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Por que o Brasil sempre volta a debater anistias
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Por que o Brasil sempre volta a debater anistias

| PUNIÇÃO E PERDÃO | Deputados aprovam redução de penas a condenados por tentativa de golpe e, no Senado, há possibilidade de retomar o debate mais amplo, sobre anistia total
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Projeto de Lei da Dosimetria, aprovado na Câmara dos Deputados beneficiaria condenados pela trama golpista e pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Projeto de Lei da Dosimetria, aprovado na Câmara dos Deputados beneficiaria condenados pela trama golpista e pelos ataques de 8 de janeiro de 2023

Após meses de articulação da oposição bolsonarista, o projeto de lei da dosimetria (PL 2162/23) foi pautado na semana passada na Câmara dos Deputados e aprovado com um placar de 291 votos a favor e 148 contrários, seguindo, agora, para análise no Senado Federal. A proposta vem no lugar de um projeto que buscava a anistia ampla, total e irrestrita aos condenados pelos atos do 8 de janeiro, além de contemplar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), condenado a 27 anos e três meses de prisão pela trama golpista. O trânsito em julgado da condenação do núcleo crucial marca a primeira vez em que um ex-presidente e militares foram punidos por tentativa de golpe de Estado.

A anistia extingue a possibilidade de punição por crimes específicos praticados. Apesar das recentes movimentações, o debate sobre anistia não é novo no Brasil e, somando os períodos do Império e da República, cerca de 80 anistias já foram concedidas, segundo dados da Agência Senado.

Altemar Muniz, professor na Universidade Estadual do Ceará (Uece) e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) considera que não é possível afirmar que há uma cultura do perdão no País.

“Isso é mais parte de um processo histórico que vem antes da ditadura na República Populista e uma única anistia que aconteceu em 1979 por um contexto bem diferente”.

Ele considera que a medida foi necessária em alguns casos. “A anistia não é uma coisa ruim, na minha opinião. Ela é importante em determinados contextos. O Brasil tem contextos em que elas foram necessárias, tanto para atenuar situações como para garantir uma redemocratização. Não acho que a questão é permissividade. As anistias que foram dadas para tentar desmontar a estrutura golpista dos quartéis não funcionaram, tanto é que eles deram o golpe de 1964. Ao mesmo tempo, a anistia que foi dada em 1979, na minha opinião, era muito mais uma forma de atender ao clamor da sociedade brasileira pela redemocratização do que livrar a cara dos torturadores”.

A anistia mais conhecidas na história do País é a de 1979. Na época, o então presidente João Baptista Figueiredo sancionou a Lei da Anistia, que concedia perdão pelos crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, abrangendo parte do período da ditadura militar, após movimento liderado pelas famílias dos presos e perseguidos políticos.

De acordo com o advogado Marcelo Uchôa, doutor em Direito Constitucional e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a discussão em 1979 sobre a Lei de Anistia buscava a restituição dos direitos políticos das pessoas que estavam presas ou fora do país. Porém destaca que “o que foi concedido ali dentro de um sistema ditatorial foi uma autoanistia, porque eles aproveitaram e concederam também, através de um dispositivo nos primeiros artigos da lei de anistia, crimes conexos aos crimes políticos, a anistia a todos os agentes da ditadura”.

“Nós tivemos a lei de 1979 que anistiou e autoanistiou os agentes da ditadura. A gente só foi ter uma lei sobre mortos e desaparecidos políticos em 1995. A gente só foi ter uma lei de anistia para pedir perdão para as pessoas e conceder uma reparação econômica simbólica em 2001 e a gente só foi ter uma Comissão da Verdade em 2011. Nós estamos falando aí de 30 anos, de gerações que não souberam o que aconteceu no passado (...) Então, essa demora toda fez com que as novas gerações não compreendessem o que aconteceu de fato na ditadura”, avaliou Uchôa.

Para o professor da Uece, Altemar Muniz, a anistia depende do contexto, podendo representar uma tentativa de diminuir tensões ou uma forma de iniciar um novo processo. Em 1956, por exemplo, foi concedida anistia ampla e irrestrita aos civis e militares que tentaram derrubar o governo do ex-presidente Juscelino Kubistchek. Muniz considera que a anistia, nesse cenário, veio com o objetivo de diminuir a tensão da época. Já o pedido de anistia registrado atualmente pela direita bolsonarista não teria essa finalidade.

