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O mês em que "nordestino" virou ofensa
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O mês em que "nordestino" virou ofensa

| XENOFOBIA | Estudo mostra como o termo "nordestino" passou a ser usado de forma pejorativa nas redes sociais durante a última eleição presidencial. Cenário que pode se repetir em 2026
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Bandeira do Brasil com Chita (Foto: Concepção Gil Diceli com Sora IA)
Foto: Concepção Gil Diceli com Sora IA Bandeira do Brasil com Chita

Ao final do dia 30 de outubro de 2022, os 124,2 milhões de eleitores brasileiros que votaram para presidente do Brasil assistiam à apuração dos votos em tempo real. Quem acompanhou pela televisão teve a chance de ver o mapa do Brasil colorido entre azuis (ou amarelos) e vermelhos, definindo, aos poucos, em qual candidato cada estado elegeu.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), político oriundo de Garanhuns, município pernambucano, venceu o paulistano Jair Bolsonaro (PL) com vitória em 13 dos 26 estados brasileiros, sendo 9 deles: Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Ceará, Bahia, Maranhão e Piauí, todos nordestinos.

Com 27,7% do eleitorado nacional, o Nordeste é a segunda maior força nas urnas — atrás apenas do Sudeste. A geografia do voto não se limitou ao mapa das urnas, ela se traduziu em uma onda de xenofobia contra o Nordeste nas redes sociais.

Levantamento do engenheiro e cientista de dados Gustavo Campos, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, mostrou que, à medida que o pleito se aproximava, os tweets que mencionavam “nordestinos” ganhavam tom cada vez mais negativo, atingindo o pico de hostilidade em outubro.

Para entender como o termo “nordestino” era usado nas redes durante o período eleitoral, os pesquisadores criaram um modelo matemático chamado modelo de frequência de distância. Na prática, essa técnica serve para medir o grau de proximidade entre palavras, ou seja, quais termos costumam aparecer juntos e com que intensidade.

O estudo analisou mês a mês as palavras que mais apareceram ao lado de "nordestino". Nos meses de julho e agosto de 2022, as associações eram, em sua maioria, neutras. 

A partir de setembro, quando a campanha presidencial se intensificou, o tom mudou. O termo “pobre” surgiu como uma das palavras mais associadas ao Nordeste, e, em outubro, “analfabeto” entrou na lista, indicando o início de um discurso depreciativo.

Em novembro, o quadro se agravou: palavras como “burro”, “analfabeto” e “pobre” figuraram entre as mais próximas de “nordestino”. Nenhum termo positivo apareceu. Em dezembro, quando a tensão eleitoral havia diminuído, essas associações negativas começaram a perder força — “pobre” e “fome” ainda apareciam, mas com menor frequência.

A pesquisa analisou uma amostra aleatória de 280 milhões de publicações na rede social X (antigo Twitter), e mostrou que, durante o pleito de 2022, o Nordeste foi retratado, quase sempre, com traços de pobreza, ignorância ou atraso.

“Surpreendeu com o quão negativos foram os termos associados, já que o Twitter é uma plataforma sem teor político nato, a gente esperava o maior equilíbrio entre termos positivos e negativos, ao invés de essa tamanha negatividade percebida”, admite o cientista de dados.

Eanes Pereira, professor da UFCG e orientador de Gustavo Campos no projeto, explica que foram usados dados da organização não-governamental Safernet para obter um parâmetro do aumento expressivo dos crimes de ódio, destacando a xenofobia. Segundo a instituição, as denúncias contra o crime cresceram 821% em 2022, quando comparado com 2021.

O professor lembra que, nas redes, a sensação de aumento dos ataques era quase palpável. “Havia uma impressão em várias pessoas do nosso convívio que esses crimes de xenofobia, ou ataques aos nordestinos, estavam aumentando”.

