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Alessandra Devulsky: resolver a questão do colorismo é resolver o racismo estrutural
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Alessandra Devulsky: resolver a questão do colorismo é resolver o racismo estrutural

| RAÇA | O colorismo é resultado do processo de mestiçagem, que se iniciou de maneira violenta no Brasil. Ao longo dos anos, a categoria parda se tornou o grande grupo racial no Brasil. Para a escritora, ser pardo é estar em uma "encruzilhada de identificações"
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Advogada, professora universitária e pesquisadora Alessandra Devulsky (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Advogada, professora universitária e pesquisadora Alessandra Devulsky

Eram 14 horas de uma quarta-feira e, a passos rápidos, passava pela porta rotatória a advogada, pesquisadora e escritora mato-grossense Alessandra Devulsky, desviando de hóspedes e visitantes. Devulsky carregava duas malas de rodinha quando me encontrou na recepção do hotel Luzeiros, na avenida Beira Mar. Logo após a entrevista, ela sairia direto para o aeroporto e iniciaria seu caminho de volta para casa.

Alessandra vinha do Canadá, onde é professora da Université du Québec à Montréal, para Fortaleza, convidada para participar de palestras e cursos sobre educação jurídica antirracista, em outubro. Escritora do livro “Colorismo”, integrante da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa e escritora Djamila Ribeiro, Devulsky conceitua o termo como “um artifício, uma tecnologia do racismo para que ele se perpetue nas sociedades”.

“Tem alguma sala mais reservada em que podemos fazer a entrevista?”, perguntei na recepção agitada. Na sala de reunião, Alessandra elogiou o chapéu de cangaceiro que ganhou de uma colega durante a agenda na cidade. O objeto passou a entrevista ao seu lado. “Deixo o meu chapéu aqui? Eu tô apaixonada por ele”, brincou.

Ela se identifica como uma mulher negra de pele clara e admitiu que o conceito de colorismo não era um tema em que queria trabalhar, “justamente porque ele atravessa a minha vida e ele me suscita gatilhos que são importantes”.

“O que eu percebia é que, embora eu não tivesse a tal passabilidade branca, eu tinha certas facilidades que pessoas com mesmo número de anos de estudo e com as mesmas competências não tinham, e isso me causava, e me causa ainda, um desconforto enorme”, afirmou Alessandra.

Para Devulsky, o racismo no Brasil impõe a hierarquização das pessoas, e o colorismo é artifício desta hierarquização. Passando pela história do racismo no Brasil, a autora concentra-se na mestiçagem do País, que resultou na raça parda como um grande grupo racial no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conceitua "Pardo" como uma categoria de cor ou raça usada para classificar a população que tem características físicas resultantes da miscigenação

Ao O POVO, Alessandra reconhece a categoria como uma especificidade brasileira na estrutura racial, mas considera um retrocesso qualquer movimento para sua autonomização como categoria racial separada do guarda-chuva da negritude.

“Ser pardo no Brasil é ter a leitura imposta pela sociedade de que uma determinada pessoa não é branca, ninguém vai perguntar a porcentagem de sangue indígena e negro que ela tem. O que importa para uma sociedade racializante como a do Brasil é perceber que essa pessoa não é considerada branca”, explica.

O POVO - O que é colorismo e como este conceito influencia na sociedade brasileira atual?

Alessandra Devulsky - O colorismo existe no Brasil a partir do momento em que se inicia também a colonização, porque o processo de mestiçagem se deu uma maneira violenta contra os corpos de mulheres indígenas e mulheres negras. E desde o início do século XVI existe essa hierarquização em relação às pessoas que vão ter traços mais associados à europeidade ou traços mais associados à indianidade, ou africanidade. Então a mestiçagem no Brasil, o número e a capilaridade que a mestiçagem da na maneira pela qual ela se se reproduz no Brasil, faz com que não existam regiões no Brasil sem mestiçagem.

