaro nas urnas. "O bolsonarismo é um sentimento, tal qual sentem os lulistas por Lula. Ambos mobilizam corações, independentemente de estarem soltos ou presos".
Vai surgir uma direita não-bolsonarista?
O surgimento de uma nova direita é especulado desde até antes da derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas urnas em 2022. Somados a isso, a inelegibilidade, os julgamentos na Suprema Corte e, mais recentemente, a prisão domiciliar reacenderam o debate sobre o espaço que a direita pode ocupar no Brasil.
O desenrolar desse cenário carregará muito do DNA bolsonarista, seja no discurso conservador, na mobilização popular ou no uso das redes sociais como arena, consideram analistas ouvidos pelo O POVO. A ruptura, indicam eles, se vier, será mais de forma do que de conteúdo.
O cientista político Fábio Gentile acredita que uma nova direita está surgindo e que o bolsonarismo será apenas um "segmento". Esse novo campo, percebe ele, tende a se articular em torno de um projeto mais moderado e conservador.
"Talvez, não vai ser um segmento majoritário, mas que vai ter uma representação bastante relevante", analisa Gentile. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, Juliana Fratini explica que, apesar do movimento por alternativas, não haverá necessariamente uma ruptura ideológica.
"A busca por um novo nome ocorre desde antes da prisão. Todo novo nome para disputar o pleito, porém, até o momento, é especulativo", nota e lembra que a direita pré-Bolsonaro esteve circunscrita ao debate econômico e não popular sobre costumes, como o ex-presidente faz.
"Esse espectro carecia de lideranças carismáticas. Hoje, essas lideranças existem mas ainda não possuem idade para disputar eleições. O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) é exemplo disso, bem como membros do Movimento Brasil Livre (MBL)", acrescenta.
Paula Vieira, doutora e pesquisadora do Lepem-UFC, não enxerga, até esse momento, espaço para uma nova direita. "A direita existente está ampliando a sua área de atuação", entende. Ela cita a expansão institucional e territorial de uma direita formada nos últimos 10 a 15 anos, que encontrou no bolsonarismo uma plataforma de crescimento.
O movimento ligado ao ex-presidente, explica Vieira, mantém um conjunto de ideias que viraram símbolos, mas que, nos cenários locais, chegam de forma mais filtrada, com menos repercussão. Por isso, esse processo de ampliação se traduz no fortalecimento de bases eleitorais e na ocupação de espaços sociais.
"Essa ideia antissistema; de que os Poderes estão corrompidos e que, por isso, não funcionam; de abuso de poder e de autoridade por parte do STF; repercute em alguns setores, mas existe outro trabalho sendo feito além dessa adesão à defesa do Bolsonaro e do projeto de anistia. Há uma estratégia de ocupar espaços sociais: construir bases sociais em que se formem bases eleitorais para a disputa de 2026".
No Ceará, Vieira menciona o trabalho feito por nomes como o deputado federal André Fernandes e a vereadora Priscila Costa, ambos do PL de Bolsonaro, que saíram fortalecidos das eleições de 2024. Ele, apesar de derrotado, apertou o resultado do segundo turno na disputa pela Prefeitura de Fortaleza. Ela, além de próxima da ex-primeira-dama, Michele Bolsonaro, foi a parlamentar mais votada na Capital, e aparece como opção ao Senado.
Quem pode assumir o espaço de Bolsonaro
Michele Bolsonaro (PL), Tarcísio de Freitas (Republicanos), Romeu Zema (Novo) e Ronaldo Caiado (União Brasil) figuram como alternativas para o lugar de Bolsonaro nas eleições presidenciais.
Michele, à frente do PL Mulher, viaja Brasil afora formando e recrutando lideranças. Pelo capital político, Tarcísio é visto como suposto herdeiro natural. Zema e Caiado também surgem como alternativas, embora com menor exposição. Ratinho Júnior (PSD) também já foi ventilado.
Contudo, todo desgaste tem perdas. Bolsonaro vem de uma sequência deles. Dessa forma, aproximar-se da imagem do ex-presidente é se colocar como vitrine do que o circunda. Isso é o que aponta Paula Vieira, pesquisadora do Lepem-UFC.
"Há uma mudança nessa forma de colocar o Bolsonaro como acima de tudo, porque esse impacto já está chegando nos interesses diretos de setores econômicos importantes do País. A busca por alternativas já está em andamento, mas ainda não há centralidade nisso".
Vieira nota um movimento de bastidor, em que se busca uma opção para essa base "muito leal" ao ex-mandatário e à família dele, mas que, por outro lado, uma parte tenta se deslocar.
Juliana Fratini, por sua vez, lembra que os principais governadores de direita que estão na disputa para ocupação "do vácuo" deixado pela inelegibilidade desistiram das manifestações do fim de semana passado, em apoio a Bolsonaro, e antes mesmo de ser decreta a prisão domiciliar.
"Essa conduta ocorre porque sabem que o ex-presidente quer manter o poder concentrado no clã, entre esposa e filhos, ainda que estes não tenham musculatura, na atualidade, para disputar o Executivo Federal enquanto cabeças de chapa", analisou Fratini.