O fenômeno não era apenas uma percepção e os números da Safernet confirmam o que os pesquisadores perceberam: foram 656 denuncias contra crimes de ódio na Internet — que incluem apologia a crimes contra a vida, LGBTQIA+fobia, xenofobia, intolerância religiosa e misoginia — recebidas nos dias 1º, 2 e 3 de outubro, número que só foi ultrapassado no 2º turno, quando Lula e Bolsonaro se enfrentaram em 30 de outubro, em uma disputa marcada pela polarização. Nos dias 29, 30 e 31 de outubro, foram feitas 1.480 denúncias, um aumento de 125% entre as datas.

O próprio Jair Bolsonaro associou a vitória do petista na região à taxa de analfabetismo, em live na semana após os resultados do 1º turno. "Lula venceu em 9 dos 10 Estados com maior taxa de analfabetismo. Você sabe quais são esses estados? No nosso Nordeste”, disse Bolsonaro.

Ele continuou: "Não é só taxa de analfabetismo alta ou mais grave nesses estados. Outros dados econômicos, agora, também são inferiores na região, porque esses estados do Nordeste estão há 20 anos sendo administrados pelo PT".

Somente no domingo do segundo turno, a Safernet registrou 305 denúncias de páginas criadas na web para promover ódio e discriminação, em especial aos nordestinos.

A Safernet considera que as eleições agem como gatilho para o avanço do discurso de ódio, com picos durante o período eleitoral, e as ofensas contra o Nordeste crescem quando candidatos da esquerda se destacam na região.

“A ampla votação de Lula no Nordeste levou novamente a uma explosão de denúncias de xenofobia, fato que já havia sido registrado em 2014, quando Dilma Rousseff venceu Aécio Neves e em 2018, quando a região deu boa votação à Haddad em relação à Bolsonaro”, explica a organização.

A percepção de que o Nordeste é um reduto da esquerda se tornou um estereótipo estabilizado na política brasileira atual. No entanto, a pesquisadora do Laboratório de Política, Eleições e Mídia na Universidade Federal do Ceará (UFC), Monalisa Torres, conta que a "virada eleitoral" da direita para a esquerda começou a tomar forma a partir do segundo mandato de Lula, que venceu pela primeira vez em 2002 e se reelegeu em 2006. Antes, o Nordeste votava majoritariamente à direita.

O Nordeste na mira da disputa presidencial de 2026

Faltando um ano para as eleições presidenciais, volta à tona a dúvida: o Nordeste será novamente alvo de estereótipos políticos?

Embora a polarização seja histórica, seu formato mudou significativamente a partir de 2018. Para a pesquisadora Monalisa Torres, do Laboratório de Política, Eleições e Mídia da UFC, a polarização no Brasil se tornou "calcificada" — um termo da ciência política que descreve disputas eleitorais mais ideologizadas e afetivas do que programáticas.

"Acredito que a calcificação da polarização tem influenciado essa perspectiva mais raivosa em relação ao adversário", afirma Monalisa.

Segundo a pesquisadora, a eleição brasileira majoritária sempre teve um eixo de polarização: de um lado, candidaturas do PT, consolidado como polo da esquerda, e, até 2014, do outro lado, o PSDB representando a direita.

"Isso muda em 2018, mas esse deslocamento veio aliado a uma tendência mais beligerante. Desde então, o que vemos são disputas mais polarizadas, com um verniz muito mais afetivo", destaca.

O Nordeste, consolidado como reduto eleitoral da esquerda, está particularmente vulnerável a discursos preconceituosos. Para Monalisa, esse fenômeno não é apenas histórico, mas também reflete mudanças recentes na forma como os eleitores se posicionam e reagem às disputas políticas, tornando a competição cada vez mais intensa e emocional.

"E eu não acredito que em 2026 será diferente. A tendência é que a polarização continue escalando, e isso pode alimentar discursos preconceituosos e, em alguns casos, até violência contra o outro", afirma.