Existem talvez correntes migratórias muito pontuais que vão mudar um pouco os nossos traços quando a gente olha para o Amazonas, para Mato Grosso, São Paulo, Ceará, Minas Gerais, mas a mestiçagem é um artifício do processo de racialização para fazer os marcadores de quem é considerado branco e de quem é considerado negro, indígena ou mestiço, mas é o fruto de um processo de controle da população que estabelece gavetas nas quais as pessoas devem ficar.

O colorismo é um artifício, uma tecnologia do racismo para que ele se perpetue nas sociedades que são fruto do processo colonial e no Brasil especificamente ganha uma proporção imensa, porque hoje pardos são o grande grupo racial no Brasil. Então acho que a única forma de se definir o colorismo é sempre associando o colorismo como uma maneira de se perpetuar o racismo em sociedades nas quais nós não superamos as hierarquizações raciais.

OP - Qual foi o processo para chegar a esse tema como objeto de estudo?

Alessandra - Surgiu de uma conversa com a professora Djamila Ribeiro sobre como criar uma melhor compreensão de como essas hierarquizações acontecem. Havia muitas pessoas de uma evidência colossal negra que, por questões de violência do racismo, preferem se identificar como morenas escuras ou usar certos termos para fugir da negritude. Se olhar no espelho e falar: “Eu não sou negra, eu sou morena escura”, como se isso fosse mudar o olhar que a sociedade deposita sobre essas pessoas.

Existe muita gente perdida nas questões da racialização e existe também uma necessidade política e ética de que pessoas negras de pele mais clara assumam a responsabilidade, porque têm mais trânsito em determinados espaços por conta de certas facilidades que você tem quando possui também traços de branquitude visíveis em você, de trazer a questão antirracista.

Chegamos assim por meio de uma preocupação por perceber que as pessoas tinham compreensões equivocadas a respeito do que é a negritude e de que modo nossa presença, nossa existência na sociedade, negando a negritude, não muda que a estrutura que é racializante é uma estrutura que violenta esses códigos.

Honestamente, não foi um tema que eu queria trabalhar, justamente porque ele atravessa a minha vida e ele me suscita gatilhos que são importantes. Foi um livro difícil de escrever. Eu escrevia, voltava e falava: “Não, essa abordagem está muito cientificista, muito elitista, acadêmica demais”. Discutimos muito sobre como trazer um texto que pudesse ser entendido e que as pessoas dissessem: “Agora eu percebo”. Ao invés de esconder a minha inquietude, vou vivê-la no seu alto potencial.

É um livro que visa que as pessoas compreendam o fenômeno do colorismo e tenham orgulho da sua negritude, porque tudo no mundo é estruturado para que você coloque de lado essa parte, porque suscita violência, suscita exclusão, suscita falta de oportunidades, de progressão de carreira, de acesso a certos espaços de poder, inclusive.

Aquelas que têm essas marcas de europeidade podem performar uma certa branquitude. Então, você vai se maquiar e se vestir de uma determinada forma, colocar o cabelo de uma determinada forma para ser aprazível, para compartilhar o código cultural da branquitude, para poder circular. E não deveria ser assim.

Quando digo isso, não é querendo julgar os que vão se adaptar aos seus ambientes, porque são estratégias de sobrevivência. Não temos de atacar, hostilizar as pessoas que querem se adaptar ao espaço. Precisamos questionar por que esses espaços são tão violentos com determinados corpos. O colorismo é uma questão que atravessa a minha vida acadêmica, porque percebi muito claramente que, em determinadas situações, por ser negra, eu não tinha a inserção que eu achava que seria natural e decorrente dos meus estudos e do meu trabalho. E em outras circunstâncias eu percebia que eu tinha facilidades que outras mulheres negras de pele escura não tinham.

Eu gosto de fazer a diferenciação entre privilégio e facilidade, porque privilégio branco nenhuma pessoa parda tem. Na concepção de pardo do IBGE, na qual é uma categoria dentro do que entendemos como "negros com algum nível de mestiçagem". Então, o que eu percebia é que, embora eu não tivesse a tal passabilidade branca, eu tinha certas facilidades que pessoas com mesmo número de anos de estudo e com as mesmas competências não tinham, e isso me causava, e me causa ainda, um desconforto enorme.

