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Quando há machismo na seleção?
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Quando há machismo na seleção?

Diferenças nos processos seletivos de homens e mulheres contribuem para desigualdade de gênero e podem ter consequências psicológicas
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Empresas de todos os segmentos têm investido cada vez mais em diversidade e inclusão para compor seus quadros de funcionários de forma justa. Ainda que a temática esteja em alta, no entanto, o caminho deve ser longo para as mulheres. Em 2019, o Fórum Econômico Mundial apontou que a paridade de gênero no mercado de trabalho só deve ser alcançada verdadeiramente em 257 anos - e um dos motivos pelos quais essa desigualdade existe pode estar no próprio formato de processo seletivo para vagas de emprego.

Isso porque algumas etapas das seleções podem incluir questionamentos discriminatórios, uma prática ilegal que afasta as mulheres da ascensão profissional e contribui para a sensação de insegurança e de falta de capacidade que as leva a, muitas vezes, desistirem de concorrer a certos cargos. "Perguntas relacionadas à idade, estado civil, religião, orientação sexual e planejamento familiar podem ser consideradas discriminatórias independentemente de gênero, mas sempre acontecem mais com mulheres", explica a advogada trabalhista Marina Costa.

As questões relacionadas à vida privada, lembra Marina, são protegidas pela Constituição Federal. Mas, apesar de a Lei 9.029/95 proibir "exigência de atestados de gravidez, esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho", mulheres comumente se deparam com recrutadores ou empresários que ignoram a legislação.

Foi o que ocorreu com a cearense G.A., 30, em outubro de 2019, quando pleiteava uma vaga de emprego em uma loja de estofados da Capital. Ao iniciar a entrevista, percebeu o tom ríspido e as perguntas inadequadas de um dos sócios, mas prosseguiu com a seleção porque estava "desesperada para trabalhar".

"O dono perguntou sobre meu status de relacionamento e disse que nem queria contratar mulher para a vaga, porque mulher 'tem negócio de filho, de namorado e marido ciumento', e ele não queria nada daquilo. Também perguntou sobre minha religião e muitas outras coisas. No final, fui aprovada, mas voltando para casa percebi que não ia conseguir ficar nem um mês lá e acabei desistindo da vaga", conta.

 

O que vem depois?

Situações como a sofrida por G.A. podem ser denunciadas à ouvidoria da empresa e até ao Ministério Público do Trabalho (MPT). "Nós, mulheres, já partimos em desvantagem. Quando você se prepara para uma entrevista, espera perguntas de teor técnico; quando alguém começa a perguntar sobre sua vida pessoal, isso gera impacto na autoestima e no senso de dignidade. Por isso, esse tipo de situação pode gerar uma ação por danos morais, porque traz sequelas psicológicas - e passíveis de indenização", ressalta a advogada Marina Costa.

Ainda que possa parecer um dano individual, situações discriminatórias em processos seletivos contribuem negativamente para um cenário mais amplo de segregação profissional e regressão do mercado. Para Cristiane Aquino de Souza, doutora em Direitos Fundamentais e professora do curso de Administração da UFC, esses momentos podem deixar as mulheres inibidas e prejudicá-las no ambiente de trabalho.

"Isso faz com que as mulheres, especialmente as que têm filhos, sintam que precisam ser três vezes melhor do que um homem para 'compensar'. Por parte das empresas, discriminá-las demonstra uma falta de visão mais ampla, porque inclusive há pesquisas que mostram que a maior participação da mulher é um fator de crescimento."