O professor Eanes Pereira, da UFCG, destaca que a inteligência artificial e as novas formas de produzir vídeos, incluindo deepfakes, dificultam distinguir ataques autênticos de manipulações digitais, o que pode intensificar os discursos ofensivos.

"Infelizmente, sou meio pessimista em relação ao que virá em 2026, principalmente pelo aumento, desde a última eleição, da capacidade de gerar conteúdo de forma automática, especialmente vídeos", afirma Eanes.

Ele explica que já existem tecnologias em desenvolvimento nas universidades brasileiras capazes de detectar conteúdos de ódio em segundos. No entanto, para serem efetivas, esses softwares precisariam estar disponíveis para as próprias redes sociais.

"O problema é que isso pode não interessar a essas empresas, então o desafio volta para a sociedade, que terá de lidar com isso", acrescenta.

Fator relevante é a ausência de Jair Bolsonaro, inelegível até 2060. Mesmo sem ele, o Nordeste permanece vulnerável a estereótipos políticos. "Talvez a ausência de Bolsonaro não tenha um efeito direto. O fenômeno não é apenas histórico, mas também reflete mudanças recentes na forma como os eleitores se posicionam e reagem às disputas políticas, tornando a competição eleitoral mais intensa e afetiva", explica Monalisa.

A construção de um estereótipo

A confluência de um preconceito histórico e a consolidação recente de um voto regionalizado à esquerda, intensificada pela polarização política moderna, torna o Nordeste um alvo de xenofobia nacional, fenômeno já notável durante a eleição de Dilma Rousseff, em 2014.

Os tweets da época observados pelo cientista de dados Gustavo Campos manifestavam, sem filtros, o discurso de ódio: "70% de votos para Dilma no Nordeste! Médicos do Nordeste causem um holocausto por aí! Temos que mudar essa realidade!!", enquanto outro afirmava: "Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!"

Oito anos depois, entre as vozes que ecoaram o preconceito nas redes, uma veio da própria advocacia. Em Uberlândia (MG), a então vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Flávia Moraes, publicou um vídeo em que afirmava: "Não vamos mais ao Nordeste dar nosso dinheiro para quem vive de migalhas. Vamos gastar no Sudeste, no Sul ou até fora do país."

A gravação, feita durante o acirramento eleitoral de 2022, viralizou e gerou repúdio nacional. Em 2024, Flávia foi condenada a pagar R$ 20 mil por danos morais coletivos. Mas o preconceito contra o Nordeste não nasceu nas redes sociais. Ele é antigo e encontrou na política recente um terreno fértil.

O professor do curso de História Martinho Guedes dos Santos Neto, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que o imaginário de um Nordeste "atrasado", ou de um nordestino "inferior", possui raízes históricas que remontam à Proclamação da República, em 1889.

"O modelo de desenvolvimento pregado pelo movimento republicano vai beber largamente do pensamento de civilização europeia. O modelo de civilização que se tem na Europa é um modelo branco, eurocêntrico, de uma 'raça superior'. Como eu vou construir esse tipo de discurso numa nação que acabou de libertar os escravos e que ainda tem, na sua gênesis, uma mestiçagem gritante?", questiona Martinho.

Essa tendencia se entrelaça com a herança coronelista e de latifúndio, com movimentos como Canudos e o Cangaço, com Antônio Conselheiro e Lampião colocados como figuras de desordem. Martinho aponta que esse discurso, "principalmente da elite dominante que estava no poder durante toda a Primeira República", reforçou a ideia de que o Nordeste teria "um tipo inferior de pessoas que vai subverter essa ordem em algum momento".

Assim, o "brasileiro ideal' e o progresso se concentraram nas regiões onde a República se concretizou de forma mais latente, como o Sul e o Sudeste.

Séculos depois, a ampliação do acesso e o desenvolvimento econômico na região fizeram com que o Nordeste passasse a ter uma "subsistência independente" e se tornasse um "polo econômico latente", conforme explica o professor.

 

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