Acredito que essas facilidades impõem quase um dever ético que a gente denuncie, porque é muito simples quando a gente mexe nas estruturas da sociedade e permite que sobretudo uma mulher preta tenha a liberdade para ser quem ela é. A partir do momento em que ela tem essa liberdade, todo mundo vai ter, porque ela tá na base da pirâmide social. Melhorar as condições de vida de uma mulher preta significa melhorar a sociedade. Quando ela tem mobilidade social, isso é um indicativo que a sociedade tá melhorando.

 

 

RAÇA

 

 

OP - Essas categorias: branco, pardo, indígena e preto, são adequadas para o Brasil atual?

Alessandra - Toda categoria é limitante, todo estabelecimento de critério para organizar a nossa compreensão de um fenômeno social é limitante de alguma maneira, porque a experiência humana é muito plural. Ao mesmo tempo que tínhamos antes dessa diminuição de categorias dentro do que compreendemos como negro, é que antes as pessoas justamente usavam que era difícil ser negro para utilizar termos que eram quase que eufemismos do ser negro. “Marrom bombom”, “caramelo queimado”, “passou do meio-dia”, são termos pejorativos que diminuem a experiência de ser negro, e isso é um projeto político.

As pessoas não fazem isso porque não querem celebrar sua negritude, sua identidade, quem elas são, isso foi um projeto de Estado brasileiro. Tivemos legislação durante a era colonial que criava privilégios para pessoas brancas e que permitia uma certa mobilidade social de pessoas mestiças. Então começa aí, vamos dizer assim, essa hierarquização que sai do simbólico e vem para o material. Por exemplo, eu tinha possibilidade, no Brasil colonial, de poder trabalhar em determinados serviços públicos se eu tivesse no meu fenótipo elementos que demonstravam que eu não era exclusivamente negro, mas que também tinha origem branca meio perdida no meu fenótipo. O caminho que o Estado brasileiro tomou ao retirar a possibilidade ce as pessoas se autodeclarassem sem esse crivo: “Existe a categoria negro, essas opções. Dentro de qual você de uma forma aproximativa entende que você tem um pertencimento étnico-racial?” E a pessoa vai dizer, porque se não tenho um espaço tão grande para transitar que a tendência é que as pessoas façam efetivamente o apagamento da sua negritude. Não é perfeito, e talvez não seja assim para sempre.

Eu diria que o ponto cego das categorias é a questão da indianidade. Muitas pessoas, sobretudo no norte do País, têm elementos no seu fenótipo que evocam muito mais a herança indígena que a herança negra. Porém, mais uma vez, é a comunidade indígena que tem de dizer como ela vê isso, ou seja, uma pessoa que não tem contato com a cultura indígena, que não fala nenhum tipo de língua, que não tem a compreensão, quase a cosmovisão, como diz Aírton Krenak, do que é ser indígena.

Talvez pudéssemos adaptar essa categoria pardo para também fazer essa relação com a sua indianidade. Ela não é perfeita, no entanto, é um erro político, epistemológico, estratégico, de tentar evocar uma autonomia do que é ser pardo. Ser pardo não é uma raça. Ser pardo é estar nessa encruzilhada de identificações, mas nas quais fica claro que eu não sou branco. E essa categoria é específica do Brasil. Se movemos uma pessoa considerada branca no Brasil para a América do Norte ou para a Europa, essa pessoa não vai mais ser considerada branca, ela vai ser racializada, vai ser considerada latino-americana, ou “chicana” como dizem os norte-americanos. Ou seja, ela perde o privilégio branco em outros espaços geopolíticos.

Ser pardo no Brasil é uma especificidade do Brasil que também não funciona em outros países, porque as identificações raciais são distintas. Existem casos semelhantes ao do Brasil, por exemplo, no Caribe, na América Central a gente encontra similitudes, mas ainda assim com o grau de mestiçagem que a gente tem, fazendo essa composição da maior parte da população, é um caso isolado no mundo.

Portanto, é uma categoria que pode ser imperfeita, mas é a categoria que hoje melhor permite a mobilização antirracista para promover igualdade racial para negros e dentre eles pretos e pardos.