Orientações legais

> Nem sempre é possível abdicar de uma vaga de emprego ao passar por uma situação discriminatória ou de assédio. Por isso, caso se sinta desconfortável com algum questionamento, tente redirecioná-lo: "Você pode repetir a pergunta? Não entendi como ela se aplica à vaga". Muitas vezes, os recrutadores nem sabem que esse tipo de pergunta é ilegal e apenas estão mal preparados;

> Tente responder o real significado da pergunta. Se o recrutador pergunta como você vai conciliar a vida pessoal com a de trabalho, você pode explicar que estará dedicada e presente para cumprir todas as funções; se ele pergunta sua idade, você pode falar sobre sua experiência, respondendo indiretamente o questionamento;

> Caso haja insistência, é importante falar que não se sente confortável ou não entende por que a pergunta está sendo feita. Em casos mais graves, como os de assédio, é recomendado que a candidata se retire do local, por segurança;

> Grave o momento. A prática, que de forma geral é ilegal, não se aplica caso em uma conversa sua com outra pessoa, já que os dados também pertencem a você. Com esse material, denuncie simultaneamente na ouvidoria da empresa, se houver, e ao Ministério Público do Trabalho, para que haja uma reparação positiva por parte da empresa.

*Fonte: Marina Costa, advogada trabalhista e sócia do Forte e Costa Advogadas Associadas

Soluções incluem capacitação e rede de apoio

Para auxiliar mulheres a entrarem ou se recolocarem no mercado, uma série de projetos sociais que buscam a verdadeira inclusão têm surgido, especialmente com o auxílio da internet. A administradora Jhenyffer Coutinho resolveu auxiliar mulheres impactadas pela pandemia no Brasil. Assim nasceu o "Se Candidate, Mulher!", projeto online que visa capacitá-las através de três eixos: mentoria, produção de conteúdo e rede de apoio.

Jhenyffer conta que começou a refletir sobre a dificuldade das mulheres no mercado em 2017, após descobrir, através de uma pesquisa da HP, que mulheres só costumam se candidatar a uma vaga de emprego quando possuem 100% dos pré-requisitos, enquanto homens comumente se candidatam com apenas 60% do que é exigido. "Na época, eu era líder numa organização, na qual, juntamente com o meu time, era responsável por todos os processos seletivos, e tinha muita dificuldade de encontrar as mulheres em meio às inscrições. Mesmo quando a vaga era direcionada a mulheres, os homens iam lá e se candidatavam."

Nas redes sociais, o projeto fundado por Jhenyffer compartilha conteúdo gratuito sobre oratória, currículo, networking e outras etapas importantes das seleções. Foi através de uma delas que a desenvolvedora de sistemas Shirleide da Silva, 24, ficou sabendo da iniciativa. Através do conhecimento adquirido nas comunidades e lives, a pernambucana criou coragem para se candidatar a uma vaga na empresa dos sonhos, onde tentava entrar há mais de três anos.

Antes disso, Shirleide já havia passado por uma situação vexatória em um processo seletivo onde era a única mulher, o que a tornou ainda mais crítica consigo mesma. "Sempre ficava na dúvida, pois eu não tinha todos os requisitos necessários. Com as mulheres da comunidade me incentivando, me candidatei e consegui a tão esperada vaga em uma multinacional", conta, animada.

Algo parecido ocorreu com a engenheira de bioprocessos Melissa Ribeiro, 24, de São João da Boa Vista (SP). Se sentindo acolhida em meio à rede de apoio digital, ela buscou uma oportunidade durante o programa de mentoria e conseguiu um novo emprego, mesmo em meio à crise. "A comunidade e a mentoria abriram novos caminhos para mim. Hoje, da mesma forma que fui ajudada, me sinto no dever de ajudar também. Fazer parte dessa causa me tornou muito mais consciente como pessoa e profissional", diz. Em menos de cinco meses de atuação, já são quase 60 mulheres recolocadas pelo projeto, que atualmente reúne mais de 27 mil pessoas nas redes sociais.

O que pode ou não ser perguntado em uma entrevista?

Em suma, a empresa pode questionar o candidato sobre qualquer informação que tenha relação com as competências técnicas da vaga. Questões pessoais que não tenham a ver com a função profissional a ser ocupada não devem ser feitas. Além disso, caso a empresa esteja armazenando seus dados pessoais - mesmo que de forma analógica -, ela precisa pedir autorização do candidato, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

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