Logo O POVO+
Como o novo Código Eleitoral regula uso de IA, facções e participação da mulher
Politica

Como o novo Código Eleitoral regula uso de IA, facções e participação da mulher

Nos 60 anos de vigência do Código Eleitoral atual, de 1965, considerado um marco no Direito Eleitoral brasileiro, há a busca pela atualização e unificação da legislação eleitoral
Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Tramita no Senado Federal o projeto de lei que pretende consolidar e atualizar, em um único texto, toda a legislação eleitoral e partidária em um novo Código Eleitoral, que unifica e incorpora, também, a regulamentação de novos fenômenos, como o uso da Inteligência Artificial e o combate às facções criminosas no contexto das eleições.

Nos 60 anos de vigência do Código Eleitoral atual, de 1965, considerado um marco no Direito Eleitoral brasileiro, celebrado no último 15 de julho, a data coincide com a tramitação do projeto que, na quarta-feira, 20, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa Alta, sob a relatoria do senador Marcelo Castro (MDB/PI).

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/2021, que institui o novo Código Eleitoral, é de autoria da deputada federal Soraya Santos (PL/RJ), de 2021. São muitos os pontos polêmicos, especialmente quando o assunto é regulamentar os conteúdos das redes sociais ligados ao mau uso da Inteligência Artificial no âmbito das eleições, por exemplo. Seguindo o rito da Casa, agora o projeto segue para apreciação no Plenário.

Há também no texto discussões sobre a atuação da Justiça, a transparência do sistema eleitoral e a participação política das mulheres. Esta última, chegou a ser apontada como um dos pontos de atenção do projeto, pelo receio do texto que poderia ser aprovado e que representaria certo retrocesso, segundo especialistas.

Outros pontos que causam discussões mais calorosas envolvem a transparência do processo eleitoral e o debate sobre voto impresso. O texto aprovado na CCJ inclui emenda que instala o retorno de um recibo impresso, já considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por colocar em risco o sigilo e a liberdade do voto.

O trecho sobre o voto impresso foi aprovado em votação separada por 14 votos favoráveis e 12 contrários. Segundo o texto da emenda apresentado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), o processo de votação de cada eleitor só será concluído após a confirmação da correspondência entre o teor do recibo impresso e o exibido pela urna eletrônica.

No geral, o texto surge como uma atualização necessária, para incluir situações agora tão relevantes que influenciam a democracia, como a participação de facções criminosas nas escolhas de eleitores. São diversas as propostas paralelas no projeto, visto que além da redação principal, há as emendas, que somam quase 400 pedidos, algumas acolhidas e outras rejeitadas pelo relator, o senador Marcelo Castro.

Professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Machado reforça que é necessário “entender a importância sistemática do novo Código que irá reunir toda a legislação eleitoral”. A professora detalha que, atualmente, muitas são as normas que guiam os processos eleitorais, mas elas estão separadas em algumas legislações.

“Hoje, temos o Código, mas além dele, a Lei das Inelegibilidades, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei das Eleições, lei sobre plebiscitos e referendos, lei sobre transporte em dias de eleições, normas que foram consagradas em resoluções do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O Código procura sistematizar a construção normativa que foi feita até aqui, claro com algumas modificações no trato da matéria”, explica Raquel Machado.

Ela continua: “Além disso, o processo eleitoral envolve atos que vão desde o alistamento das eleições até o momento da diplomação, posterior à votação. Toda essa dinâmica e as pessoas que participam desse processo serão disciplinadas pelo Código”. 

Segundo a professora de Direito Eleitoral da UFC, Raquel Machado, a desatualização das leis eleitorais se evidencia em diversos aspectos centrais da estrutura eleitoral brasileira. Por exemplo, no caso da propaganda eleitoral e novas tecnologias, o Código vigente não regula adequadamente o ambiente digital, pois faltam dispositivos específicos para lidar com campanhas virtuais, desinformação, uso de inteligência artificial e manipulação de algoritmos.

Quanto ao alistamento e registro de eleitores, as normas “permanecem ancoradas em lógicas analógicas", explica a professora. Nesse contexto, a digitalização do cadastro e a ampliação do acesso ainda carecem de regulamentação clara e inclusiva.

No que diz respeito aos partidos políticos, o novo Código propõe regras mais integradas sobre funcionamento, organização e fiscalização partidária, mas há debates sobre possível enfraquecimento dos mecanismos de controle externo, como os exercidos pela Justiça Eleitoral.