Ser pardo no Brasil é ter a leitura imposta pela sociedade de que você não é branco. Ninguém vai perguntar a porcentagem de sangue indígena e negro que você tem. O que importa para uma sociedade racializante como a do Brasil é perceber que essa pessoa não é considerada branca. E a partir de não ser considerada branca no Brasil, muito embora ela possa não ser considerada branca em outro território nacional sobre outro viés cultural, aqui a pessoa parda é clarividente, pelos traços, pela pigmentação da pele, pela textura do cabelo, que essa pessoa tem uma herança importante negra e indígena.

Eu venho de Mato Grosso, inclusive sei de qual comunidade indígena uma parte da minha família veio, comunidade dos Parecis, localizada próxima a Diamantino, Mato Grosso, e não evoco a minha identidade indígena porque não tive contato, porque não foi ela que estabeleceu a minha identidade. Então, infelizmente, nossa identidade é imposta pela sociedade. Desde muito criança, o que chamava a atenção das pessoas a mim não era essa indianidade que poderia estar presente. É negritude, o elemento que vai excluir, que vai criar algum tipo de discriminação.

 

 

TRANSFORMAÇÕES

 

 

OP - A sua pesquisa sobre o colorismo foi lançada em 2021, já faz 4 anos. A senhora acredita que houve mudanças, avanços ou regressos?

Alessandra - O que muito me assustou foi a reivindicação de um grupo específico, não é universalizada, mas existe um grupo que visa a autonomização da categoria parda, que, a meu ver, é um erro imenso e é um retrocesso gigante naquilo que foi tão importante para tantas mulheres negras no Brasil, especialmente as mulheres pardas, de poder viver sua negritude sem vergonha e partilhando essa experiência com outras mulheres. Quando você arranca da mulher da possibilidade dela se dizer negra, você mais uma vez coloca ela nessa zona de “não lugar”.

É um grupo de rede social que visa e a autonomização e da categoria parda, mas que é um grupo que não conversa com movimento negro, que para mim já é um indicativo de falta de escuta, de entender que se hoje temos políticas públicas que visam a promoção da igualdade racial, nós devemos muito a dois grupos, o movimento indígena e o movimento negro.

Portanto, tentar desassociar a nossa negritude, obviamente, porque a gente tem outros traços visíveis nos nossos corpos, mas nos tirar a força e a beleza e a e a celebração de pertencer ao grupo negro para dizer: “Somos algo distinto, porque nós não somos nem negros, nem brancos, nem indígenas. Somos pardos e essa é uma categoria específica”. Ser pardo é ter em algum aspecto da minha identidade uma negritude que é visível. Então, não tem como, de maneira epistemológica, você tentar evocar uma autonomia que não existe, essa categoria racial existe por conta da raça negra.

O conceito de raça é um conceito biológico. Ninguém vai sair por aí fazendo teste de DNA para ver qual que é a proporção de sangue branco, indígena e negro, para sociedade isso não importa. Historicamente temos tanta literatura para explicar que o racismo científico, muito embora ele tenha deixado um grande legado no Brasil de um pensamento de eugenia, de um pensamento violento em relação a pessoas negras, no sentido de tentar apagar a nossa história branquear a população e dizer: “Nós vamos melhorar a raça brasileira”. Do discurso, inclusive de presidentes, de Getúlio Vargas, de que vai se associar com Renato Kehl, um genista famoso, célebre no Brasil, para dizer: “Vamos proibir a recepção de imigrantes da África, porque temos um problema negro, nós temos negros demais. Precisamos estimular a vinda de imigrantes europeus, porque aí essa proporção de maior miscigenação tributária da europeidade vai melhorar a raça brasileira”.

Para mim, como pesquisadora e mulher negra de pele clara, é muito violento, porque houve todo um caminhar para que pudéssemos dizer: “Eu sou negra e tá tudo bem. Sou negra e eu tenho orgulho disso e não tem problema nenhum”. E vou viver essa identidade naquilo que ela me traz, infelizmente, de exclusão e de violência, mas também naquilo que ela me traz de cultura, de vivência ancestral, de conhecimento, de todas as matrizes que vem da África e que vem inclusive de outras cosmovisões, como diz o (Ailton) Krenak (líder indígena e filósofo).