“Juscelino era um apaziguador, então acreditava que, com isso, pudesse diminuir a tensão, que ele sabia que já existia nos quartéis. Já a anistia de 1979 foi uma necessidade, de um clamor dos setores, inclusive da elite que financiou o golpe de 64, em se redemocratizar [...] Essa anistia propagada aí não tem finalidade de distensionar o país ou de fazer com que haja uma harmonia de poderes. O que claramente se quer com essa legislação proposta pelos bolsonaristas é dar sobrevida política a um ser que nunca deveria ter sido, inclusive, um líder político nesse país”.

Marcelo Uchôa destaca que muitos perdões foram concedidos durante a história brasileira, porém, cada um deles em situações específicas e não parecidas com o cenário atual no país. Para ele, a anistia demandada pela oposição bolsonarista seria “impunidade”.

“A anistia tem a ver com anamnese, esquecimento. Quem estuda justiça de transição, ou seja, a saída de um Estado autoritário para um Estado democrático, percebe que o termo anistia tem mais a ver com memória do que com esquecimento. Na verdade, nós estamos com esse nome 'anistia' em disputa no Brasil. Anistia significa a concessão do perdão para aquelas pessoas que foram oprimidas indevidamente num sistema autoritário. O que a turma hoje pede como anistia não é anistia, é impunidade”.

“A grande diferença do que aconteceu em 1964 e o que está acontecendo agora é que, enquanto a outra anistia foi daquele jeito, porque foi arrancada dentro de um sistema ditatorial, nesse momento está havendo uma criminalização daquelas pessoas que atentaram contra o Estado democrático de direito dentro do sistema democrático. O que eles chamam de lei de anistia é uma tentativa de garantir impunidade para eles mesmos. E, se a gente der a possibilidade de impunidade para essas pessoas, no futuro, as novas gerações não os verão como os bandidos que tentaram surrupiar a democracia brasileira. Você não pode simplesmente garantir a impunidade de quem atenta contra o Estado democrático de direito”, continuou Uchôa.

Por fim, o professor Altermar Muniz enfatiza que a anistia já estava presente no mundo político desde as discussões realizadas na Grécia Antiga. Para o docente, a única “novidade” evidenciada é o uso da medida pela extrema direita no Brasil atualmente.

“A anistia é algo bem antigo, não é uma coisa inventada agora e ela é algo que pode ser muito importante em contexto histórico ou pode ser nocivo. O que há de novo é apenas, pela primeira vez na história talvez, o uso do conceito de anistia pela extrema direita que sempre viu na anistia um erro, porque diz que o que foi condenado da ditadura militar foram terroristas e não jovens que queriam lutar pela redemocratização. O que eu vejo de novo apenas é o fato da extrema direita, que sempre falou mal dos direitos humanos, agora se utilizar dessa temática para vender a história de que o país se repacificaria com isso”.

Anistia e dosimetria 

O projeto de lei da dosimetria prevê a reformulação na legislação penal e de execução penal. Há controvérsia sobre a possibilidade de serem beneficiados não apenas os condenados pela trama golpista e pelos ataques de 8 de janeiro de 2023, mas também pessoas presas por uma variedade de outros delitos.

“Ficam anistiados todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações, apoio logístico ou prestação de serviços e publicações em mídias sociais e plataformas, entre o dia 30 de outubro de 2022 e o dia de entrada em vigor desta Lei”, diz o texto de relatoria do deputado federal Paulinho da Força (Solidariedade-SP).

Após pressão da oposição em tentar pautar um texto de anistia ampla, o PL da Dosimetria veio como uma versão mais branda ou “anistia light”. O ex-presidente Bolsonaro deu aval para que os aliados apoiassem o projeto de redução de penas

Com a aprovação, o texto segue para o Senado, com o senador da oposição Esperidião Amin (PP-SC) escolhido para ser o relator. Amin já se mostrou favorável à anistia e não descartou a possibilidade de incluir mudanças no texto. Em entrevista ao Jornal da CBN na última quinta, Amin chegou a afirmar que a “anistia vai acontecer”, mesmo que em etapas.