O novo texto busca, também, desburocratizar a análise de contas, prevendo aprovação tácita, em que a falta de resposta em tempo hábil equivale à concordância, e a exigência de dolo para aplicação de sanções, ou seja, significa que, para que um ato seja considerado crime ou infração, é necessário que o agente tenha a intenção de praticá-lo.

Contudo, essa simplificação na análise de contas é objeto de críticas, pois pode “comprometer a transparência no uso de recursos públicos, especialmente os fundos partidário e eleitoral”, destaca Raquel Machado.

Em relação a ações e procedimentos eleitorais, as normas processuais ainda “seguem padrões ultrapassados, com prazos e procedimentos muitas vezes ineficientes. O novo Código propõe uma uniformização procedimental e racionalização dos recursos, buscando celeridade e previsibilidade”, detalha a professora.

Segundo a docente da UFC, um ponto que aparece no projeto, de maneira mais ampla, é o conceito de democracia participativa. “Não apenas como direito de votar e ser votado, mas como participação ativa e qualificada nos processos decisórios e na fiscalização da atividade eleitoral”, esclarece a professora.

Ela continua: “Isso se reflete, por exemplo, na previsão de normas sobre observação eleitoral, iniciativas populares e papel das entidades da sociedade civil, o que amplia o espectro da cidadania eleitoral para além do sufrágio”.

Quarentena para atuar na política

A advogada Sabrina Veras, coordenadora de ações políticas para participação feminina no Instituto Brasileiro de Direito Partidário (Ibradip), detalha que o projeto propõe “uma quarentena para pessoas que exercem cargos ou funções públicas tidas como potencialmente incompatíveis com a atuação política”. Esse é um dos trechos da redação que causou discordâncias.

Nesse caso, estão contemplados, por exemplo, juízes, membros do Ministério Público, guardas municipais, das polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal, militares da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Após discussão na Comissão, também foram inseridas nesse rol as polícias penais federais, estaduais e distrital, antes não citadas.

O prazo gerou fortes debates. "Na Câmara, discutiu-se um período de 4 anos, no relatório do Senado, esse prazo foi reduzido para 2 anos. Já há parlamentares que defendem prazos ainda menores, sobretudo para categorias como policiais e membros das Forças Armadas”, explica.

De acordo com a redação aprovada na CCJ da Casa, após a quarentena ser revista pelo relator e ter ganhado apoio, Marcelo Castro propôs reduzir de dois para um ano antes das eleições o prazo de desincompatibilização.

Quais as principais mudanças previstas no novo Código Eleitoral

Cassações
O texto prevê cassações de mandato apenas para casos mais graves. Na dúvida, deverá prevalecer a vontade do eleitor. Só haverá perda de mandato se reconhecida a gravidade das circunstâncias. Foi retirada a previsão de punição pelo uso indevido e desproporcional dos meios de comunicação

Voto impresso
Foi aprovada obrigatoriedade da impressão do voto registrado pela urna eletrônica. O registro de cada voto será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado. O processo de votação só será concluído quando o eleitor confirmar a correspondência entre o voto e o registro impresso. A previsão é de que a impressão já ocorra nas eleições de 2026

Candidatura feminina
É prevista reserva de 20% das vagas nas casas legislativas para mulheres. Hoje a obrigatoriedade é de no mínimo 30% de candidaturas tanto de homens quanto de mulheres, mas não há delimitação sobre vagas para eleitos

Prestação de contas
Desaprovação das contas partidárias acarretará multa de R$ 2 mil a R$ 30 mil, e devolução do valor irregular em caso de gravidade. Hoje, a desaprovação gera a devolução do valor gasto irregularmente e multa de até 20%

Autofinanciamento
Candidatos poderão usar recursos próprios na campanha até o total de 100% dos limites previstos para gastos. Hoje, só 10% do limite de gastos pode sair do bolso do candidato

Desincompatibilização
Foi definido em um ano antes da eleição o prazo para magistrados, membros do Ministério Público, policiais de todas as esferas e guardas municipais deixem os cargos para serem candidatos. Como regra geral, a proposta fixa o dia 2 de abril do ano das eleições como a data para desincompatibilização.Os “agentes da lei” observarão o mesmo prazo para as eleições de 2026, mas para os pleitos seguintes já terão de cumprir um ano de quarentena