O racismo brasileiro é fenotípico, é um racismo que não se importa com uma pessoa como eu, que tem um nome que remete a europeidade. Meu nome nunca me salvou de sofrer racismo na escola. Ninguém nunca me perguntou: “Mas você tem um avô que é branco, que é europeu? Então tá tudo bem, você pode fazer parte do nosso grupo”. O que importa é como você, como a sua genética se expressou. No meu caso, muito embora eu saiba que a indianidade esteja presente, não foi esse o fator que construiu a minha identidade nessa relação com o outro.

A relação, a identificação racial é feita por alteridade. Dependo do olhar que o outro projeta sobre mim para que eu me veja, por isso uma pessoa negra ou uma pessoa branca se olha no espelho e diz: “Bom, é, o meu avô é diferente de mim. Então, hoje vou adotar a identidade racial do meu avô, porque geneticamente estou relacionada a ele”. Não é assim que funciona. Não é um ato deliberado, eu dependo do olhar da sociedade.

OP - É um assunto subjetivo, com muitas particularidades e um debate público que tem durado, com questões seculares. Como o tema foi avançando em torno de pautas positivas, de avanço, e de estagnação?

Alessandra - Existe uma parte do grupo negro que tem um ressentimento que em alguma medida é legítimo quando pessoas pardas evocam as questões de discriminação, sem se atentar que elas têm facilidades que pessoas pretas não têm. Acredito que esse é o início do problema, porque houve uma hostilização mútua em determinado momento e eu acho que isso se acentuou durante a pandemia justamente, o que vejo com muito pesar. Particularmente, nunca fui hostilizada pelo movimento negro, nunca tive ninguém me questionando: “Mas você é muito clara, não pode ser chamada de negra”, mas tenho conhecimento de outras pessoas que viveram esse tipo de constrangimento, e acho que é daí a busca de dizer claramente: “Eu não sou branca”, porque eu não tenho essa identificação perante meus pares e eu estou sendo também excluída por pessoas pretas, então vou buscar uma zona de pertencimento.

O movimento negro de uma forma geral eu diria que é um dos grupos mais solidários. Sempre gosto de lembrar e de historicizar isso, porque grandes quilombos no Brasil, não só o quilombo de Palmares, o quilombo do piolho, são quilombos compostos por negros escravizados, mas também por indígenas que buscavam proteção e por brancos empobrecidos que não conseguiam inserção social por uma série de fatores. A nossa história é de criação de alianças e de solidariedade entre aqueles que, de uma maneira ou de outra, são excluídos das estruturas de poder, dos serviços sociais que o Estado pode oferecer ou mesmo de acesso à propriedade. A Lei de Terras em 1850 é um exemplo bem claro disso.

Houve uma incompreensão em dado momento de certos grupos que permitiu o desenvolvimento desse sentimento de “se eu não tenho pertencimento de nenhum nem outro, eu quero autonomização”, sendo um pouco de preguiça política de conversar com as pessoas. Houve aí uma falha de comunicação que é muito pontual, eu reitero.

Eu sempre tive muito acolhimento. E aprendi muito com mulheres pretas, fui acolhida, fui orientada, fui abraçada, e essa é a percepção da avassaladora grande maioria de mulheres pardas. Tenho muita dificuldade em pautar estratégias políticas baseadas no ressentimento. Acho que a gente precisa ser melhor que isso, precisamos construir pontes no lugar de muros, e para construir pontes, eu preciso ter capacidade de escuta. Preciso ouvir alguém que sente que está tendo um menosprezo do outro, criar instrumentos teóricos, cognitivos, para podermos estabelecer uma conversa que vise a inclusão.

Qualquer pessoa hoje no Brasil que compreenda que a sua identificação racial é uma identificação incompleta, porque muito embora ela tenha traços evidentes de nação, que essa pessoa não seja considerada branca, mas que, por exemplo, ela se sinta mais próxima culturalmente, fenotipicamente da comunidade indígena, é com a comunidade indígena que ela tem de conversar. Agora, se uma pessoa, o meu caso, foi sociabilizada e inclusive hostilizada pelo fato de ter traços negros, é mais do que natural e legítimo que eu me aproxime do movimento negro.

