Logo O POVO+
Ficha Limpa: como a mudança acelera o retorno de condenados à política
Politica

Ficha Limpa: como a mudança acelera o retorno de condenados à política

| CONGRESSO | Alteração aprovada suaviza a aplicação da lei e reduz caráter rigoroso, mas impõe mais previsibilidade sobre quando um político poderá voltar a disputar eleições
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Sessão do Senado que aprovou mudança na lei da Ficha Limpa (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado Sessão do Senado que aprovou mudança na lei da Ficha Limpa

Após completar 15 anos, a lei da Ficha Limpa pode ser flexibilizada. O Senado aprovou o projeto de lei complementar 192/2023, que unifica em oito anos o prazo de inelegibilidade de políticos condenados ou que renunciaram ao cargo.

O texto, que já passou pela Câmara dos Deputados, aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na prática, a nova regra pode reduzir o período de inelegibilidade em determinadas situações, antecipando o início da contagem do tempo para o cumprimento da pena e, assim, o retorno desses políticos à disputa eleitoral.

A norma em vigor define o início da contagem após o fim da pena ou do que seria a duração do mandato interrompido. A nova proposta, no entanto, dita que o prazo passará a ser contado a partir da decisão judicial que decretar a perda do mandato; da eleição na qual ocorreu prática abusiva; da condenação por órgão colegiado; ou da renúncia ao cargo eletivo.

Juristas explicam que a alteração tende a reduzir o tempo de afastamento da política e trazer mais previsibilidade sobre quando um político poderá voltar a disputar eleições. Assim, o prazo de oito anos deixa de ser somado a períodos adicionais decorrentes de cumprimento de pena ou término de mandato.

A advogada eleitoralista Lívia Chaves, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), esclarece que a unificação em oito anos funciona como padronização em um "patamar mais brando". "Isso suaviza a aplicação da lei e reduz seu caráter rigoroso”.

Apesar disso, ela diz que se gera uma "maior previsibilidade" do período de incidência da inelegibilidade e uma "maior segurança jurídica", embora traga controvérsias acerca do abrandamento da legislação. "Mas, de fato, existe a discussão de tal alteração ser vista como contrária ao espírito da Ficha Limpa, aprovada por iniciativa popular justamente para elevar o padrão ético das candidaturas", acrescenta Chaves.

Em caso de múltiplas condenações, mesmo em processos diferentes, o texto do Senado define limite de 12 anos de inelegibilidade. A mudança também veda a possibilidade de mais de uma condenação por inelegibilidade no caso de ações ajuizadas por fatos relacionados.

Na lei ainda em vigor, no caso de delitos eleitorais de menor gravidade ou de improbidade administrativa, o prazo de inelegibilidade de oito anos só começa a ser contado após o término do mandato, o que pode estender o prazo para mais de 15 anos.

Para crimes mais graves, a proposta é manter a regra atual, na qual o prazo é contato no fim do cumprimento da pena ou do mandato. Nesses casos, são considerados os contra a administração pública, lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, de tráfico de entorpecentes e drogas afins, de racismo, tortura, terrorismo, crimes contra a vida, contra a dignidade sexual, praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

Se houver sanção presidencial, as novas regras poderão ser aplicadas imediatamente e beneficiar políticos já condenados. O projeto foi apresentado pela deputada federal Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, inelegível desde 2016. 

O ex-deputado foi cassado pela Casa acusado de ter mentido em depoimento à CPI da Petrobras, no ano anterior, quando disse não ter contas no Exterior. Cunha também ficou inelegível por oito anos. O mandato dele iria até fevereiro de 2019, dessa forma, a perda do direito de ser eleito seguirá até fevereiro de 2027 (2019 + 8 = 2027). Se sancionada, a lei liberará o pai de Dani para concorrer em 2026.

Luciana Carneiro, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), aponta que o "impacto simbólico é profundo".