Inelegibilidade
O prazo de inelegibilidade será de oito anos. Enquanto hoje a inelegibilidade decorrente de ilícitos eleitorais começa a correr na data das eleições de quando ocorreu o ato ilícito, o projeto estabelece a data de 1º de janeiro do ano seguinte para todos, de forma a não variar conforme a data das eleições. No caso de crimes, a inelegibilidade será diferenciada. No caso dos crimes mais graves continuará como é hoje: a pessoa se torna inelegível a partir da decisão colegiada condenatória e após o cumprimento da pena ainda ficará inelegível por mais oito anos. E nos demais crimes, menos graves, são oito anos a partir da decisão condenatória do órgão colegiado

Inteligência artificial
O uso deverá ser identificado. Será proibido uso para simular vozes ou conteúdos de pessoas vivas ou falecidas para favorecer ou prejudicar candidato, apresentar feitos, criar narrativas ou apresentar programas

Fake news
Texto estabelece detenção de dois meses a um ano e multa, conforme a legislação atual, para o crime de divulgação de fatos inverídicos, oufake news. Poderá haver a remoção, por ordem judicial, de conteúdo divulgado na internet nas hipóteses de violação às regras eleitorais, mas não mais em caso de ofensa a pessoas que participam do processo eleitoral

Disparos em massa
O texto proíbe disparos de mensagens em massa. É permitido envio de mensagens a pessoas que solicitaram previamente

Propaganda eleitoral
A propaganda eleitoral poderá ser divulgada a partir de 16 de agosto, como já é feito hoje. Também fica mantida a propaganda partidária gratuita no rádio e na televisão por meio de inserções. Passa a ser prevista propaganda eleitoral paga no rádio e na televisão. Essa propaganda será submetida a uma série de regras e poderá ser suspensa caso descumpra alguma norma. Será obrigatória a informação ao eleitor de que a propaganda é paga, seja em áudio ou texto

Propaganda negativa irregular
É permitida propaganda eleitoral que contenha críticas e comentários negativos dirigidos a adversários, bem como às propostas, desde que respeitadas as garantias constitucionais. Mas serão proibidas afirmações caluniosas, difamatórias ou injuriosas capaz de causar dano grave e injustificado à honra de candidatos, assim como quando promover discurso de ódio, incitar a violência ou veicular fatos sabidamente inverídicos para causar atentado grave à igualdade de condições entre candidatos no pleito. O texto define como discurso de ódio a veiculação de qualquer preconceito baseado em raça, cor, etnia, religião, origem ou orientação sexual

Quociente eleitoral
Na distribuição das vagas de deputados e vereadores, quando não houver mais partidos com direito a obtenção de cadeiras conforme a distribuição pelo critério do quociente partidário, participarão da segunda fase de distribuição das vagas nas eleições proporcionais apenas os partidos que tenham alcançado votação equivalente ao quociente eleitoral (como previa o Código Eleitoral até 2017). Pela legislação atual, participam da segunda fase todos os partidos que tenham obtido votação igual ou superior a 80% do quociente eleitoral e que tenham candidatos com votação igual ou superior a 20% do quociente eleitoral. Todos os partidos que disputaram as eleições participarão da terceira fase. O quociente eleitoral é calculado dividindo a quantidade de votos válidos para o cargo pelo número de vagas. O quociente partidário é feito dividindo a quantidade de votos válidos para determinado partido ou federação pelo quociente eleitoral. Se nenhum partido tiver atingido o quociente eleitoral, todos os que disputaram a eleição terão direito a participar da distribuição das sobras, segundo o critério das maiores médias, dispensada a exigência de votação mínima individual de 10% do quociente eleitoral.

Transporte gratuito
O projeto prevê na lei o transporte público gratuito em dia de eleição

Fonte: Agência Senado

O novo código substitui os seguintes textos

  • Código Eleitoral
  • Lei Geral das Eleições
  • Lei dos Partidos Políticos
  • Lei de Inelegibilidades
  • Lei 9.709, de 1998, sobre plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular
  • Lei 14.192, de 2021, de combate à violência política contra a mulher
  • Lei 6.091, de 1974, sobre transporte gratuito a eleitores residentes em zonas rurais em dias de eleição.

Influência das redes sociais e da inteligência artificial sobre o voto

Uma das preocupações relacionadas às novas regras eleitorais tem relação com a influência das redes sociais no voto, seja por meio das propagandas impulsionadas, pela atividade de influenciadores — personalidades conhecidas pela alta capacidade de moldar a opinião pública — ou pelos próprios algoritmos das plataformas.