Principais anistias registradas no País

Brasil Colônia

  • Insurreição contra dominação holandesa: os holandeses foram expulsos dos territórios que ocupavam, do Maranhão a Sergipe, incluindo o Ceará. Na assinatura do acordo de paz, em 26 de janeiro de 1654, foi concedida anistia aos derrotados;
  • Movimento contra a Companhia do Comércio do Estado do Maranhão: ao final do levante, em 1684, os envolvidos com o foram presos e posteriormente receberam anistia;
  • Guerra dos Mascates (1711-1714): envolvidos na rebelião foram anistiados;
  • Revolta de Vila Rica (1720): anistia aos envolvidos;
  • Revolução Pernambucana de 1817: os envolvidos foram anistiados;
  • Exceções: nos movimentos contra o domínio colonial, exceções nas quais não houve anistia aos revoltosos foram a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração Baiana (1798).

Brasil Império

  • Independência (1822): após o 7 de setembro 1822, decreto de 18 de setembro daquele ano, do imperador Dom Pedro I, concedeu perdão a quem teve opinião política contra a independência. Mas quem já estava preso não foi contemplado. A partir da Constituição de 1824, a anistia passa a ser prevista como prerrogativa do imperador;
  • 1835: Regência anistia todos os envolvidos com crimes políticos nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro até 1834;
  • 1836: anistia concedida aos envolvidos em insurreições, mas que posteriormente se submeteram à ordem legal;
  • Sabinada (1837-1838): houve repressão violenta, com prisões e mortes. Ao final, o imperador concedeu anistia;
  • 1840: antes do chamado "golpe da maioridade", que antecipou a ascensão de dom Pedro II ao poder, foi concedida anistia geral, em 22 de agosto de 1840;
  • Cabanagem (1835-1840): mais uma vez, repressão, prisões, mortes e posterior anistia;
  • Balaiada (Maranhão, 1838-1840): o roteiro se repetiu, da repressão à anistia;
  • 1842: anistia por crimes políticos naquele ano nas províncias de São Paulo e Minas Gerais;
  • Revolução Farroupilha (1835-1845): o mesmo ocorreu, com repressão violenta e anistia;
  • 1875: anistia a padres e bispos de Olinda e Pará por crimes comuns de desobediência ao imperador, na chamada "Questão Religiosa", que viria a contribuir para a queda do Império;

República

  • 1895: primeiro presidente civil, Prudente de Morais, anistiou militares por conflitos nos primeiros anos da República;
  • Revolta da Vacina (1960): participantes do movimento contra a vacina obrigatória foram anistiados;
  • Revolta da Chibata (1910): anistia aos envolvidos. Como em tantos casos na época, foi parcial, pois a Marinha prendeu alguns e demitiu outros tidos como indisciplinados. O líder João Cândido foi expulso;
  • 1916: Congresso anistia envolvidos em revoltas de 1889 a 1915;
  • 1918: anistia aos envolvidos na Guerra do Contestado e aos participantes da greve geral de 1917 em São Paulo;
  • Revolução de 30: Getúlio Vargas toma o poder e anistia "todos os civis e militares que direta ou indiretamente se envolveram nos movimentos revolucionários do país";
  • Revolução Constitucionalista de 1932: em 1934, com a promulgação da nova Constituição, os envolvidos no movimento de São Paulo e outros estados foram anistiados;
  • 1945: anistia de Vargas a 565 presos políticos, inclusive aos participantes da chamada Intentona Comunista;
  • Revolta de Jacarecanga (1956): anistia ampla e irrestrita aos civis e militares que tentaram derrubar o governo Juscelino Kubistchek, desde a contestação do resultado eleitoral;
  • 1961: anistia por todos os crimes políticos desde 16 de julho de 1934 Depois virá a anistia de 1961 (decreto legislativo número 18);
  • 1979: anistia pelos crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Foi reivindicação das famílias dos presos e perseguidos políticos. Contemplou torturadores e envolvidos com o golpe de 1964, mas não eram eles os alvos que se pretendia beneficiar naquele momento;
  • 1985: emenda constitucional número 26 anistia servidores públicos punidos, demitidos ou dispensados por atos de exceção ou institucionais. Anistia ainda crimes políticos de sindicalistas;
  • Constituição de 1988: anistiou os atingidos por atos de exceção ou institucionais, devido a motivação política, entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988;
  • 2001: Medida Provisória 2.151, de 31 de maio de 2001, amplia a anistia para o período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de l988. Os três últimos atos ampliam a anistia de 1979 e preveem reparação econômica.
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