A Albânia anunciou no mês passado a nomeação de uma ministra gerada por inteligência artificial (IA). Dias depois, um partido político japonês anunciou que escolherá uma IA como líder. As medidas possuem forte componente de marketing. Para além do impacto de comunicação, as iniciativas levantam questões técnicas, políticas e éticas.
A ministra albanesa, batizada como Diella, é um bot de inteligência artificial. Ela será responsável por decisões sobre licitações de contratação pública. O objetivo é eliminar a corrupção e assegurar financiamentos públicos com total transparência.
A promessa é de uma funcionária pública imune a subornos, ameaças ou tentativas de obter favores. Além disso, ela trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana. Não reclama e não se envolve em intrigas políticas.
A iniciativa partiu do primeiro-ministro socialista Edi Rama, eleito em maio para o quarto mandato consecutivo. "Diella é o primeiro membro do gabinete que não está fisicamente presente, mas é virtualmente criado pela IA", disse Rama, em discurso de apresentação do novo gabinete, no dia 11 de setembro. A ferramenta poderá "contratar talentos de todo o mundo", especificou.
Nem todo mundo está convencido da eficácia do sistema. Um usuário do Facebook disse: "Até a Diella será corrompida na Albânia." Outro disse: "Os roubos continuarão e Diella será responsabilizada."
Já no caso japonês, o partido "Caminho para o Renascimento" escolheu uma IA para líder depois que o fundador renunciou após os desastrosos resultados obtidos nas eleições deste ano.
A legenda foi criada em janeiro por Shinji Ishimaru, ex-prefeito de uma pequena cidade da região oeste do Japão, depois que ele obteve um inesperado segundo lugar como candidato independente nas eleições para governador de Tóquio, graças a uma campanha bem-sucedida online.
A agremiação não possui um programa político e os membros são livres para estabelecer as próprias agendas. Ishimaru decidiu renunciar à liderança do partido depois que a legenda não conseguiu nenhuma cadeira nas eleições para o Senado deste ano.
"O novo líder será uma IA", declarou em uma entrevista coletiva Koki Okumura, doutorando em pesquisa sobre Inteligência Artificial na Universidade de Kyoto, que se descreveu como assistente do novo líder. Ele será nominalmente o líder do partido.
A IA não determinará as atividades políticas dos membros do partido, mas se concentrará em decisões como a distribuição dos recursos, explicou Okumura, que recentemente venceu as eleições internas para suceder Ishimaru.
Embora tenha atraído a atenção da imprensa japonesa, o Caminho para o Renascimento teve dificuldades para conquistar cadeiras no Parlamento.
Nenhum dos 42 candidatos venceu as eleições para a Assembleia de Tóquio em junho e seus 10 candidatos também perderam nas eleições do Senado em julho.
Já houve outras experiências de um suposto protagonismo político de IAs. Em 2024, um candidato a prefeito de Cheyenne, Wyoming (EUA), Victor Miller, colocou o chatbot VIC na cédula eleitoral. Também no ano passado, no Reino Unido, Steve Endacott concorreu a uma vaga parlamentar em Brighton apresentando-se como "AI Steve", anunciando que o mandato seria exercido pelo bot.
Dúvidas sobre a IA "ministra"
Ao anunciar a nomeação de Diella, como é chamada a ministra gerada por IA, o primeiro-ministro albanês, o socialista Edi Rama, declarou que os procedimentos de contratações públicas estariam "100% livres de corrupção".
"Diella nunca dorme, não precisa ser paga, não tem interesses pessoais, não tem primos, e primos são um grande problema na Albânia", enfatizou o primeiro-ministro, cujo país ocupa a 80ª posição de 180 no ranking de corrupção da ONG Transparência Internacional.
Os políticos albaneses estão frequentemente envolvidos em licitações fraudulentas: o prefeito da capital, Tirana, antes próximo de Rama, está em prisão preventiva por suspeita de corrupção na concessão de licitações e lavagem de dinheiro.
O líder da oposição e ex-primeiro-ministro Sali Berisha também é suspeito de atribuir contratos públicos a pessoas próximas dele.
Diella poderia ser a solução? É altamente improvável, segundo vários especialistas.
"Como qualquer sistema de inteligência artificial, Diella depende totalmente da qualidade e consistência dos dados e da confiabilidade dos modelos em que se baseia", explica Erjon Curraj, especialista em transformação digital e segurança cibernética.
No momento, praticamente nada se sabe sobre como o Diella funciona, mas provavelmente utiliza um LLM (Large Language Model, grande modelo de linguagem em tradução livre) para responder às solicitações.
Os LLMs são grandes modelos de linguagem que produzem enormes volumes de texto e são usados, por exemplo, em chatbots como ChatGPT ou Gemini.
No entanto, "se esses dados estiverem incompletos, tendenciosos ou desatualizados, ela pode interpretar documentos de forma equivocada, apontar erroneamente para um fornecedor ou não detectar sinais de conluio", enfatiza Curraj.
"Os LLMs são um reflexo da sociedade; eles têm vieses. Não há razão para que eles resolvam o problema da corrupção", observa Jean-Gabriel Ganascia, filósofo, cientista da computação e especialista em inteligência artificial.
A oposição albanesa recorreu ao Tribunal Constitucional para determinar quem assumirá a responsabilidade pelas decisões tomadas pela IA. "Quem controlará Diella?", perguntou Sali Berisha ao Parlamento.
A responsabilidade é um dos desafios, enfatiza Ganascia. "Se deixarmos a tomada de decisões públicas para uma máquina, isso significa que não há mais responsabilidade; somos reduzidos à condição de escravizados".