A inteligência artificial (IA), aliada ao mau uso, tem capacidade de gerar prejuízos para o processo democrático. O uso de deep fakes, geralmente vídeos criados artificialmente e que imitam a imagem e voz de uma determinada pessoa, é um dos maiores riscos. Com a sofisticação da IA generativa, o uso dessa tecnologia para fins danosos tem se aperfeiçoado.

O advogado e ex-ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Joelson Dias, disse que, entre as principais inovações que o texto traz, tem sido dada atenção “à emergência das novas inteligências artificiais generativas, ao uso de deep fakes e à necessidade de regular o papel das redes sociais na propagação de notícias falsas, discursos de ódio com viés político e incitação a atos antidemocráticos”.

O TSE lançou, dentro das 12 resoluções para o pleito de 2024, diretrizes para regular o uso de tecnologias e práticas digitais que têm o potencial de impactar o processo eleitoral.

“Hoje a gente tem regulação de inteligência artificial, que é dada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Isso porque a atual lei eleitoral dá poder ao TSE de regulamentar ferramentas novas, tecnologias novas. Para as eleições de 2024, a gente viu o TSE regulamentando essas ferramentas de inteligência artificial e criando algumas regras”, explica Francisco Brito, advogado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Joelson Dias também destaca as resoluções de 2024. “Tivemos avanços significativos relacionados à regulamentação do uso da inteligência artificial nos processos eleitorais. Entre as mudanças, destaca-se a proibição do uso de deep fakes, com sanções severas como a cassação do registro ou do mandato, além da responsabilização conforme o Código Eleitoral".

"A utilização de conteúdos manipulados com IA só é permitida mediante aviso explícito ao público”, explicou. O substitutivo anterior previa pena de reclusão de um a quatro anos e multa, o novo texto, aprovado na CCJ, estabelece apenas a detenção de dois meses a um ano e multa.

Para o ex-ministro, “há avanços expressivos no combate à desinformação e ao mau uso das redes. O texto tipifica práticas como divulgação de notícias falsas com potencial de interferir na escolha do eleitorado ou de comprometer a igualdade de condições entre os candidatos, disparos em massa de mensagens não solicitadas — especialmente quando realizadas por meio de automação e sem qualquer vínculo prévio com o destinatário —, invasão e de perfis de candidatos, entre outros”.

Joelson Dias detalha que a proposta também regula o impulsionamento de conteúdos digitais, autorizando a realização já na pré-campanha, com limite de gastos fixado em até 10% do teto da campanha. “E determina, ainda, que a remoção de conteúdos ou suspensão de contas de candidatos só poderá ocorrer mediante violação clara das normas eleitorais ou dos direitos dos envolvidos”, explica.

Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que “ainda que o termo ‘inteligência artificial’ não apareça expressamente no texto, o projeto incorpora dispositivos que dialogam com o tema”.

“Um exemplo importante está na seção que trata das condutas vedadas na internet, onde se considera infração grave: “Remover ou contratar a manipulação de algoritmos de mecanismos de busca ou redes sociais, com a finalidade de controlar ou alterar artificialmente a visibilidade de candidaturas, ou a oferta de dados e informações de caráter eleitoral”, esclarece a professora.

Para ela, essa previsão representa um “avanço no enfrentamento da manipulação algorítmica, prática frequentemente associada ao uso de IA para amplificar desinformação, ocultar conteúdo verdadeiro ou criar bolhas de influência nas plataformas digitais durante o período eleitoral”.

Mas Raquel também alerta que, apesar de “elogiáveis”, as propostas que aparecem no projeto não são suficientes diante da velocidade com que a tecnologia evolui. “O uso de ferramentas de IA generativa, como deep fakes, chatbots automatizados e simulações de voz ou imagem, ainda carecem de regulamentação específica. Isso pode comprometer tanto a autenticidade do debate público quanto à proteção da vontade livre do eleitor”, sinaliza.

No entendimento de Raquel Machado, “será necessário que normas infralegais, regulamentações técnicas e atualizações legislativas constantes acompanhem o desenvolvimento dessas tecnologias, de modo a garantir a integridade do processo eleitoral e a lisura da competição política”. 

A polêmica remoção de conteúdos

Um ponto que tem gerado discussões é a intervenção da Justiça Eleitoral nas redes sociais. Em caso de identificação de alguma postagem que possa ameaçar ferir o processo democrática, seja por ser fundamentado em inverdades ou por manipular conteúdos, a Justiça passa a ter maior respaldo para retirar de circulação essas publicações e até para banir perfis.

“O projeto mantém o tema do poder de polícia da Justiça Eleitoral, de maneira diferente e com algumas condições, mas o tema continuará a ser polêmico”, destaca o professor Francisco Brito.

