No dia seguinte aos discursos de chefes de Estado que abriram a Assembleia Geral das Nações Unidas e mexeram com a política e a economia do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sintetizou: "Aquilo que parecia impossível, aconteceu". As negociações, até agora obstruídas, inesperadamente pareceram se abrir. Porém, há incertezas. A operação é considerada um risco.
Segundo informações dos bastidores do governo, há preocupação de calcular cada palavra a ser usada por Lula. O objetivo é evitar as improvisações, tão ao gosto do presidente, e assegurar que serão seguidas rigorosamente as orientações da diplomacia brasileira.
No discurso na Assembleia Geral, o presidente brasileiro defendeu o multilateralismo e o combate às mudanças climáticas e criticou duramente a política externa de Donald Trump, ainda que evitando mencioná-lo nominalmente.
O presidente dos Estados Unidos falou a seguir e, num discurso incendiário, reservou as palavras finais e mais afetuosas ao brasileiro. "Ele me pareceu um homem muito agradável. Na verdade, ele gostou de mim. Eu gostei dele. E eu só faço negócios com pessoas de quem eu gosto", surpreendeu antes de anunciar uma reunião entre os dois para esta semana.
A abertura às conversas ocorreu depois da atuação de grandes empresas com negócios nos Estados Unidos. Há algumas semanas, Joesley Batista, um dos donos da JBS, foi recebido por Trump em audiência para tratar do tarifaço de 50% a produtos brasileiros, que atingem o setor de carnes. Segundo informações que vazaram da conversa, o empresário defendeu o diálogo entre os países.
Joesley e o irmão, Wesley Batista, ganharam notoriedade no noticiário político em 2017. Alvos da operação da Polícia Federal batizada "Carne Fraca", eles gravaram diálogos com o então presidente da República, Michel Temer (MDB). No áudio, o emedebista diz a célebre frase: "Tem que manter isso aí, viu", em referência a suposta propina paga em troca do silêncio do ex-deputado federal Eduardo Cunha e do operador Lúcio Funaro.
O acesso de Joesley a Trump não é casual. A Pilgrim’s Pride, marca da JBS, doou US$ 5 milhões à cerimônia de posse do presidente dos Estados Unidos, em janeiro. Foi a maior contribuição individual de uma empresa para o evento.
Na opinião do cientista político alemão e especialista em América Latina, Peter Birle, diretor científico do Instituto Ibero-Americano de Berlim (IAI), a declaração de Trump sobre a "excelente química" com Lula foi "ridícula", considerando as "posições diametralmente opostas" dos dois líderes. Isso explicaria por que o tema viralizou e virou meme no Brasil.
O histórico de Trump justifica a cautela. O presidente reassumiu a Casa Branca este ano mais incisivo, decidido e apressado. Líderes do mundo todo buscaram aprender como lidar com ele. O caso mais extremo foi do ucraniano Volodymyr Zelensky. No segundo mês deste governo, ele foi recebido na Casa Branca, bateu-boca com o presidente americano, foi ridizularizado por não usar terno e não ser devidamente respeitoso e acabou expulso.
Passados seis meses, retornou em trajes mais formais, com piadas e gentilezas. Na segunda ocasião, estava acompanhado de líderes europeus, que, sentados em volta de Trump, encontraram na bajulação o caminho para tentar obter o que desejam. Fizeram o máximo para não desagradar o instável e poderoso governante.
O maior temor dos diplomatas brasileiros é se repetir o que ocorreu com o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em maio. A conversa começou amistosa, com elogios do americano a golfistas sul-africanos. Mas logo passou a denunciar um suposto "genocídio branco" e exibir imagens que comprovariam a situação. Entre elas, uma captura de tela de vídeo que era, na verdade, na República Democrática do Congo e não na África do Sul.
Ao comentar a perspectiva de reunião com Trump, Lula disse ter convicção de que será respeitosa. "Somos dois homens de 80 anos e não tem que ter brincadeira (...) Acho que vamos conversar como dois seres humanos civilizados, não tem espaço para brincadeiras".
O governante brasileiro acrescentou não haver assunto vetado. "Eu disse ao presidente Trump o seguinte: não tem limite a nossa conversa. Vamos colocar na mesa tudo, tudo que acha que deva conversar". Porém, acrescentou que não haverá negociação a respeito da soberania e da democracia brasileira.
"Não sei se Trump está aos poucos entendendo que o Brasil não é o Panamá, no sentido de que sua chantagem não vai funcionar", comparou amargamente o cientista político alemão Peter Birle. Ele se refere principalmente à imposição de tarifas com o objetivo de interferir no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro por conspiração golpista.
Para Birle, "Trump quer, de alguma forma, conter a China na América Latina. E isso, claro, sem se aproximar do Brasil, não vai funcionar". (Com DW)
Os recados da América Latina na ONU
A América Latina foi, na 80ª Assembleia Geral da ONU, "como tem sido na última década: fragmentada, sem coordenação política e, portanto, enfraquecida nos fóruns internacionais", observou Elayne Whyte, ex-vice-ministra do Exterior e ex-embaixadora da Costa Rica nas Nações Unidas.
A diplomata costarriquenha, porém, acredita que a maioria dos países latino-americanos concorda com a defesa dos princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas: a igualdade jurídica dos Estados, o respeito à independência política e à integridade territorial dos Estados, a proibição do uso e da ameaça da força e a não interferência nos assuntos internos de cada país.
No discurso de abertura, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, condenou os ataques dos EUA a barcos que transportavam civis no Caribe, chamando-os de "execuções extrajudiciais". Ele criticou o uso de "força letal" fora de conflitos armados, defendendo a integridade territorial da Venezuela.