Não tem certo e errado, eu acredito que o desenvolvimento dessa conversa importante para o Brasil, precisa ser feita com afeto e com cuidado. É preciso considerar que as experiências das pessoas são plurais. Minha negritude em Mato Grosso é uma negritude com experiências diferentes da de uma pessoa com as mesmas características que eu em São Paulo, é preciso compreender isso.

O Brasil é um país de dimensões continentais, ele sempre vai nos proporcionar esse tipo de desafio, porque é difícil criar um molde restrito, como o guarda-chuva negro para pretos e pardos, para 250 milhões de pessoas com uma variabilidade genética, acho que uma das maiores do mundo.

São pequenas soluções que englobam o todo. Não existe essa possibilidade de sentar aqui dez pessoas num mês e resolver o problema do colorismo. Isso não existe porque resolver o problema do colorismo é resolver o problema do racismo, e o racismo é estrutural. O colorismo atravessa todos os aspectos da nossa vida. Onde há racismo, há hierarquização das pessoas. Então, eu adoraria que por meio de uma política pública, só estabelecendo cotas, que a gente pudesse resolver um problema que é tão estruturante, que define tanto a sociedade brasileira. Não, não é assim que funciona, infelizmente.

Mas o que acredito que temos acertado é no sentido de criar alianças. E isso o movimento negro acertou e acertou precisamente, de criar esse guarda-chuva para pretos e pardos. Será que em 100 anos, será que em 200 anos essa solução ainda será a melhor? Talvez, porque as coisas elas mudam, elas evoluem. No entanto, hoje a autonomização da categoria parda criará necessariamente, de maneira pragmática, um retrocesso em políticas públicas e um retrocesso na identificação e no orgulho, na celebração que as pessoas podem fazer da sua negritude.

Reconheço que há uma questão para as pessoas que se veem muito mais indígenas do que negras na categoria parda e, mais uma vez, essa conversa precisa ser colocada para o movimento indígena. É o movimento indígena que tem de definir quem pode ou quem não pode ser chamado de indígena. Será que vamos criar uma categoria daqui a 150, 200 anos de pardo indígena? Pode ser, mas hoje não faz sentido.

 

 

EDUCAÇÃO

 

 

OP - Como a educação antirracista pode trazer o tema do colorismo de uma forma mais didática e que possa ser um termo até mais debatido? O racismo é muito debatido, mas o colorismo e outros termos, como que é possível ter essa conversa de uma forma mais didática?

Alessandra - Acho que a partir de 2003, com a lei que determina a obrigatoriedade do ensino da história negra e africana nas escolas, no ensino primário, no ensino médio, isso já é um avanço imenso. A gente precisa, no entanto, tornar isso efetivo, porque ainda muitas escolas, inclusive universidades também, têm pouca pesquisa a respeito dessa temática que atravessa todos os ramos da ciência, porque o racismo, infelizmente, cria abordagens que não permitem que façamos as boas questões. Não temos boas respostas porque a pergunta não é boa em termos metodológicos, em termos científicos.

Se eu não estou preocupado com as mulheres negras que recebem menos analgesia durante o parto, porque existem médicos que acreditam naquele mito da mulher negra que aguenta tudo, da mulher negra que é objetificada, reificada, desumanizada, isso tem um efeito material em termos de saúde pública.

Ainda acho que temos muito espaço para desenvolver no ensino primário, médio e superior a respeito da nossa contribuição para o mundo, que pode ser dada em termos científicos, em termos civilizatórios, por conta da experiência única que o Brasil tem. Somos a maior comunidade negra fora da África. Nós temos, querendo ou não, na América Latina uma experiência colonial, a qual é uma experiência distinta por conta da colonização portuguesa, por conta do nosso desenvolvimento econômico. Existe uma especificidade, uma particularidade na experiência do que é ser brasileiro, algo realmente único.