Ele entende que “a Justiça que precisa arbitrar o que é ilícito, senão isso fica delegado às plataformas digitais, o que não é bom numa eleição onde a questão é candidato versus candidato”.

“Compreendo as preocupações levantadas por alguns parlamentares e por parte da sociedade civil, que receiam um suposto avanço do Judiciário sobre a esfera do debate público e consequente desrespeito ao preceito fundamental da liberdade de expressão”, diz o ex-ministro Joelson Dias.

Por outro lado, ele explica que, “diante da velocidade e do alcance das campanhas de desinformação, aguardar uma longa tramitação judicial pode significar a limitação de qualquer eficácia na proteção ao eleitorado”. Dessa forma, a atuação da Justiça, como prevista no texto, traz celeridade para o processo de mitigar os efeitos de conteúdos mais informativos.

“A dinâmica das redes digitais permite que conteúdos mentirosos, difamatórios ou antidemocráticos alcancem milhões de pessoas em poucas horas, o que torna ineficaz a atuação judicial tradicional. Ao conferir essa prerrogativa à Justiça Eleitoral, o projeto busca agir em caráter preventivo e corretivo, mas deve, por óbvio, sempre fazê-lo sob os princípios do contraditório, da motivação das decisões e da proporcionalidade”, complementa Joelson.

Punições

Joelson Dias explica que “o texto estabelece que a divulgação de conteúdo gerado por inteligência artificial com finalidade de manipulação eleitoral será passível de sanções, inclusive de natureza penal”.

“As penalidades são mais severas quando houver intenção deliberada de manipular o processo eleitoral ou de incitar o descrédito das instituições democráticas. A responsabilização pode alcançar tanto quem cria quanto quem divulga o conteúdo, e há previsão de medidas como multas, cassação de registro de candidatura e inelegibilidade”, detalha o ex-ministro e advogado.

O advogado ressalta que tem “aspectos que poderiam ser mais detalhados” quando trata da punição, “como os critérios técnicos de aferição do dolo e da autoria”. “O projeto é claro ao prever que o uso de IA com o propósito de propagar desinformação ou incitar o ódio e o descrédito das instituições democráticas configura ilícito eleitoral e deve ser tratado com o devido rigor jurídico”, explica.

Para Joelson, o texto do projeto no que diz respeito à IA “é um passo importante na construção de uma cultura de responsabilidade digital e de proteção à integridade do processo democrático”.

O que a resolução do TSE proíbe sobre a campanha em meios digitais

  • Uso de robôs para simular diálogos com eleitores
  • A disseminação de informações falsas ou gravemente descontextualizadas que possam comprometer a integridade das eleições
  • Plataformas e provedores também passaram a ter obrigações mais rigorosas, sendo responsabilizados, civil e administrativamente, caso não removam imediatamente conteúdos ilegais, incluindo discursos de ódio, manifestações racistas, homofóbicas, ideologias nazistas ou fascistas, e publicações antidemocráticas
  • Também foi orientado que as big techs devem adotar medidas concretas para evitar a circulação desses conteúdos e, quando determinados pela Justiça Eleitoral, terão de divulgar informações que corrijam publicações enganosas.
Tribunal Regional Eleitoral faz demonstrações da urna biométrica no fim de semana no Distrito Federal, para familiarizar o eleitor com a urna eletrônica (José Cruz/Agência Brasil)
Tribunal Regional Eleitoral faz demonstrações da urna biométrica no fim de semana no Distrito Federal, para familiarizar o eleitor com a urna eletrônica (José Cruz/Agência Brasil)

Facções criminosas no contexto eleitoral

A influência de organizações criminosas nas eleições, explícita em 2024, acendeu alerta para a Justiça Eleitoral. No projeto do novo Código, casos assim estão na mira da legislação.

Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral, explica que o projeto “busca responder a esse fenômeno com um conjunto de medidas normativas que atuam em três frentes: inelegibilidades, repressão penal e vedação à atuação partidária armada”.

No Ceará, o caso emblemático de Santa Quitéria, município distante 223,46 km de Fortaleza, foi julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE). Na sessão de 1º de julho, a Corte decidiu por manter a cassação do prefeito eleito José Braga Barrozo, conhecido como Braguinha (PSB), e seu vice, Francisco Gardel Mesquita, o Gardel Padeiro (Progressistas).

A chapa foi alvo de pedido de cassação pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) por abuso de poder político e econômico ao se envolver com integrantes de uma facção criminosa com o objetivo de influenciar o voto dos eleitores e violar a normalidade e legitimidade do último pleito.