"A Ficha Limpa nasceu como conquista popular contra a corrupção. Alterá-la dessa forma transmite a mensagem de retrocesso e de autoproteção dos políticos, o que tende a abalar a confiança do eleitor. Se nas próximas eleições figuras condenadas voltarem ao poder, a percepção de descrédito aumentará. Por outro lado, se a sociedade rejeitar esses candidatos nas urnas, poderá reafirmar a moralidade pela via democrática", analisa. 

Como foi a votação no Senado?

O texto que altera regras da Lei da Ficha Limpa foi aprovado por 50 votos a 24 no Senado, em sessão na última terça-feira, 2. A vitória das mudanças na Casa Alta teve apoio de quase todos os partidos, exceto do Novo, cujo único parlamentar é o cearense Eduardo Girão, que registrou voto contrário.

O presidente Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) apoiou a mudança, fazendo "questão dessa modernização", considerando-a uma "atualização da legislação da Lei da Ficha Limpa para dar o espírito do legislador quando da votação da lei".

"A inelegibilidade não pode ser eterna! Está no texto da lei: oito anos. Não pode ser nove nem vinte”, defendeu Alcolumbre. (Com informações de Agência Senado e Câmara dos Deputados)

Na Câmara, foram 383 votos a favor da derrubada e apenas 98 votos contrários
Na Câmara, foram 383 votos a favor da derrubada e apenas 98 votos contrários

Outras propostas ampliam proteção a políticos

A proposta que altera normas da lei da Ficha Limpa esteve em pauta no Senado no fim de 2024. Voltou em março e em agosto deste ano, quando foi adiada por falta de consenso entre os líderes dos partidos.

A votação, que culminou em aprovação do texto, ocorreu no mesmo dia em que a primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) realizava a segunda sessão do julgamento dos réus acusados de tentativa de golpe de Estado, entre os quais, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Enquanto isso, a Câmara dos Deputados mobilizava duas propostas de emenda à Constituição (PEC) que ampliam imunidades parlamentares.

A primeira se trata da PEC da Blindagem, ou das Prerrogativas, que propõe restringir a prisão em flagrante de deputados e senadores a crimes inafiançáveis, como homicídio e tráfico. Além disso, a proposta condiciona à autorização da mesa diretora da Casa a abertura de investigações.

Já a chamada PEC do Foro Privilegiado mantém o julgamento no Supremo apenas para os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF e o vice-presidente. Parlamentares passaram a ver como desvantagem ser julgado pelo STF, pela forma dura como o tribunal passou a decidir desde o mensalão e pelo fato de lá a tramitação ser mais curta e não haver mais instâncias a quem recorrer.

Segundo a advogada eleitoralista Luciana Carneiro, a PEC da Blindagem traz "um problema sério" de compatibilidade com a Constituição, porque cria um filtro político para investigações e processos que, em última análise, limita a atuação do Judiciário e fere o princípio da separação dos Poderes.

Enquanto a outra, ao restringir o foro especial apenas às mais altas autoridades, reforça o princípio republicano da igualdade, sendo "mais harmônica" com a ordem constitucional.

"Na prática, a PEC da Blindagem tende a enfraquecer investigações, já que dependeriam da autorização da própria Casa Legislativa, o que abre espaço para bloqueios corporativos. A PEC do Foro, por sua vez, tem o potencial de acelerar os processos contra parlamentares, levando-os para a primeira instância, ainda que com o desafio de evitar decisões conflitantes em diferentes jurisdições", explica Carneiro. (Com informações da Agência Senado e da Câmara dos Deputados)

O que muda nas inelegibilidades

O prazo de inelegibilidade de oito anos passará a ser contado a partir de uma das seguintes datas:

> Da decisão que decretar a perda do mandato

> Da eleição na qual ocorreu prática abusiva

> Da condenação por órgão colegiado

> Da renúncia ao cargo eletivo

A proposta também fixa um máximo de 12 anos para condenações por inelegibilidade, mesmo em casos de condenações sucessivas em processos diferentes

É vedada ainda a possibilidade de mais de uma condenação por inelegibilidade no caso de ações ajuizadas por fatos relacionados.