Exploramos pouquíssimas abordagens disso e o efeito que isso tem em como fazemos ciência e produzimos conhecimento. Mas acho que a porta de entrada para falar com mais rigor, seriedade e profundidade do fenômeno do colorismo e do racismo é conhecer melhor a nossa história. Nós ainda estamos em um ponto histórico em que desconhecemos grande parte daquilo que foi a nossa história e do papel preponderante que comunidades indígenas e comunidades negras tiveram no desenho mesmo do Estado, em como se organiza a sociedade. Conseguimos vislumbrar isso com mais clareza na cultura, na língua, porque o sotaque oriundo de certas palavras que vêm do iorubá, por conta da cultura, da música, da estética negra, da culinária, a gente consegue perceber isso, e é importante na constituição da nossa identidade.

Mas acho que ainda falta muita coisa a ser desenvolvida no que essa especificidade do brasileiro cria para a construção do conhecimento, para produção de pensamento científico, que seja no direito, que seja na ciência política, na sociologia, na filosofia, na história. A pessoa que melhor fez isso foi Paulo Freire, exemplo do pensamento que vai se nutrir, vai se alimentar dessa particularidade da experiência brasileira, do fato de que vivemos numa sociedade profundamente desigual.

Então, conseguimos ver a pessoa que se torna um milionário e tem um circuito internacional e eu cruzo a esquina e tem um rapaz com 14 anos vendendo bala. Isso é uma experiência que é única e que permite que a gente tenha um olhar para o mundo que não pode ser desenvolvido em outro lugar. E eu acho que a gente ainda não experimenta isso na sua potencialidade.

Em termos de educação, primeiro, temos pouco tempo de escola, o que é complicado de entender e tenho dificuldade de aceitar. Precisamos de um currículo maior, que permita, justamente, esse contato com a nossa história por mais tempo, e permitindo outras abordagens pedagógicas e epistemológicas que só podemos fazer aqui. Precisamos, como sociedade, parar de copiar determinados modelos de produção de pensamento, de ensino, de pedagogia e olhar para dentro e dizer: “Não, nós temos problemas específicos”.

Precisamos olhar para as nossas especificidades com o instrumental cognitivo epistemológico que a gente produz aqui, isso vem da compreensão aprofundada do que somos, da nossa história. Obviamente, 2003 foi um passo importantíssimo, um marco teórico, mas há necessidade também de ter gente capacitada para fazer. Precisamos adequar o ensino superior para formar professores que possam permitir esse ensino e, ao mesmo tempo, preciso de política pública que crie efetivamente aquilo que a gente chama de escola pública de qualidade, isso é a chave para podermos não só reconhecer a nossa negritude, a nossa indigenidade que marca a identidade brasileira, mas de celebrar isso.

Gosto muito de falar do Krenak, mas poderia falar de tantos outros que têm uma compreensão do mundo que quase foi exterminada. Ainda bem que existem alguns, infelizmente a gente teve genocídio indígena, imagina um oceano de coisas que se perderam nisso. Nós também violentamos os africanos no Brasil, perdemos um oceano de oportunidades, mas ainda há tempo. Mas para isso precisamos valorizar esse conhecimento, sendo um conhecimento tipicamente brasileiro.

Notas

Livro

Alessandra Devulsky está trabalhando em uma nova edição ampliada do livro "Colorismo", lançado em 2021, cujos direitos foram adquiridos pela editora Record. A previsão inicial era lançar a nova versão em 2025, mas foi para 2026. Alessandra acrescenta que deve concluir o trabalho em janeiro, incluindo três novos capítulos.

Referências

A professora cita autoras e autores centrais do pensamento negro, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Bell Hooks e Frantz Fanon. Entre as leituras mais acessíveis e fundamentais, ela recomenda "Pequeno Manual Antirracista", de Djamila Ribeiro. Para entender o colorismo, destaca o livro "Em Busca dos Jardins de Nossas Mães", de Alice Walker, onde o termo foi originalmente cunhado.

Nações Unidas

Devulsky foi eleita hoje em, 2024, para o Comitê Assessor do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ela exerce o mandato como perita independente até 2026, em vaga reservada ao Grupo de países da América Latina e Caribe (Grulac).

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