No texto que tramita no Senado Federal, “o novo Código estabelece, no art. 180, inciso V, alínea j, uma nova hipótese de inelegibilidade para quem for condenado, em decisão transitada em julgado ou por órgão colegiado, por crime praticado no contexto de atuação em organização criminosa ou associação criminosa, nos termos da lei penal”, detalha a professora.

A docente esclarece que essa previsão dialoga com o que já vinha sendo reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O novo Código também tipifica condutas penais voltadas especificamente à repressão da violência política e que pode se relacionar com a atividade praticada por milícias e facções.

“Em março de 2025, o Tribunal consolidou a tese de que pessoas integrantes de grupos paramilitares ou de organizações criminosas não podem concorrer a cargos eletivos, mesmo sem condenação transitada em julgado, quando houver demonstração de vínculo com estruturas que exercem poder paralelo, intimidação social ou controle territorial, violando os princípios da soberania popular e da normalidade das eleições”, informa.

No texto, “é vedado aos partidos políticos ministrar instrução militar ou paramilitar, utilizar-se de organização da mesma natureza ou adotar uniforme para seus membros”. A manutenção de uma organização paramilitar, em que indivíduos ou grupos utilizam de táticas militares ou armas, mas sem fazer parte das forças de segurança oficiais, pode levar à extinção do registro de um partido diante do TSE.

A professora reforça que essa norma visa impedir que partidos se associem, formal ou informalmente, a grupos armados ou milicianos. Dessa forma, preserva-se a institucionalidade da representação política e evita a militarização de disputas eleitorais.

Raquel Machado destaca, no texto do projeto, o artigo 888. “Trata do crime de extorsão eleitoral, punindo o ato de constranger alguém, com violência ou grave ameaça, com o objetivo de obter voto ou abstenção em favor de determinado candidato ou partido”.

Além do artigo 889, que “trata do constrangimento ilegal eleitoral, penalizando quem, com violência ou ameaça, obriga candidatos, apoiadores ou lideranças partidárias a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que ela permite, interferindo assim no livre exercício dos direitos políticos”.

“Esses dispositivos são particularmente relevantes em contextos de coação territorializada, como ocorre em áreas dominadas por facções, onde a escolha eleitoral livre é substituída pelo medo e pelo controle armado”, complementa.

A docente reconhece que o novo Código avança ao reconhecer, normativamente, a ameaça que são as organizações criminosas para o processo democrático. “Ao articular inelegibilidades, tipos penais específicos e a vedação a práticas paramilitares no âmbito partidário, o texto propõe um marco legal mais robusto para proteger a liberdade do voto, a legitimidade do pleito e a soberania popular, especialmente em contextos de vulnerabilidade social e insegurança pública”.

Por outro lado, “a efetividade dessas normas dependerá da atuação articulada entre Justiça Eleitoral, Ministério Público, órgãos de segurança pública e instituições locais, uma vez que a presença de facções envolve não apenas o Direito Eleitoral, mas também questões de segurança, desigualdade e ausência do Estado”, alerta Raquel Machado.

Participação política das mulheres

Uma das mudanças sugeridas no projeto do novo Código Eleitoral diz respeito à participação das mulheres. O texto propõe fortalecer a presença feminina na política, mas suscitou "preocupações quanto a possíveis retrocessos em políticas já consolidadas”, avisa Raquel Machado.

Entre as mudanças, um dos principais destaques é a reserva de 20% das cadeiras das casas legislativas para mulheres. A proposta foi acolhida pelo relator Marcelo Castro a partir de emenda da senadora Eliziane Gama (PSD). Ao mesmo tempo, preserva-se a exigência de 30% de candidaturas femininas.

No processo de apreciação do texto na CCJ, o relator retirava a punição para partidos que não conseguissem cumprir o percentual de candidaturas. A suspensão da punição era um contraponto à proposta de reserva de 20% das cadeiras nas casas legislativas para as mulheres. O destaque foi aprovado por 18 votos favoráveis e cinco contrários.

Uma inovação apresentada é a inclusão de uma exceção para os casos de desistência de candidaturas femininas após o prazo legal para que sejam realizadas substituições. Hoje, quando uma candidata desiste após o referido período, o partido é obrigado a cancelar candidaturas masculinas para manter a proporção mínima de 30% por gênero.

