Uma das mudanças sugeridas no projeto do novo Código Eleitoral diz respeito à participação das mulheres. O texto propõe fortalecer a presença feminina na política, mas suscitou "preocupações quanto a possíveis retrocessos em políticas já consolidadas”, avisa Raquel Machado.
Entre as mudanças, um dos principais destaques é a reserva de 20% das cadeiras das casas legislativas para mulheres. A proposta foi acolhida pelo relator Marcelo Castro a partir de emenda da senadora Eliziane Gama (PSD). Ao mesmo tempo, preserva-se a exigência de 30% de candidaturas femininas.
No processo de apreciação do texto na CCJ, o relator retirava a punição para partidos que não conseguissem cumprir o percentual de candidaturas. A suspensão da punição era um contraponto à proposta de reserva de 20% das cadeiras nas casas legislativas para as mulheres. O destaque foi aprovado por 18 votos favoráveis e cinco contrários.
Uma inovação apresentada é a inclusão de uma exceção para os casos de desistência de candidaturas femininas após o prazo legal para que sejam realizadas substituições. Hoje, quando uma candidata desiste após o referido período, o partido é obrigado a cancelar candidaturas masculinas para manter a proporção mínima de 30% por gênero.
Com a alteração proposta e aprovada na CCJ, se a desistência ocorrer após o prazo legal para substituição, o partido não será obrigado a cancelar candidaturas masculinas, desde que tenha cumprido o percentual mínimo no momento do registro.
A advogada Sabrina Veras, coordenadora institucional da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), vai além e sugere que as mudança sejam mais significativas.
“É louvável a proposta de reserva de 20% das cadeiras nos parlamentos para mulheres. No entanto, considerando a realidade demográfica da população brasileira, bem como, com base nos dados sobre o eleitorado e filiação partidária da Justiça Eleitoral, essa reserva deveria ser ampliada para 50% das cadeiras destinadas a pessoas do gênero feminino e 50% para o gênero masculino, assegurando, de fato, a paridade de representação”, pontua Sabrina.
Ela complementa: “Essa paridade também deveria ser exigida na composição dos diretórios partidários e federações partidárias em nível nacional, estadual e municipal. O texto poderia ainda ter incluído a obrigatoriedade de que as comissões de ética e disciplina dos partidos contem com composição paritária de gênero”.
A advogada Sabrina Veras se debruça sobre outro ponto: a relação entre a participação política de mulheres e os partidos políticos. O projeto que institui o novo Código Eleitoral mantém o percentual mínimo de 5% destinado à promoção da participação feminina já previsto na Constituição Federal, mas modifica pontos importantes da regulamentação.
“O texto proposto permite que os recursos sejam executados por instituto com personalidade jurídica própria e finalidade específica, porém retira a exigência de que esse instituto seja presidido pela Secretaria da Mulher”, alerta a advogada.
Sabrina enfatiza que “ao flexibilizar a exigência quanto à presidência do instituto executor, o projeto pode enfraquecer os mecanismos de controle político interno que hoje garantem a condução dessas ações por lideranças femininas dentro dos partidos”.
Por outro lado, o texto do novo Código deixa claro que a utilização dos recursos do Fundo Partidário destinados às mulheres é proibido para quaisquer outros fins, o que reforça a destinação exclusiva para a pauta da participação política feminina.
“No entanto, alguns pontos do projeto deveriam ter sido aperfeiçoados. Como a distribuição dos recursos dos fundos eleitoral e partidário vinculados à cota de gênero que deveria seguir uma lógica para garantir a distribuição mínima de recursos financeiros dos fundos partidários e fundo especial de financiamento de campanha para as candidatas de todas as chapas, nos âmbitos municipal, estadual e federal”, avalia a advogada Sabrina Veras.
No entendimento da advogada, “ao considerar apenas o número total de mulheres candidatas em nível nacional para fins de cálculo, permite-se que os dirigentes partidários concentrem recursos dos fundos nas campanhas femininas de maior interesse estratégico de lideranças específicas e de pessoas que têm o privilégio de acesso direto a esses decisores partidários”.
Para ela, “isso aprofunda desigualdades internas e prejudica outras candidaturas femininas igualmente relevantes, que também merecem apoio financeiro adequado pelos partidos".
“Esse desequilíbrio afeta de forma ainda mais intensa as mulheres que pertencem a grupos sociais historicamente sub-representados na política tais como mulheres negras, indígenas, com deficiência, LGBTQIA+ e das periferias, que enfrentam maiores barreiras para viabilizar suas campanhas de forma competitiva”, complementa Sabrina.
