Quase 100 suspeitos foram presos neste setembro após, pelo segundo dia consecutivo, facções criminosas promoverem uma grande queima de fogos em diversos pontos de Fortaleza e Região Metropolitana. Cerca de 10 dias depois, entre outros episódios na segurança pública cearense, uma escola da rede estadual foi alvo de um ataque a tiros que vitimou cinco adolescentes, deixando dois mortos e três feridos. O crime ocorreu em Sobral, município vitrine para educação pública do País, e repercutiu Brasil afora.
Em paralelo a isso, a bancada cearense no Congresso Nacional solicitou, após o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) já ter autorizado, reforço federal para eleição suplementar em Santa Quitéria, o maior município em extensão territorial do Estado. Por lá, o prefeito reeleito, Braguinha (PSB), foi cassado e está em prisão domiciliar por suposto envolvimento com facção criminosa.
Enquanto o governo tem investido em inteligência, reforço policial e prisões, a população continua a mercê de casos como esses, que não apenas aterrorizam, mas dificultam as dinâmicas sociais como a ida à escola e a escolha de um representante.
As facções criminosas, por outro lado, cresceram muito além das fronteiras estaduais. Redes que antes se limitavam a disputas locais hoje se articulam em escala nacional e internacional, aproveitando brechas de um sistema de segurança pública fragmentado e burocrático.
O resultado é um combate ao crime que, segundo especialistas e profissionais da área, segue “enxugando gelo” diante de organizações cada vez mais complexas e conectadas. A Constituição estabelece as responsabilidades da segurança entre União, estados e municípios, prevendo diferentes funções para as polícias federais, civil e militar. Esse arranjo, contudo, não acompanha a velocidade das redes criminosas.
“As facções, como nós conhecemos, atuam em rede, por meio de intercâmbios, cooperações nacionais e internacionais. Enquanto isso, nosso sistema de segurança pública está localizado uma boa parte dele nas instâncias estaduais”, explica Luiz Fábio Paiva, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da mesma instituição.
Para ele, que também é membro do Conselho Consultivo de Leitores do O POVO, as burocracias criadas dentro da própria estrutura policial dificultam produzir uma investigação criminal com qualidade e com capacidade de gerar um processo dentro dos parâmetros legais e, consequentemente, uma responsabilização.
"Nós temos hoje uma estrutura de segurança pública que não consegue, infelizmente, por meio da sua própria burocracia, oferecer um serviço adequado aos problemas que o País enfrenta. Temos uma dinâmica criminal que se amplia, que se dinamiza, que se movimenta numa intensidade e velocidade absurdas e, ao mesmo tempo, os mecanismos de controle social esbarram em burocracias e num corpo político de qualidade terrível", avalia Paiva, referindo-se à composição do Legislativo federal.
Também pesquisadora do LEV-UFC, a antropóloga Jânia Perla Aquino explica que esse modelo, além de "falido", nunca funcionou. "O Brasil é um país com dimensões continentais, marcado por enormes desigualdades sociais que desenvolveu vários mercados ilegais. A estratégia foi separar a segurança pública de questões sociais mais amplas, e as tragédias mostram que isso não funciona”.
O entendimento é compartilhado tanto por parlamentares da base quanto da oposição ao atual governo. Presidente da Comissão de Direitos Humanos e do Comitê de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), o deputado Renato Roseno (Psol) defende mais coordenação nacional no âmbito da segurança pública.
"O risco [de esse modelo continuar] é a manutenção da situação de muito poder dessas organizações, e infiltração em mais instâncias da economia — como foi visto agora no mercado financeiro. Isso vai levar a mais violência e conflitos", avalia o parlamentar.
Para o deputado federal Danilo Forte (União Brasil), autor do projeto de lei que classifica facções criminosas como terroristas, o desenho em vigor das responsabilidades institucionais "tem trabalhado em prol de uma luta em vão" e o "Ceará é exemplo de como, na prática, o crime vem sendo combatido de forma ineficiente".
"No Estado, tem uma campanha publicitária grande para mostrar a atuação do combate ao crime organizado, mas não se materializa porque atinge somente a periferia do comando criminoso. Não atinge a estrutura, o poderio financeiro", critica o congressista.
Tramita no Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, que pretende rever parte dessa arquitetura. O texto, já aprovado no Senado e em análise na Câmara, dá à União a competência de criar diretrizes nacionais para as políticas de segurança e amplia a atuação da Polícia Federal.
Entre outros pontos, a proposta ainda prevê a inclusão das guardas municipais no rol de órgãos de segurança. Para críticos, a PEC é um passo importante para integrar União, estados e municípios, mas enfrenta resistência de governadores e parlamentares que temem perda de autonomia.
Segurança pública fora do teto de gastos do Ceará
No Ceará, os deputados estaduais aprovaram na semana passada uma proposta de emenda à Constituição (PEC) proposta pelo governador Elmano de Freitas (PT) que equipara a segurança pública a áreas como saúde e educação no orçamento estadual.
"Diante do desafio nacional, o Governo do Estado vem promovendo elevados investimentos na segurança pública, reestruturando os órgãos policiais, contratando novos profissionais e valorizando funcionalmente esses agentes, tudo isso no intuito de fortalecer os avanços nos indicadores da segurança", justifica a mensagem do chefe do Executivo cearense.
A PEC altera os artigos 42 e 43 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórios (ADCT) da Constituição do Estado. Na prática, a alteração permite maior volume de investimentos para segurança pública, escapando de limites impostos pelo teto de gastos estadual.
A medida vale para 2025 e 2026. Com ela, o governo Elmano não precisará cumprir as metas fiscais na área, situação que já ocorre com saúde e educação. A proposta começou a tramitar na semana do foguetório registrado na Região Metropolitana de Fortaleza. Apesar de críticos, deputados da oposição votaram pela aprovação.
Para a professora Jânia Perla Aquino, antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudo da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), a discussão sobre orçamento precisa vir acompanhada de mudanças na forma de medir a eficiência policial.
"Ter uma divisão de trabalho que esteja menos associada diretamente a orçamento, porque historicamente o que a gente tem entre as forças de segurança pública, sobretudo no plano nacional, é uma disputa por mostrar eficiência tendo em mente receber mais recursos", alerta.
Aquino critica o tratamento isolado dado ao setor. "A estratégia foi separar a segurança pública de questões sociais mais amplas e as tragédias das quais o Brasil tem sido cenário mostram que tratar como uma esfera separada, uma pasta que envolve gastos milionários, como se fosse apenas questão de polícia, de equipamentos, tem gerado muitos gastos e a eficiência é bem limitada, não dá nem para dizer que tem eficiência".
Além disso, a pesquisadora diz que em todos os níveis de governo as estratégias precisam ser pensadas e elaboradas tendo em mente não apenas a dimensão repressiva do crime, mas preventiva. "Se articular a outras políticas sociais, porque também melhorar as imagens da Polícia por meio de uma atuação eficiente, uma atuação respeitosa, em relação a todos os segmentos sociais, contribui para uma melhor segurança pública".