Para Elayne Whyte, ele o fez com "rigor e clareza", aderindo aos princípios fundamentais das relações internacionais. A diplomata, no entanto, lamentou que essa mesma clareza tenha faltado para defender um processo eleitoral mais transparente na Venezuela no ano passado.
Ela reiterou que o respeito aos direitos humanos é uma preocupação legítima da comunidade internacional, que autoriza a condução de investigações e a emissão de pareceres. "O Brasil poderia ter desempenhado um papel muito mais proeminente na definição de uma história diferente para o destino da Venezuela em 2024, em vez de dar tempo ao regime para consolidar o que hoje conhecemos como fraude eleitoral", analisou Whyte, atualmente professora da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
O presidente colombiano, Gustavo Petro, também criticou Donald Trump, adotando um estilo "mais conflituoso", "mais ácido" e "menos institucional", concordaram os especialistas. Ele denunciou a política antidrogas dos EUA, mencionou a necessidade de uma ação global contra a crise climática e condenou — assim como fez Lula repetidamente — o que chamou de "genocídio" na Faixa de Gaza.
Petro pediu a "união de exércitos e armas" para "libertar a Palestina", com a formação de um "Exército de Salvação Mundial eleito pelas Nações Unidas e sem veto". Para Peter Birle, diretor científico do Instituto Ibero-Americano de Berlim (IAI), uma proposta "bastante populista e irrealista, pelo menos neste momento".
Em um estilo mais conciliador, o presidente chileno, Gabriel Boric, assim como os colegas brasileiro e colombiano, fez críticas às políticas de Trump, também evitando mencioná-lo, mas chamando a negação do presidente americano sobre as mudanças climáticas perante a ONU de uma "mentira" que "devemos combater".
"Hoje, o mundo precisa de vozes fortes e claras que defendam o compromisso com a democracia, sempre, sem nuances, sem desculpas", disse Boric, incluindo em suas críticas, como de costume, o autoritarismo de esquerda na região, observou Birle.
O diretor do Instituto Ibero-Americano em Berlim destacou que, do outro lado da moeda, com "alinhamento incondicional com os Estados Unidos", aparecem os "amigos de Trump" na região: o presidente da Argentina, Javier Milei, e o de El Salvador, Nayib Bukele.
Milei, também alinhado a Israel e com um estilo igualmente confrontacional, "criticou as Nações Unidas ainda mais duramente do que o próprio Trump", avaliou Birle. Enquanto isso, o Tesouro dos EUA anunciou uma linha de financiamento temporária (linha de swap) com o Banco Central Argentino de 20 bilhões de dólares (R$ 106,5 bilhões). (DW)
Como foi a relação de Lula com os presidentes dos EUA
O republicano Donald Trump é o quarto presidente dos Estados Unidos com quem Lula convive em três mandatos presidenciais. Veja como foram as relações entre eles:
George W. Bush
Republicano / Mandatos: 2001-2005 / 2005-2009
Lula conheceu Bush na Casa Branca em 2002, pouco antes de tomar como presidente pela primeira vez, convidado a ir à Casa Branca. A despeito de diferenças, foi o ocupante da Casa Branca com quem Lula se recorda de ter tido melhor relacionamento.
"Foi uma relação de muita sinceridade, mesmo naquilo que a gente discordava. É assim que dois chefes de Estado precisam se reunir", disse em entrevista no mês passado ao jornalista Reinaldo Azevedo.
Em 2005, Lula convidou Bush para um churrasco na Granja do Torto, em Brasília. O clima foi descontraído, com picanha e alcatra. Bush lamentou não poder conhecer outras belezas do país e elogiou.
Barack Obama
Democrata / Mandatos: 2009-2013 / 2013-2017
Em 2009, antes de iniciar a reunião do G20 em Londres, Obama disse numa roda de líderes mundiais: "Esse é o cara! Eu adoro esse cara. Esse é o político mais popular da Terra, porque ele é boa pinta", disse apontando para Lula e apertando sua mão.
Lula entendeu o gesto de Obama como "gentileza" e "brincadeira", e revelou ser "torcedor" do chefe da Casa Branca: "Rezo mais por Obama do que rezava por mim mesmo na época da campanha para a Presidência."
Obama relatou na autobiografia "Uma Terra Prometida", de 2020, que se surpreendeu com o chefe de Estado brasileiro: "Lula realizou uma série de 'reformas pragmáticas' que desencadearam forte crescimento econômico no Brasil, porém tinha a reputação de 'ter os escrúpulos de um chefe de Tammany Hall' e que circulavam rumores sobre comissões, clientelismo e propina que somavam milhões", disse em referência ao grupo que comandou a política novaiorquina entre meados do século XIX e o começo do século XX, que surgiu com apoio de trabalhadores e veio a sofrer denúncias de corrupção.
Joe Biden
Democrata / Mandato: 2021-2025
Joe Biden disse ter recebido um presente de Lula, quando ainda era presidente dos EUA. Um "banco de madeira" avaliado em US$ 1.170, dado em 10 de fevereiro de 2023, no mesmo dia que o governante brasileiro visitou a Casa Branca. Porém, Biden não manteve o presente, pois "poderia causar constrangimento ao doador e ao governo dos Estados Unidos" e o item foi enviado para o Arquivo Nacional dos EUA.
Aquele encontro teve como principal resultado a entrada dos Estados Unidos no Fundo Amazônia, embora o valor tenha desapontado as autoridades brasileiras — US$ 50 milhões.
Em setembro do mesmo ano, Lula, ao lado de Biden, anunciou a criação de "um novo marco de funcionamento na relação capital e trabalho". Ele declarou enquanto mencionava aplicativos como os de entrega, que funcionam sem um vínculo formal de trabalho. A iniciativa se iniciou às margens da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. (Bruno Vasconcelos, especial para O POVO)