"O que me preocupa é a ideia de uma máquina para governar, que daria a resposta 'certa' e impediria qualquer deliberação, quando a democracia se baseia na deliberação", observa o filósofo.
"Um político assume suas responsabilidades, mas agora a ideia é que a máquina deve ser perfeita e que, em qualquer caso, não podemos ir contra suas decisões", acrescenta.
Nesse sentido, um decreto publicado na quinta-feira indica que Edi Rama "é responsável tanto pela criação quanto pela operação da ministra virtual de inteligência artificial Diella".
Edi Rama é um estrategista de comunicação: ele usa tênis em reuniões internacionais, anunciou a proibição do TikTok, abriu acampamentos de imigrantes para pessoas interceptadas por agentes italianos no mar e agora nomeou a primeira ministra do mundo criada com inteligência artificial.
Porém, o TikTok continua disponível na Albânia, e apenas alguns imigrantes chegaram aos acampamentos, já que a Justiça italiana questiona a legalidade dessa infraestrutura.
Quanto a Diella, ela tem o rosto de uma conhecida atriz albanesa, Anila Bisha, que assinou um contrato de uso de sua imagem até dezembro.
Ninguém sabe se a "ministra" sobreviverá ao escrutínio do Tribunal Constitucional ou se cumprirá os procedimentos da União Europeia, à qual a Albânia espera aderir nos próximos cinco anos.
"Até agora, não há informações sobre o verdadeiro funcionamento de Diella", diz Lutfi Dervishi, cientista político albanês. "Mas se um sistema corrupto oferece dados manipulados ou se há filtros sobre coisas que não deveria ver, Diella simplesmente legitimará a velha corrupção com um novo programa".
Ministra de IA já vinha "em atividade"
Diella não aparece na cena política albanesa já como ministra. Na figura de uma mulher vestida com o traje tradicional albanês, ela foi apresentada em janeiro deste ano como uma assistente virtual movida por IA para ajudar as pessoas a utilizarem a plataforma oficial e-Albania, onde podem obter documentos e realizar diversos serviços.
Ela já ajudou a emitir 36,6 mil documentos digitais e prestou quase mil serviços por meio da plataforma, de acordo com números oficiais.
Diante dos resultados, ela foi "promovida" ao primeiro escalão do governo.
O governo da Albânia não forneceu detalhes sobre a supervisão humana que poderia haver para Diella, nem abordou os riscos de que alguém possa manipular o bot.
O decreto presidencial que nomeou Rama para o cargo de primeiro-ministro também o incumbiu "da responsabilidade pela criação e funcionamento do Ministro Virtual de Inteligência Artificial 'diella'".
Especialistas jurídicos dizem que mais trabalho pode ser necessário para estabelecer o status oficial de Diella. O líder do grupo parlamentar dos democratas, Gazmend Bardhi, considerou isso inconstitucional. "As palhaçadas do primeiro-ministro não podem ser transformadas em atos legais do Estado albanês", postou Bardhi no Facebook. (AFP)
IA chega como promessa contra corrupção em país onde situação é crítica
Os contratos públicos, alvo da "ministra" de IA, têm sido fonte de escândalos de corrupção na Albânia, nação balcânica de 2,8 milhões de habitantes. Segundo especialistas, o país é um centro para gangues que buscam lavar o dinheiro do tráfico de drogas e armas em todo o mundo.
Essa imagem complicou a adesão do país dos Bálcãs à União Europeia, algo que o primeiro-ministro Edi Rama quer alcançar até 2030, mas que os analistas políticos dizem ser ambiciosa demais.
O governo também enfrenta os desafios de combater o crime organizado e a corrupção, que permanecem um problema importante na Albânia desde a queda do regime comunista, em 1990. Diella também ajudará as autoridades a acelerar e se adaptar à tendência de trabalho do bloco europeu.
O Partido Socialista, de Rama, garantiu o quarto mandato consecutivo após obter 83 dos 140 assentos da Assembleia nas eleições parlamentares de maio.
Os socialistas disseram que podem garantir a adesão à UE em cinco anos, com as negociações concluídas até 2027. A promessa foi recebida com ceticismo pelos rivais do partido Democratas, que alegam que a Albânia está longe de estar preparada. (AFP)
"Não estou aqui para substituir humanos"
A ministra albanesa gerada por inteligência artificial, uma iniciativa inédita no mundo, discursou perante o Parlamento do país dos Bálcãs pela primeira vez em 18 de setembro. Ela garantiu que seu objetivo não é "substituir os humanos, mas ajudá-los".
A nova ministra, batizada com o nome de Diella, falou por videoconferência aos deputados albaneses, reunidos para deliberar sobre o programa do governo de Rama. Não foram dados detalhes sobre como foi gerado seu discurso.
"Alguns me chamaram de inconstitucional porque não sou um ser humano", disse Diella, cujo nome em albanês significa sol.
"Permitam-me lembrar: o verdadeiro perigo para as Constituições nunca foram as máquinas, mas as decisões desumanas daqueles que estão no poder", apontou a ministra, vestida com o traje tradicional albanês.
A nomeação foi duramente criticada pela oposição. "O objetivo não é outro senão chamar a atenção", criticou o ex-primeiro-ministro e líder da oposição, Sali Berisha, ele mesmo acusado de corrupção.
"É impossível conter a corrupção com Diella", acrescentou. "Quem vai controlar a Diella? Diella é inconstitucional", disse, acrescentando que seu partido recorrerá ao Tribunal Constitucional. (AFP)