Aparentemente desconexas, duas das maiores tragédias que se abateram sobre o Ceará, ao longo dos últimos doze meses, estão diretamente interligadas por um contexto de violência: o assombroso aumento dos homicídios, com seus 5.134 casos em 2017, e o crescimento da população de rua, sobretudo em Fortaleza. Ambos os fenômenos têm como pano de fundo o avanço das facções criminosas no Estado.
[SAIBAMAIS] À guerra diária travada entre esses grupos, o próprio Governo atribui parcela considerável do aumento das mortes violentas. Da mesma forma, o domínio das facções causou o surgimento dos “refugiados urbanos”, conceito utilizado pelo O POVO para definir a situação de pessoas expulsas de suas residências, em assentamentos precários da Capital, sob a ameaça de pagar com a vida a permanência nos imóveis “confiscados”.
Feito retirantes, alguns se abrigam nas casas de amigos e parentes. Outros, porém, sem ter para onde ir, acabam encorpando a triste paisagem de lençóis e colchões estendidos sobre as calçadas de Fortaleza. Embora ainda não existam números que comprovem, estatisticamente, o aumento dessa população, o crescimento já é reconhecido pela Prefeitura, percebido por quem lida com o problema e relatado pelos próprios refugiados.
“Eu morava com meus pais e irmãs, mas estou há um ano na rua. Hora dessas, antes, estava em casa. Tenho vontade de voltar, só que não posso. Antes das facções não tinha isso. Mas, como eu roubava, eles me proibiram de voltar. Foram atrás de mim armados, em casa. Eu não estava. Avisaram que, se eu voltasse, ia morrer. Que iam me buscar e matar dentro de casa. Minha mãe todo dia chora”, relata um jovem de 26 anos. [QUOTE1]
Com o Ensino Fundamental incompleto e morando na Praça do Ferreira, no Centro, o rapaz diz que foi expulso do bairro Henrique Jorge após a facção que dominava a área ser substituída por outro grupo. Histórias semelhantes foram contadas ao O POVO por outros cinco personagens.
Na avenida Tristão Gonçalves, outro jovem, de 21 anos, natural de Pacajus, conta que está há quase dois anos na rua. “Comprei drogas fiado e não paguei. Desde esse tempo, vivo aqui, na rua. Meu pai, quando quer me ver, tem que vir aqui me procurar. Se eu voltar pra casa, sou morto”, lamenta.
Na rua Major Facundo, um casal contou que teve a residência tomada e incendiada por criminosos, no bairro Bonsucesso. Ela, com 54 anos, e ele, com 58, agora vivem nas ruas. “Nem as nossas coisas a gente pôde tirar. Documentos, roupas, tudo foi queimado. E eles ainda disseram que se a gente aparecesse por lá, nos matariam”, lamentou a mulher.
Membro do grupo de Promoção Social do Centro Espírita Cearense (CEC), Djalma Araújo Almeida, 51, distribui sopa semanalmente para os moradores na Praça do Ferreira. Ele diz que percebeu um “grande aumento” na quantidade de pessoas atendidas.
“A população de rua cresceu. E muitas pessoas que atendemos dizem que foram expulsas por traficantes. Muitos dizem que tomaram suas casas. O depoimento deles é muito claro. O Estado precisa tomar uma posição mais firme sobre essas questões”, defende.