Com a alteração proposta e aprovada na CCJ, se a desistência ocorrer após o prazo legal para substituição, o partido não será obrigado a cancelar candidaturas masculinas, desde que tenha cumprido o percentual mínimo no momento do registro.

A advogada Sabrina Veras, coordenadora institucional da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), vai além e sugere que as mudança sejam mais significativas.

“É louvável a proposta de reserva de 20% das cadeiras nos parlamentos para mulheres. No entanto, considerando a realidade demográfica da população brasileira, bem como, com base nos dados sobre o eleitorado e filiação partidária da Justiça Eleitoral, essa reserva deveria ser ampliada para 50% das cadeiras destinadas a pessoas do gênero feminino e 50% para o gênero masculino, assegurando, de fato, a paridade de representação”, pontua Sabrina.

Ela complementa: “Essa paridade também deveria ser exigida na composição dos diretórios partidários e federações partidárias em nível nacional, estadual e municipal. O texto poderia ainda ter incluído a obrigatoriedade de que as comissões de ética e disciplina dos partidos contem com composição paritária de gênero”.

Partidos políticos e mulheres

A advogada Sabrina Veras se debruça sobre outro ponto: a relação entre a participação política de mulheres e os partidos políticos. O projeto que institui o novo Código Eleitoral mantém o percentual mínimo de 5% destinado à promoção da participação feminina já previsto na Constituição Federal, mas modifica pontos importantes da regulamentação.

“O texto proposto permite que os recursos sejam executados por instituto com personalidade jurídica própria e finalidade específica, porém retira a exigência de que esse instituto seja presidido pela Secretaria da Mulher”, alerta a advogada.

Sabrina enfatiza que “ao flexibilizar a exigência quanto à presidência do instituto executor, o projeto pode enfraquecer os mecanismos de controle político interno que hoje garantem a condução dessas ações por lideranças femininas dentro dos partidos”.

Por outro lado, o texto do novo Código deixa claro que a utilização dos recursos do Fundo Partidário destinados às mulheres é proibido para quaisquer outros fins, o que reforça a destinação exclusiva para a pauta da participação política feminina.

“No entanto, alguns pontos do projeto deveriam ter sido aperfeiçoados. Como a distribuição dos recursos dos fundos eleitoral e partidário vinculados à cota de gênero que deveria seguir uma lógica para garantir a distribuição mínima de recursos financeiros dos fundos partidários e fundo especial de financiamento de campanha para as candidatas de todas as chapas, nos âmbitos municipal, estadual e federal”, avalia a advogada Sabrina Veras.

No entendimento da advogada, “ao considerar apenas o número total de mulheres candidatas em nível nacional para fins de cálculo, permite-se que os dirigentes partidários concentrem recursos dos fundos nas campanhas femininas de maior interesse estratégico de lideranças específicas e de pessoas que têm o privilégio de acesso direto a esses decisores partidários”.

Para ela, “isso aprofunda desigualdades internas e prejudica outras candidaturas femininas igualmente relevantes, que também merecem apoio financeiro adequado pelos partidos".

“Esse desequilíbrio afeta de forma ainda mais intensa as mulheres que pertencem a grupos sociais historicamente sub-representados na política tais como mulheres negras, indígenas, com deficiência, LGBTQIA+ e das periferias, que enfrentam maiores barreiras para viabilizar suas campanhas de forma competitiva”, complementa Sabrina.

Ainda no âmbito dos recursos financeiros, “o projeto reforça obrigações já previstas na Constituição e em decisões anteriores do TSE e do STF: 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário devem ser destinados às candidaturas femininas, e os partidos devem realizar distribuição proporcional de recursos entre candidaturas de mulheres e homens negros”, esclarece Raquel Machado.

Nos termos da propaganda eleitoral, os partidos políticos devem promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o mínimo de 30% do tempo disponível, nos termos do novo Código.

O projeto que tramita na Casa Alta prevê o bloqueio de recursos dos fundos apenas em caso de comprovação de desvio de finalidade, como o não emprego dos valores em ações de promoção da participação feminina, exigido pela legislação.

Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral da UFC, enfatiza que “é fundamental, porém, que as novas estratégias de inclusão não enfraqueçam políticas já consolidadas, como as cotas de candidaturas, e que o financiamento, a proteção e o acesso real às cadeiras legislativas caminhem juntos no fortalecimento da presença feminina e negra na política”.

Combate à violência política de gênero

A professora Raquel Machado ressalta como ponto de avanço o “reforço no combate à violência política de gênero”. “O texto passa a tipificar com mais clareza essa forma de violência, abrangendo não só candidatas e detentoras de mandatos, mas também qualquer mulher em atividade política, ampliando, portanto, o rol de mulheres protegidas”, explica a professora.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a violência política pode ser entendida como “a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade”.