O que muda em relação a como é hoje

Cassação pelo Legislativo

Atualmente, políticos que perdem mandato por decisão do Poder Legislativo — por exemplo, vereadores, deputados ou senadores cassados pelos pares; prefeitos cassados pelas câmaras municipais ou governadores cassados pelas assembleias legislativas — ficam inelegíveis a partir do momento em que perdem o cargo até o fim do período que corresponderia ao mandato e, passado esse período, por mais oito anos.

Por exemplo, um prefeito cassado no primeiro ano de gestão ficaria inelegível pelos três anos de mandato que teria pela frente e, depois desse período, por mais oito anos. No total, seriam onze anos.

Com a regra aprovada, a inelegibilidade conta a partir de quando o político deixa o cargo e é de oito anos.

Cassação pela Justiça por crimes comuns

No caso de políticos condenados pela Justiça em segunda instância por crimes comuns, como tráfico de drogas ou lavagem de dinheiro, eles ficam inelegíveis enquanto cumprem a pena e, após o cumprimento, por mais oito anos.

Pela nova regra, a inelegibilidade conta a partir da condenação.

O que é a lei da Ficha Limpa?

Aprovada em 2010, a lei da Ficha Limpa completou 15 anos em junho. Ela surgiu a partir de um projeto de iniciativa popular que reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas e definiu 14 situações que impedem um candidato de disputar eleições, como casos de enriquecimento ilícito ou prejuízo ao patrimônio público.

Antes dela, já existia uma lei de 1990 que previa hipóteses de perda de mandato e de inelegibilidade, mas o tempo afastado da vida pública era de, no máximo, três anos. Com a regra hoje debutante, esse período pode chegar a mais de 15 anos, no caso de senadores, cujo mandato dura oito anos.

Outro ponto da Ficha Limpa foi a dispensa da exigência de condenação transitada em julgado. Desde então, basta uma decisão de tribunal colegiado, julgada por mais de um magistrado, para que o político fique impedido de disputar eleições, sem necessidade de aguardar a última instância do Judiciário.

Danielle Cunha (União Brasil-RJ), deputada federal
Danielle Cunha (União Brasil-RJ), deputada federal

Projeto é de autoria da filha de Eduardo Cunha, teve apoio maciço do PL e dividiu PT

O projeto original de mudança da lei da Ficha Limpa é da deputada federal Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha do ex-deputado Eduardo Cunha. A proposta havia sido aprovada na Câmara dos Deputados em 2023 e agora segue para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No Senado, o relator foi o senador Weverton (PDT-MA). Na Câmara, o relator havia sido o deputado federal Rubens Pereira Júnior (PT-MA).

A proposta recebeu 50 votos a favor e 24 contra no Senado. Da oposição à base governista, houve votos favoráveis. O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, contabilizou 11 senadores em apoio à proposta e apenas um contrário, o senador Jaime Bagattoli (RO). Já o PT ficou dividido. Foram três favoráveis, entre eles o líder do governo, Jaques Wagner (BA), e cinco se posicionaram contra.

Na bancada do Ceará, os dois senadores que votaram foram contra alterar a regra atual. As posições de Augusta Brito (PT) e Eduardo Girão (Novo) convergiram, apesar de estarem em lados ideológicos opostos. Cid Gomes (PSB) não compareceu.

Prazo

O projeto que afrouxa a Ficha Limpa tramitava em urgência no Senado desde o ano passado — a própria aprovação do rito acelerado. Em função das divergências, a votação ocorreu apenas nesta semana, apesar das tentativas de votar o projeto em plenário desde março

Efeito

O texto cria novas condições para o começo da contagem do prazo de inelegibilidade e, se sancionado, beneficiará mesmo candidatos que já foram condenados, encurtando o tempo de afastamento dos pleitos

O que você achou desse conteúdo?