Ainda no âmbito dos recursos financeiros, “o projeto reforça obrigações já previstas na Constituição e em decisões anteriores do TSE e do STF: 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário devem ser destinados às candidaturas femininas, e os partidos devem realizar distribuição proporcional de recursos entre candidaturas de mulheres e homens negros”, esclarece Raquel Machado.
Nos termos da propaganda eleitoral, os partidos políticos devem promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o mínimo de 30% do tempo disponível, nos termos do novo Código.
O projeto que tramita na Casa Alta prevê o bloqueio de recursos dos fundos apenas em caso de comprovação de desvio de finalidade, como o não emprego dos valores em ações de promoção da participação feminina, exigido pela legislação.
Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral da UFC, enfatiza que “é fundamental, porém, que as novas estratégias de inclusão não enfraqueçam políticas já consolidadas, como as cotas de candidaturas, e que o financiamento, a proteção e o acesso real às cadeiras legislativas caminhem juntos no fortalecimento da presença feminina e negra na política”.
A professora Raquel Machado ressalta como ponto de avanço o “reforço no combate à violência política de gênero”. “O texto passa a tipificar com mais clareza essa forma de violência, abrangendo não só candidatas e detentoras de mandatos, mas também qualquer mulher em atividade política, ampliando, portanto, o rol de mulheres protegidas”, explica a professora.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a violência política pode ser entendida como “a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade”.
A participação, efetiva, das mulheres na política percorre um longo caminho. Alguns dispositivos, como a lei de cotas e a tipificação do crime de violência política de gênero, são exemplos de medidas que contribuíram para aumentar a presença feminina nos espaços de governança.
Mas “é importante lembrar o seguinte, as mulheres sempre fizeram política. Elas sempre tiveram uma atuação, elas participaram de diferentes movimentos, de diferentes revoluções, mas historicamente, elas sempre foram colocadas à margem”, ressalta Sarah Pinho, pesquisadora e doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Sarah Pinho destaca que a violência política de gênero "também ocorre em outros espaços da política, como são os partidos, os movimentos sociais, os sindicatos, enfim, outras instâncias também do fazer político".
A pesquisadora aponta, ainda, que a perspectiva sobre a violência política de gênero “foi sendo problematizada a partir da década de 1990 e foi sendo construída nas décadas anteriores”. “Quando ela foi pensada, o foco era dentro da política institucional, que vai ter por intuito impedir que as mulheres participem da vida política”, conta Sarah.
Ela destaca como às vezes essa violência se manifesta de forma até naturalizada. "Quando a gente pensa que essas mulheres são apresentadas pelo viés pessoal, então falam da roupa que ela foi, da família, se ela é casada, se ela é solteira, se ela é divorciada, os filhos, a questão da vida pessoal, por exemplo, é muito mais mais impactante na campanha e na eleição de mulheres do que na dos homens. E isso às vezes é muito sutil, mas também se caracteriza como um traço da violência política de gênero”, explica.
Sarah relembra: “Se a gente for pensar, vimos isso acontecer na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff, em que a questão das roupas, do penteado, do peso, tudo isso era colocado como uma forma que justificasse a não condição dela de estar no cargo de presidente."
Para o crime, Raquel Machado detalha que a pena prevista é de um a quatro anos de reclusão, com agravantes em casos envolvendo gestantes, pessoas idosas, com deficiência ou negras, e também quando o crime ocorrer em público ou com ampla divulgação. O projeto do novo Código também prevê medidas protetivas de urgência, a serem concedidas pela Justiça Eleitoral.
Sabrina Veras, advogada e coordenadora de ações políticas para participação feminina no Ibradip, complementa: “O texto descreve em detalhes as condutas que configuram esse crime, como impedir ou restringir direitos políticos da vítima, assédio, perseguição, ameaça e humilhação com base em gênero, orientação sexual, raça, cor ou etnia”.
Para a coordenadora, “o projeto amplia expressamente as possibilidades de proteção, ao prever a adoção de medidas protetivas de urgência que podem ser concedidas pelo juiz de forma imediata, independentemente de audiência prévia das partes ou manifestação do Ministério Público Eleitoral”.
“Esse ponto é de suma importância, pois reforça a efetividade da proteção às vítimas de violência política, possibilitando respostas mais rápidas e eficazes para coibir as violações”, avalia Sabrina.