A participação, efetiva, das mulheres na política percorre um longo caminho. Alguns dispositivos, como a lei de cotas e a tipificação do crime de violência política de gênero, são exemplos de medidas que contribuíram para aumentar a presença feminina nos espaços de governança.

Mas “é importante lembrar o seguinte, as mulheres sempre fizeram política. Elas sempre tiveram uma atuação, elas participaram de diferentes movimentos, de diferentes revoluções, mas historicamente, elas sempre foram colocadas à margem”, ressalta Sarah Pinho, pesquisadora e doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Sarah Pinho destaca que a violência política de gênero "também ocorre em outros espaços da política, como são os partidos, os movimentos sociais, os sindicatos, enfim, outras instâncias também do fazer político".

A pesquisadora aponta, ainda, que a perspectiva sobre a violência política de gênero “foi sendo problematizada a partir da década de 1990 e foi sendo construída nas décadas anteriores”. “Quando ela foi pensada, o foco era dentro da política institucional, que vai ter por intuito impedir que as mulheres participem da vida política”, conta Sarah.

Ela destaca como às vezes essa violência se manifesta de forma até naturalizada. "Quando a gente pensa que essas mulheres são apresentadas pelo viés pessoal, então falam da roupa que ela foi, da família, se ela é casada, se ela é solteira, se ela é divorciada, os filhos, a questão da vida pessoal, por exemplo, é muito mais mais impactante na campanha e na eleição de mulheres do que na dos homens. E isso às vezes é muito sutil, mas também se caracteriza como um traço da violência política de gênero”, explica.

Sarah relembra: “Se a gente for pensar, vimos isso acontecer na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff, em que a questão das roupas, do penteado, do peso, tudo isso era colocado como uma forma que justificasse a não condição dela de estar no cargo de presidente."

Para o crime, Raquel Machado detalha que a pena prevista é de um a quatro anos de reclusão, com agravantes em casos envolvendo gestantes, pessoas idosas, com deficiência ou negras, e também quando o crime ocorrer em público ou com ampla divulgação. O projeto do novo Código também prevê medidas protetivas de urgência, a serem concedidas pela Justiça Eleitoral.

Sabrina Veras, advogada e coordenadora de ações políticas para participação feminina no Ibradip, complementa: “O texto descreve em detalhes as condutas que configuram esse crime, como impedir ou restringir direitos políticos da vítima, assédio, perseguição, ameaça e humilhação com base em gênero, orientação sexual, raça, cor ou etnia”.

Para a coordenadora, “o projeto amplia expressamente as possibilidades de proteção, ao prever a adoção de medidas protetivas de urgência que podem ser concedidas pelo juiz de forma imediata, independentemente de audiência prévia das partes ou manifestação do Ministério Público Eleitoral”.

“Esse ponto é de suma importância, pois reforça a efetividade da proteção às vítimas de violência política, possibilitando respostas mais rápidas e eficazes para coibir as violações”, avalia Sabrina.

Eleitores devem perceber mudanças

Os eleitores também devem sentir as alterações, mas de forma mais sutil. "Para o eleitor que comparece à urna, o novo Código Eleitoral traz algumas mudanças pontuais, mas significativas, que reforçam direitos, ampliam a inclusão e consolidam práticas já adotadas pela Justiça Eleitoral por meio de resoluções e interpretações anteriores da legislação", esclarece a professora de Direito Eleitoral da UFC, Raquel Machado.

Ela pontua que um detalhe relevante é a "clareza conferida ao conceito de domicílio eleitoral". "Embora a legislação já admitisse um entendimento amplo, não restrito ao local de residência civil, o novo Código explicita esse alcance, reforçando o vínculo político, afetivo, familiar, profissional ou comunitário como elementos legítimos para a fixação do domicílio eleitoral", diz Raquel.

Outra mudança é a positivação do direito ao uso do nome social no momento do alistamento eleitoral ou de atualização do seu cadastro, que mesmo sendo um direito já reconhecido por resoluções do TSE, agora deve ser incorporado de forma expressa à legislação.

"O novo código também fortalece as diretrizes de acessibilidade no processo eleitoral, consolidando práticas já promovidas pela Justiça Eleitoral para eliminar barreiras físicas, sensoriais e comunicacionais", adiciona.

 

 

O que você achou desse conteúdo?